Crítica da peça Anatomia do fauno do Teatro da Pombagira – Coletivo de Criadores
II Bienal de Teatro da USP
Em cartaz na SP Escola de Teatro e integrando a programação da II Bienal de Teatro da USP, Anatomia do fauno do Teatro da Pombagira – Coletivo de Criadores apresenta uma dramaturgia de estados com imagens da vida sexual homoafetiva na solidão da vida na cidade. Com direção de Marcelo D`Avilla e Marcelo Denny, o elenco formado por 21 homens e uma mulher, Camilla Ferreira, realiza movimentos predominantemente coreográficos e alguns poucos dos quais se pode vislumbrar uma narrativa, uma ideia de cena mais identificada com o teatro. Assim, não temos personagens, mas figuras praticamente despersonalizadas, corpos mais que pessoas. As imagens são por vezes alegóricas, por vezes literais.
O espetáculo tem dois momentos, norteados por sentidos opostos. O primeiro, mais longo e mais tenso, mostra os corpos numa perspectiva sexual violenta, solitária, nada romântica, em que líquidos, fluidos corpóreos e externos se misturam e se espalham, muitas vezes respingando o espectador. A ideia da proximidade física do espectador parece condizente com a poética das imagens que talvez perca a dimensão de plasticidade à distância. Algumas imagens são fortes, têm presença e uma estranha beleza, mas outras são apenas explícitas e reiterativas, o que pode provocar uma oscilação de interesse no espectador. A duração de alguns quadros também contribui para certo esvaziamento. O esgarçamento acaba por jogar luz sobre a vaidade do ator por trás do trabalho, enfraquecendo o trabalho em si. No segundo momento, isso se desfaz, mas voltaremos a essa parte mais à frente.
É perceptível que o grupo realiza a sua proposta neste espetáculo. No entanto, algumas questões da proposta mesma podem ser brevemente discutidas aqui, também como problemas gerais do teatro, mais que da peça especificamente, embora esses problemas estejam ali. Uma delas é a ideia de entrega – o que estimula o problema da vaidade acima mencionado. Acontece com frequência quando um ator ou uma atriz está fazendo um trabalho que demanda um esforço físico exacerbado ou uma exposição pessoal além do comum, que ele ou ela fiquem envaidecidos da própria entrega. Isso também acontece porque é comum que as pessoas fiquem elogiando esse tipo de desempenho. Por mais que o teatro seja feito de méritos compartilhados, os trabalhos individuais também merecem ser celebrados, certamente. O problema é quando o valor de desempenho da entrega se sobrepõe ao trabalho e fica visível na cena.
A relação com o espectador também pode ser levantada. É uma espécie de recalque do teatro querer incomodar o espectador pela condição mesma de ser espectador. O espetáculos de artes cênicas constituem a única categoria de obras de arte que simplesmente não acontecem sem espectador. Mesmo a performance art pode ser realizada sem espectador, tendo apenas registro audiovisual ou fotográfico e não deixa de ser performance. Peça de teatro sem espectador é ensaio. Por que então querer que o espectador deixe de ser “apenas” espectador, “meramente” um espectador, se essa é uma condição ontológica do teatro? A ideia de sujar o espectador, deixar sua roupa manchada ou com cheiro da mistura de líquidos e fluidos que se espalham pelo chão do espaço cênico é anacrônica nesse sentido. A querela do teatro consigo mesmo continua sendo uma discussão válida? Não superamos isso ainda?
Na segunda parte, acontece uma mudança de estado significativa, que chega como um alívio e consegue atingir uma leveza imprevisível, tendo em vista a tristeza e a agonia da primeira parte da peça. E o que me apareceu muito bonito é que a transição parece se dar justamente com a entrada em cena de uma mulher. Os atores encenam um convite a uma pessoa da plateia que de pronto aceita e se junta à cena. Percebemos em um instante que se trata de uma combinação prévia, até porque eles não ficam tentando nos enganar muito tempo. Logo ela se despe e inicia uma coreografia com eles. Sua presença traz uma alegria contagiante para a cena e toda a movimentação se torna uma grande celebração, da qual alguns espectadores são gentilmente convidados a tomar parte. Nesse ponto, com as vaidades menos evidentes e uma relação mais amigável com o espectador, o espetáculo se encerra com uma virada cheia de esperança para a vida lá fora.