O humor de um teatro cínico

Crítica da peça Notas de cozinha, do grupo colombiano Teatro Del Embuste

II Bienal de Teatro da USP

Em 1988, circulou no Brasil uma propaganda dos publicitários da conhecida agência W-Brasil (aquela da canção do Jorge Bem) para o jeans Staroup intitulada Passeata. Jovens vestindo calças jeans da referida marca fugiam da polícia que tentava dispersar uma passeata. Em câmara lenta, os policiais tentavam agarrar os jovens – sim, pelas calças. Tudo isso ao som de uma valsa de Strauss, composta logo depois que ele saiu da prisão, onde esteve por conta de suas composições revolucionárias. Era recente a abertura democrática no Brasil e a memória de passeatas remetia imediatamente aos anos de ditadura das últimas décadas. O comercial ganhou o Leão de Ouro em Cannes, entre outros prêmios. Um de seus criadores é Washington Olivetto, marketeiro famoso por campanhas emblemáticas da história da TV brasileira, como o Garoto Bombril e a frase “o primeiro sutiã a gente nunca esquece”. O outro é Nizan Guanaes, diretor de marketing da campanha de reeleição de Fernando Henrique Cardoso em 1998 e sócio do marketeiro da eleição de Lula em 2002, Duda Mendonça. Tinha uma vaga memória dessa propaganda quando me deparo com ela em uma peça de teatro em São Paulo, em um momento em que a polícia está novamente agredindo estudantes pelas ruas – sim, em pleno 2015. A história do Brasil é cínica – e feita de propaganda.

Notas de cozinha, do grupo colombiano Teatro Del Embuste, fez apresentações no Tusp por ocasião da II Bienal de Teatro da USP. A peça, encenação do catalão Marc Caellas a partir de um texto do argentino Rodrigo García, apresenta o percurso de três personagens por diferentes situações que apresentam clichês da vida urbana na atualidade e desejos fúteis de uma sociedade orientada pelo consumo do status. Não há continuidade narrativa entre uma e outra cena, mas a continuidade estabelecida pelos códigos de atuação gera um acúmulo interessante entre as cenas. Primeiro porque geralmente, nesse tipo de peça (em que não há uma narrativa, um cosmo fictício e que tem um desejo de denunciar questões sócio-econômicas do mundo contemporâneo), os atores e atrizes se esforçam por negar a ideia de personagem, enfatizando que eles estão ali com a sua persona de artista, assumindo os discursos na primeira pessoa – mesmo quando o texto é declaradamente de outra pessoa, o autor ou autora de um texto muitas vezes previamente escrito.

A ideia de que temos personagens passando por aquelas situações parece parodiar o gênero drama de estação, que conhecemos por peças de August Strindberg como O Caminho para Damasco e O sonho, ícones de uma ideia de teatro sério, denso, intenso, que pode proporcionar grandes atuações, daquelas que fazem atores ganharem prêmios – situação que é alvo de crítica em uma das cenas da peça. O elenco formado por Hernán Cabiativa, Matías Maldonado e Martha Márquez não se esforça por fazer seus personagens com a carga de seriedade e a demanda de coerência características de formas como o drama, por exemplo. É quase uma paródia da ideia de fazer personagens. Não haveria como questionarmos se eles estão “fazendo bem” ou se nós “acreditamos” neles. Nada disso importa. Mas é interessante quando artistas de teatro misturam as convenções e suas formas. As poéticas contemporâneas também têm as suas convenções, também sofrem ação do tempo da mesma maneira. A paródia também aparece no título. Notas de cozinha é o título de uma publicação dos cadernos de Leonardo da Vinci em que ele anotava receitas para grandes banquetes.

No drama de estação, um personagem passa por diferentes quadros, encontrando outros personagens, outras situações, como se essa espécie de jornada pudesse se configurar como uma formação do indivíduo. Ouvindo a conversa entre o elenco, o diretor da peça e o crítico argentino Jorge Dubatti, na Escola de Espectadores que integra a programação da Bienal, soube que a encenação original da peça era itinerante, realizada em um teatro velho ou abandonado, na qual os espectadores faziam um percurso pelas cenas criadas com uma abordagem site-specific. Imagino que a peça poderia ser mais interessante feita dessa maneira que como na adaptação realizada em São Paulo. Essa informação reforçou ainda mais, para mim, o jogo com o drama de estação, mas reiterando que o percurso a fazer não leva necessariamente a lugar nenhum. Imagino a peça percorrendo um teatro antigo como um lugar que é cheio de coisas velhas, mas também um lugar que tem a sua história e a sua ação sobre nós. Em Notas de cozinha, não há possibilidade de aprendizado ou amadurecimento desses personagens. Nem dos espectadores. A peça tem uma atitude crítica, mas não está querendo “iluminar” o espectador, nem mostrar o quanto ele é fútil e manipulado. Ainda bem.

