Três modos de abraçar o ar

Foto: Guillermo Turin.
Foto: Guillermo Turin.

Crítica a partir do espetáculo Instrucciones para abrazar el aire, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

São certamente muitas as faces da Ditadura, e também os ângulos sob os quais se pode experimentá-la. E se o Brasil tem vivido, nos últimos anos, um momento propício a revirar e reconhecer a presença da Ditadura em sua história, movimento semelhante decerto acontece em outros pontos da America Latina, como deixa ver o espetáculo Instrucciones para abrazar el aire, criado em 2012 pelo grupo Malayerba, com sede em Quito, no Equador. Tendo como ponto de partida a história real de uma criança seqüestrada em 1976, durante um ataque realizado por oficiais da Ditadura Argentina, o espetáculo recorre a três pontos de vista bastante distintos para recriar tal narrativa.

Construída, então, a partir de uma composição entre tais pontos de vista, fragmentados em breves cenas sempre interpretadas pelo mesmo casal de atores, a dramaturgia de Aristides Vargas – que também divide a cena com Charo Francés – se equilibra entre diferentes experiências de tempo, espaço e relação com o público, oferecendo ao espectador distintas possibilidades de se identificar e se relacionar com a história ali contada, assim como com a própria Ditadura – seja ela qual for. Atacar, defender e simplesmente surgem, então, como três modos de se relacionar com uma realidade que se mostra impossível de ignorar.

A partir de um registro quase farsesco e claramente cômico, o casal de cozinheiros ataca a Ditadura, produzindo subversivos jornais que servem como embalagem para inusitadas “conservas de coelho”. E, como se tal ação se inevitavelmente desdobrasse em outras de mesma natureza, eles também se atacam o tempo todo, seja fisicamente, com um maço de temperos, ou ainda por meio de discussões corriqueiras que colocam em cheque desde as hierarquias inerentes a qualquer ofício e também a importância de se manter à sombra dos acontecimentos, lembrando que qualquer tipo de destaque sempre traz seus custos.

O casal de vizinhos, por outro lado, apesar dos poucos quilômetros que o separa do conflito anunciado, apenas observa os acontecimentos ao redor, como se nada tivesse a ver com aquilo, ainda que estejamos, claro, todos imersos em um mesmo contexto social e humano. Reproduzindo, em cena, uma atitude tipicamente burguesa, o casal de vizinhos desconfia, analisa e julga, mas faz tudo isso da janela do próprio apartamento, mantendo uma distância aparentemente segura em relação à narrativa que, aos poucos, se desenvolve em cena.

Situados, ali, como vítimas da Ditadura, o casal de avós se defende. Permanentemente abalados pelo sumiço da neta, assim como pela morte dos pais da menina, eles se defendem do permanente risco de esquecer-se daquilo que passaram. Defendem-se da possibilidade de perderem o fio da meada e o sentido da vida, e, por isso, todos os dias, insistentemente, contam a mesma historia um ao outro, uma história que lhes afirma o próprio vinculo e lhes devolve o sentido de permanecer neste mundo.

É a partir das próprias memórias um que eles se protegem de uma tristeza profunda que vez ou outra se aproxima, é com poesia que se protegem das cores que se apagam após a perda de uma criança, assim como do vazio que se revela após a tragédia social e familiar que lhes serve como marca definitiva. Mesmo deslocados em relação, continuam defendendo-se da Ditadura e de suas marcas, ao compartilharem, diariamente, o desejo e a esperança de encontrar a neta perdida, e ao pactuarem, também diariamente, pela preservação desta memória que lhes cabe embalar e abraçar como uma criança.

Cada um a sua maneira, os três casais compartilham com o público seus modos de se envolver em uma mesma realidade, ao mesmo tempo concreta e imaginada. Convertidas em utopias revolucionárias, dramas burgueses ou memórias íntimas, tais realidades poderiam dissolver-se no tempo e no ar, mas mantêm-se vivas ao serem abraçadas pelo teatro, ali tratado como uma arena propícia ao compartilhamento de experiências – sejam passadas ou presentes – que não devem ser naturalizadas nem esquecidas.

 

Publicado no site da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015:

http://www.cooperativadeteatro.com.br/10mostra/blog/

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