Crítica do espetáculo Cubalândia, do grupo El Ciervo Encantado de Cuba, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)
II Bienal Internacional de Teatro da USP
5 de dezembro de 2015
As dimensões territoriais de Cuba são inversamente proporcionais às paixões que essa ilha já despertou em gente de todo mundo. O cromatismo afetivo compõe um paradoxo de julgamentos, o que inclui sua própria população. Da revolução socialista à abertura ao capitalismo, cabe todo tipo de interpretação dos que estão de fora aos que estão lá dentro. O solo Cubalândia, do grupo El Ciervo Encantado de Cuba, com a atriz Mariela Brito e direção geral de Nelda Castillo, – exibido dentro da programação II Bienal Internacional de Teatro da USP – aplica a chave do grotesco para criticar a política dos irmãos Castro e seus companheiros e expor uma visão de decadência cultural, daquele país que já foi apontado como o utópico laboratório do socialismo.
A figura que surge nessa reorganização da economia cubana, apresentada no espetáculo, é a “cuenta-propista” – a empresária por conta própria, a empreendedora. Yara, a Chinesa, tem três licenças para trabalhar e oferece excursões pelos lugares paradisíacos da ilha. Ela salienta o tempo todo que viajar, com ela, para Varadero, Viñales, Trinidad ou Santiago de Cuba é um investimento e, consequentemente, terá retorno.
Seus clientes potenciais são os próprios cubanos, os que recebem seus salários em CUP (moeda nacional). A outra é o peso cubano conversível (chamado de CUC), usada para comprar alimentos, pagar viagens e hotéis. Então, correm duas moedas no país, uma com mais valor que outra. Talvez aí resida uma crítica severa à simulação de igualdade a partir dos dois dinheiros: dois pesos e duas medidas. Mas se a ideia era realmente essa em Cubalândia, de detonar com a economia subterrânea, essa sutileza parece que não acertou o alvo para a plateia brasileira.
Não é possível conferir o desempenho de Mariela Brito descolado da realidade da ilha, que já foi o ideal refúgio socialista. Nem deixar de pensar na mundialização da cultura, com todos os prejuízos que isso acarreta.
A protagonista vende a ilha para turistas e nativos. Além das belezas edênicas, ela propõe uma restituição financeira a partir de alguma atividade escusa: contrabandear charutos ou coisas parecidas. Yara China é uma cubana que acumulou bens baratos e é capaz de quase tudo para sobreviver. Ela é uma figura festiva, otimista, que fala o tempo todo de maneira apressada e nem dá para entender o que ela está dizendo direito (tem as legendas, que ajudam). A protagonista se apresenta vestida de forma espalhafatosa. Peruca, unhas excessivamente longas, lábios pintados com cores brilhantes, as roupas apertadas e curtas (short e mini blusa), sapatos plataforma e um conjunto de pulseiras e brincos dourado formam sua indumentária. A maquiagem pesada e um contorno preto, que lembra a pintura do palhaço, e dois dentes de ouro completam o layout desse rosto que termina ganhando ar de pouca confiabilidade.
Para armar sua tenda e estabelecer o seu negócio, Yara, a Chinesa, carrega consigo um mapa fragmentado da ilha, chamado de “Doble Moneda”, criado pelo artista Lázaro Saavedra. Instala um cartaz de Fidel e Raul Castro e uma pequena estátua de um índio contra mau olhado.
Nesse jogo ela procura desmitificar ícones. Se a montagem de sua figura já compõe o exagero, os códigos gestuais clamam pela vulgaridade. O riso é disparado pelo mau gosto da cena, do grotesco, do ridículo. Em sua atuação como marqueteira para vender a ilha, a personagem dança, com requebros que lembram o funk ou pagode em que a linguagem chula predomina e isso é acompanhado pelos movimentos do corpo. Yara, a Chinesa parece uma mistura de personagens popularescas de Zorra Total, Gretchen, falsa cigana e as novas celebridades da música apelativa.
O discurso é cínico e exagerado. Sua sátira aos encantos da Cuba que tenta vender desperta um desconforto. Parece-me que há um fundo ético e estético nessas escolhas. De denúncia de algo podre dentro do arquipélago. Mas muitas questões me vieram à mente durante a apresentação carregada de zombaria e escárnio, piadas e ridicularização da realidade atual, que remete à história cubana, seus mais de 50 anos de revolução e do embargo econômico à Cuba socialista provocado pelos Estados Unidos.
Espero que minha percepção não seja muito idealista de uma Cuba que visitei há mais de 15 anos, que se abria aos poucos e, mesmo com as controversas opiniões do povo cubano, ainda guardava uma aura de resistência. A Revolução Cubana sempre defendeu seu estado de perfeição, com as conquistas revolucionárias. A pressão externa (e interna) para desestabilizar o governo já passou por muitas etapas. Fica a sensação de uma construção inacabada. Diante de um possível fracasso, o espetáculo grita em alto e bom som que a alienação se instalou também na sociedade de José Martí.
Talvez a “elegância” de decadência seja uma forma de mostrar a precariedade de um povo, projetada na figura patética da agente de turismo de uma Cuba temática. Talvez fale alto de uma miséria espiritual que chegou depois de tantos anos de adversidades. Quem sabe uma crítica mordaz ou um espelho a alertar dos erros e excessos sem precedentes.
Se o cubano sabe zombar assim de seus infortúnios; o ridículo, o infame, o kitsch de Cubalândia que aciona seu arsenal contra a política interna de reposicionamento do país conduzida por Raul Castro leva a crer que as novas estratégias de dominação dos Estados Unidos são esquecidas ou sublimadas no espetáculo.
De todo modo, para uma plateia como a brasileira, que está exausta com os personagens caricatos da indústria cultural, que visam o riso fácil e sem grandes reflexões, a figura de Yara, a Chinesa parece mais uma dessa galeria bizarra e descartável.