Crítica da peça Teatro invisível do Matarile Teatro
Cena Contemporânea 2015
A peça do grupo Matarile Teatro, de Santiago de Compostela, na Galícia, uma variação de peça-palestra (talvez uma peça-conversa), traz um depoimento em palavras e imagens da atriz Ana Vallés, que também assina a direção e o texto (com Javier Martínez Alejandre), em parceria com Baltazar Patiño, que está na ficha técnica como criador de som, luz, cenografia e como ajudante de direção. O mote disparador da criação do espetáculo é o conjunto de perguntas cretinas que comumente se faz para as pessoas de teatro – pelo visto no mundo todo. São elas: “Por que você faz teatro?”, “Por que você continua fazendo teatro?” e “Por que você faz teatro dessa maneira?” O “dessa maneira” é o teatro invisível do título, que não faz concessões a expectativas alheias à sua razão de ser.
Essa última pergunta, especialmente, é feita com o (invisível) dedo em riste do pensamento pragmático que defende uma noção utilitarista das coisas, como se houvesse de fato um sentido para a vida em si, uma utilidade comprovada da nossa passagem pelo mundo. A atriz se pergunta por que o teatro deveria ter alguma utilidade, se não questionamos utilidade do amor, da amizade, do azul.
Ana responde rememorando situações e experiências do teatro e da sua vida enquanto artista, contando, entre imagens intermitentes de morte, encontros tão furtivos quanto memoráveis com Kazuo Ohno e Gilles Deleuze, citando filósofos e textos, como o ensaio de Georges Didi-Huberman sobre Pasolini e seu lamento sobre a extinção dos vagalumes, a invisibilidade destes ou a perda da capacidade de vê-los. As referências aos pensadores de teatro aparecem na forma de citações narrativas e visuais, como o espaço cênico que remete a Peter Brook, as imagens de Tadeusz Kantor e a bem-humorada história da viagem à Cracóvia para o enterro do encenador polonês.
Ana nos apresenta uma espécie de mapa das suas referências e de seus encantamentos, talvez no estilo do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg. O agenciamento memorialístico das imagens – trazidas das gavetas de uma mesa de trabalho e produzidas na cena – oferece ao espectador a possibilidade de fazer sua própria costura imprevista, percebendo a irrupção das sobrevivências de suas memórias do teatro – que, sendo de teatro, não são apenas pessoais, como nos prova o espetáculo. Elas encontram ressonância e pertencimento a uma história de vivência tão particular quanto coletiva, que sobrevive ao tempo em larga medida pela passagem oral do conhecimento e da experiência.
Experiência talvez seja uma palavra-chave para uma resposta possível à pergunta sobre a razão de ser do teatro. Ouvimos de muitos pensadores da vida moderna, como Walter Benjamim, e da atualidade, como Jorge Larrosa, sobre a defasagem da experiência na vida urbana contemporânea. Isso se deve à cada vez mais dispersa experiência do tempo e à redução do convívio presencial, com a crescente mediação tecnológica dos meios de comunicação e transmissão de conteúdos. Há expressões que exemplificam essa lógica, como “tempo é dinheiro” ou a ideia mesma de “perda de tempo”. A peça do Matarile Teatro, com sua lida tranquila com o tempo e o valor que dá ao compartilhamento oral da vivência na arte é um exemplo de uma obra que convida à experiência – e, naturalmente, ao teatro. A criação de Teatro invisível é uma forma – estética e política – que Ana encontrou de cuidar do teatro.
Vale ainda fazer a ressalva de que esse teatro supostamente invisível só não aparece nas narrativas imediatas dos sucessos forjados, que validam a si mesmas por uma visibilidade mentirosa, que têm a durabilidade e a relevância das “notícias culturais” satirizadas pela atriz em determinado momento. Pois é esse teatro invisível que entra para a história, que alimenta o teatro e nos habilita a ver de novo os seus vagalumes – ou simplesmente nos coloca de novo no melhor lugar para vê-los.
Sabemos que a palavra utilidade, usada no título desse breve e apressado texto crítico, não importa para quem faz teatro, amor, amizade ou o azul. Mas está ali como provocação: a presença mesma do azul cancela a utilidade da ideia de utilidade.