A primeira cena da peça anuncia certa descrença na ideia de impacto. Martha Márquez  diz um texto brilhante na primeira pessoa do singular, contando que foi chamada para uma conversa com a diretora da escola da filha por dar cachaça para a criança aturar as aulas estúpidas e comer bem no almoço. A mãe despreza o ensino regular e lê, para a filha bebê, livros de Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e J. M. Coetzee. Em cena, uma menina linda, de seus três ou quatro anos de idade, sentada à mesa. Ali pelo palco, um dos atores brinca com um cachorro. A criança e o cachorro estão ali sem que nada aconteça com eles. Mas isso não me parece um fracasso. É como se os artistas dissessem: imagina uma criança fofinha como essa, que tem um cachorro fofinho como esse, chegando à escola de porre. E só. É como se a cena fosse uma carta de intenções da peça, escrita com dois ou três monossílabos de indiferença e um sorriso cretino. Ali me parece que não há desejo de ruptura formal ou de impressionar o espectador – a lógica da ruptura se esgotou com as vanguardas do século XX e o que acontece do lado de fora do teatro é tão bizarro, inverossímil e chocante que qualquer coisa que façamos em cena parece brincadeira infantil.

Depois dessa primeira ótima cena, presenciamos outras situações, algumas mais inspiradas, outras menos, variação que deve ter relação direta com a pertinência de cada situação de acordo com o contexto em que a peça se apresenta. O espetáculo conta especialmente com a habilidade de Matías Maldonado, comediante de mão cheia que nos dá a sensação de estar fazendo tudo pela primeira vez. A comicidade é a ferramenta crítica mais eficaz do espetáculo. Arrisco dizer que o espectador que não conseguir rir com a peça provavelmente não vai ser atravessado pela sua potência crítica.

Em determinado momento, na cena em que eles estão em um restaurante caro, a atriz descreve o que ela imagina que seja uma imagem refinada. A descrição que ela faz é bastante sem graça, até que aparece a projeção de um videoclipe do pianista Richard Clayderman. É hilário perceber que fomos culturalmente colonizados por essa classe de imagens midiáticas, com esse grau de cafonice. Soma-se a isso a presença do vídeo mencionado no início do texto, uma propaganda da qual as pessoas sabem o título e que ganhou prêmios – como uma obra. A presença desse vídeo é um achado da dramaturgia do diretor. Ele aponta como a propaganda pode ganhar status de criação em um sentido bem próximo ao artístico – questão abordada por Susan Sontag em relação às fotos feitas para campanhas publicitárias. A propaganda ocupa um lugar de destaque na nossa relação com as imagens. Em vez de fazer um discurso sobre isso, a peça simplesmente insere os vídeos, estabelecendo assim uma lida singular com a economia das imagens. A acidez do espetáculo não é acusatória, não aponta culpados nem heróis, nem soluções.

O fato de que os artistas, na atitude em cena, não se levam muito a sério, que eles não estão fazendo coisas intensas e dramáticas, abre uma possibilidade para que o espectador não se leve tão a sério também. O cinismo no humor tem sido determinante na lida dos brasileiros com as reviravoltas surreais da política nacional. As manchetes do Sensacionalistacirculando pelo Facebook e a coluna do Gregório Duvivier, para citar alguns exemplos, têm uma eficácia que os melhores discursos do Jean Wyllys, esclarecedores e inteligentes, não têm. Com o humor das tirinhas da Laerte, por exemplo, acho possível que aquele cidadão distraído, que está meio boiando nisso tudo, veja com olhos críticos o que está se passando no país. No teatro é a mesma coisa. É mais fácil uma pessoa se achar ridícula por querer jantar na Famiglia Mancini quando uma peça faz com que ela ria de si mesma do que quando o teatro a acusa de ser medíocre pelo simples fato de ser classe média – quando os artistas na verdade pertencem à mesma classe social desses espectadores que desprezam.

Na ideia mais comum de teatro que tem atitude crítica, os artistas de teatro às vezes caem na ingenuidade de achar que estão em um lugar de superioridade. Em Notas de cozinha, estamos todos fritando na mesma panela, o artista não é o messias e o inimigo não é o outro.

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