Crítica da peça Julia de Christiane Jatahy
MITsp 2015
É sempre um problema escrever sobre uma peça que está circulando há algum tempo. Depois de tanta coisa que foi dita e escrita sobre Julia, fica o questionamento (um questionamento para a crítica, em todas as ocasiões): como não chover no molhado? O que não foi dito sobre Julia? Ou: será o caso de falar sobre o que já foi dito?
Superado o bloqueio inicial, três pontos se apresentam como pequenas reflexões. O primeiro, a questão da lida com um material prévio, uma questão do teatro por excelência. É um clichê da crítica tratar o enfrentamento de uma encenação com um texto prévio pela comparação, o que é sempre feito sob um pensamento massacrante e conservador de que o “original”, ou o passado, é sempre um ideal a ser alcançado, um monumento da tradição. Ou ainda, conferir se a “adaptação” ou a “atualização” é eficaz. Diante de Julia, de Christiane Jatahy, vejo uma nova criação – e não acho que seja o caso de compará-la ao texto de Strindberg. Me parece que a peça conversa abertamente com Senhorita Julia, se coloca frente a frente com ela. E o que Julia, do século XXI, pode dizer para Senhorita Julia, do final do século XIX? O olhar da encenação é um olhar de enquadramentos, emolduramentos, recortes. Não me interessa questionar se a interação entre teatro e cinema “funciona” ou não. Me interessa pensar: A partir do fato de que isto é feito desta maneira, o que produz? O que o foco no rosto da personagem Julia produz? O que o seu olhar mediado pelo dispositivo cinematográfico nos diz?
Uma resposta é que o olhar não é dos personagens, mas dos dos atores – e aqui aparece o segundo ponto. O dispositivo cinematográfico criado pela encenadora e por Marcelo Lipiani somado à linguagem das atuações de Rodrigo dos Santos e Julia Bernat me faz ver que há, ao longo de toda a peça, um depoimento dos artistas envolvidos sobre as questões em jogo. Não me refiro aos momentos em que a ideia de depoimento é levada ao pé da letra, mas a pontos mais sutis da linguagem do espetáculo. O momento de acusações ferozes entre os personagens, em que os preconceitos aparecem em palavras duríssimas, revela melhor o depoimento pessoal de cada artista na dificuldade visível que eles têm para lidar com aquele diálogo do que nos comentários que fazem diretamente para a plateia em seguida. A meu ver, todo o dispositivo de recorte e de dobra das imagens em Julia constrói uma distância entre o discurso dos personagens e o discurso da peça. O discurso da peça é um discurso crítico – mas não simplesmente porque pensa sobre a forma como os personagens se comportam, mas especialmente na medida em que destrincha os problemas apontados naquela situação.
Para além da diferença de classes que falava mais alto na peça de Strindberg, Christiane Jatahy acrescenta uma colocação sobre a separação cultural e social entre negros e brancos num país fundado sobre uma cultura escravocrata que ainda corre nas veias das cidades – longe de ser apenas no Rio de Janeiro. Parece que muito foi dito sobre isso. No entanto, no debate depois da peça, proposta dos Diálogos Transversais, Luciana Romagnolli apontou a visibilidade da questão de gênero, que talvez fique escamoteada. Esse é o terceiro ponto, e talvez o mais importante.
Não seria o caso de vermos, em Julia, um enquadramento da questão de gênero quando, por exemplo, durante o sexo, a câmera revela o constrangimento incrédulo no rosto da menina ao dar-se conta de que está sendo comida por um babaca? Que de repente está sendo tratada como um degrau num projeto de ascensão social oportunista, ouvindo um discurso egoísta bizarro enquanto é penetrada? Ou quando a atriz diz algumas frases como se a personagem estivesse repetindo falas que aprendeu em algum romance de banca de jornal, como “agora beija o meu pé”, “beija a minha mão”, “manda em mim”? A autoridade forçada sobre a mulher não aparece o tempo todo? A submissão forçada da mulher, e da mulher jovem, não é uma questão tanto quanto a submissão forçada do empregado, e do empregado negro?
E então refaço a pergunta: O que as Julias do século XXI têm a dizer para as senhoritas Julias do final do XIX? E vice-versa? E o que será que a Senhorita Julia de Katie Mitchell e Leo Warner vai nos dizer sobre isso?