Foto: Mayra Azzi/ Divulgação

NEM DEUSES NEM BESTAS

Crítica a partir do espetáculo (A)Polônia, por Soraya Belusi (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Os heróis e deuses gregos não são mais suficientes para explicar a condição trágica do humano. Não irão nos salvar nem nos absolver, embora insistamos em delegar a eles o motivo de nossa condenação. Mas se já não espelhamos nossos atos nos dos nossos antepassados, carregamos em nossa formação os traços de uma história por eles construída. Por isso, o Nowy Teatr e o diretor Krzysztof Warlikowski convocam, entre outros, trechos das narrativas de Alceste, de Eurípedes, e Oresteia, de Ésquilo, somadas a Apolonia Machczyńska, escrita por Hanna Krall, para construir um mosaico de reflexões e imagens acerca das questões de culpa, perda e sacrifício que permeiam a história da humanidade e permanecem presentes no país europeu que assistiu ao genocídio promovido durante a Segunda Guerra Mundial.

Em (A)Polônia, espetáculo que integra a III Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp –, a condição heroica, apresentada a nós herdeiros ocidentais do pensamento grego, é aqui colocada em xeque: quão ou mais nobre é aquele que doa sua vida em nome do outro, da pátria ou de uma ideologia do que aquele que deixa outro morrer no lugar de si? Não se trata de responder a essa pergunta, ou isentar qualquer uma das partes, mas sim mostrar ambas as circunstâncias como demasiadamente humanas.

Ifigênia doou sua vida em nome de sua terra natal, convencida de que seu sacrifício era heroico. Alcestes entregou-se à morte em troca da vida de seu marido, considerando ser esta a coisa certa a fazer. Apolonia morreu porque tentou salvar a vida de um grupo de judeus, embora soubesse que estava se condenando, com este ato, à morte.(A)Polônia nos apresenta tais narrativas contemporaneamente não como imposições do destino, mas, sim, frutos de escolhas – feitas tanto por quem morre quanto por quem deixa morrer. Nem deuses nem bestas. É preciso aceitar isso para seguir adiante. Para ambos obterem o perdão – a única possibilidade de salvação diante do peso da culpa.

Mas Warlikowski e companhia não se prendem apenas ao que nos dizem e nos fazem pensar os mitos. A atualização que impõem à montagem – com direito a conversas entre os personagens trágicos gregos por internet ou ainda uma banda de rock alternativo que age como uma espécie de coro – recai também sobre os discursos, atravessados por diferentes localizações no tempo e no espaço. Dividida em duas partes, (A)Polônia apresenta um primeiro momento em que os heróis e deuses gregos são confrontados por uma perspectiva contemporânea, em que seus atos são questionados, assim como papéis muitas vezes considerados definitivos, divididos entre os justos e os injustos, o que mata, o que morre e o que deixa morrer em seu lugar. Num segundo momento, iniciado com uma palestra sobre o direito dos animais, o que se evidencia é uma perspectiva de presente, que de alguma maneira nos provoca a pensar o que “aprendemos” com a maior tragédia da história da humanidade. Matar deixou em algum momento de ser um negócio? – seja ele político, financeiro ou pessoal. E se fosse você?

Representadas por manequins que ficam em cena durante quase todo o espetáculo, abandonadas nas salas de jantar, sofás e cantos da casa, sempre observando os adultos – é pela perspectiva delas que muitas vezes a filmagem nos é apresentada -, as crianças, que tudo testemunham e são as únicas que não agem nesses atos, podem ser vistas como uma possibilidade de futuro. Elas sobreviveram e pode caber a elas “deixar que os mortos cuidem dos mortos e os vivos cuidem dos vivos”.

O espectador se vê então na tarefa de passear pelos tempos históricos propostos pelas dezenas de cruzamentos de referências dramáticas e literárias apropriadas tanto de discursos clássicos como de obras contemporâneas, fazendo com que uma interfira sobre a percepção da outra, criando uma desestabilização permanente das certezas e convicções, e gerando, em quem vê, uma sensação de indecibilidade – de seu próprio entendimento – às vezes angustiante, no sentido de colocá-lo em um estado de inquietude, tormento, na tentativa de estabelecer novos parâmetros para relacionar-se com a obra a cada “isca” lançada.

Fruto de uma criação empreendida de forma colaborativa pelos participantes do processo, em que todos puderam contribuir como uma voz na tessitura da obra, (A)Polônia leva para o resultado final, o espetáculo, os traços que esse tipo de procedimento costuma carregar, em que os fragmentos criados no processo muitas vezes não precisam ser conectados de maneira lógica e causal, aceitando a instabilidade e a não-unicidade como alternativas, assim como um excesso de informações e referências que obriga o espectador a fazer escolhas – do que observar, do que significar, do que costurar etc. – e também a lidar com a perda. Nesses casos, não há certezas. Nem apenas o certo e o errado. É assim na vida, é assim na arte.

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