Novos sujeitos de uma nova política

"Isso não é uma mulata" (Mônica Santana). Foto: Leonardo Pastor
“Isto não é uma mulata” (Mônica Santana). Foto: Leonardo Pastor

Crítica a partir dos espetáculos “Nós” (Grupo Galpão/MG), “Isto Não é Uma Mulata” (Mônica Santana/BA), “Antígona Recortada” (Núcleo Bartolomeu de Depoimentos/SP), “Mamba Negra” (Diego Alcântara/BA), “Trilogia Antropofágica Ato 1: Permanecer” e “Trilogia Antropofágica Ato 2: Resistir” (Perro Rabioso/Uruguai), “Villa + Discurso” (Teatro Playa/Chile), “I Am Not Ashamed of My Communist Past” (Sanja Mitrovic e Vladimir Aleksic/Sérvia) e “Amadores” (Cia. Hiato/SP), por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

FIAC Bahia 2016

 

I

Há quem diga e acredite que tempos de crise política e social, como esses que vivemos agora, são também oportunidades de amadurecimento e, quem sabe, transformação. Enquanto alguns sujeitos apostam suas fichas, energias e atenções à macropolítica que diariamente ocupa as ruas e capas de jornais, outros, por sua vez, encontram na micropolítica do cotidiano – ou, quem sabe, das artes – a possibilidade de interferir com os próprios corpos e discursos sobre a realidade e o imaginário social que permanentemente construímos juntos.

Segundo o cientista político indiano Ranabir Samaddar, com quem nos encontramos ao longo deste texto, é característico aos nossos tempos, sobretudo no que se costuma chamar de sul-global, a emergência de sujeitos políticos que abandonam a atuação por tortuosas vias institucionais e especializadas para agirem por conta própria, tornando-se, assim, representantes de si mesmos. Em vez de alienados escravos de uma política guiada por outros, tais sujeitos tornariam-se, assim, autores da própria política, trazendo, em suas ações, presenças e discursos, miragens, desejos, vias de escape e atos de resistência em direção a formas de existência que escapam aos discursos hegemônicos, e são afirmadas, a partir de então, como igualmente possíveis.   

Declaradamente interessada em participar desse processo, a curadoria do 9º Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia (FIAC), realizado em Salvador, entre os dias 25 e 31 de outubro de 2016, adotou o lema “meta a mão” como eixo político e ofereceu ao público um panorama bastante diverso de criações contemporâneas que, não por acaso, pressupõem presença, participação e engajamento como base das relações entre artistas e público, deixando quase sempre de lado as ideias de ilusão e representação que em muitos imaginários ainda se associam diretamente à experiência do espectador das artes cênicas.

Reunindo trabalhos relacionados aos campos do teatro, da dança e da performance, o 9º FIAC ultrapassa em muito a ideia de um festival como mera mostra de espetáculos, constituindo-se, ao mesmo tempo, como um amplo circuito de ações e práticas de convivência, colaboração e participação, seja dentro ou fora das salas de teatro. Trata-se, nesse sentido, de um festival cuja programação prevê também sucessivas e variadas situações para o encontro, tais quais ateliês coletivos, conversas entre artistas e espectadores e até mesmo dinâmicas relacionadas ao sistema político das artes cênicas, além de festas realizadas em diferentes espaços públicos e semipúblicos da capital baiana.

Seja antes, durante ou depois dos espetáculos, o que se percebe ao longo do festival são múltiplas situações que ressaltam a dimensão coletiva da existência humana e a permanente possibilidade de troca com o outro, abrindo variados caminhos à experimentação de novas políticas de encontros e relações entre os múltiplos sujeitos que integram o sistema da arte.

II

Pesquisador de temas relacionados à justiça e aos direitos humanos, Samaddar defende que esses novos sujeitos de uma nova política podem ser entendidos, em um primeiro nível, como cidadãos militantes. Podem ser entendidos, portanto, como aqueles que lutam em barricadas, engrossam manifestações, reúnem massas, eventualmente organizam partidos e lideram, a partir de diferentes estratégias, ataques aos poderes instituídos.

Pois parece, em certo sentido, ter sido esse o movimento realizado pelo Grupo Galpão (MG) durante a criação do espetáculo “Nós”, que abriu a programação do FIAC 2016. Geralmente lembrados pela adaptação de conhecidos nomes da clássica literatura dramática europeia, assim como por figurinos, imagens e acontecimentos de força espetacular, os integrantes do Grupo Galpão trazem, em “Nós”, reverberações de seu próprio cotidiano, repleto de pequenas tensões e profundas reflexões fundadas na política do dia a dia, as quais se articulam em uma dramaturgia original que leva assinatura de Eduardo Moreira e Márcio Abreu.

Despidas de personagens ou de um enredo que os leve a outro lugar que não o próprio acontecimento teatral, as figuras com quem nos encontramos em “Nós” nos convidam a epifanias existenciais, breves apocalipses e acidentes sob medida, revelando faíscas que, em tempos como os nossos, entre nós, não custam a surgir. Do alto de suas histórias de vida e de anos de convivência, os atores e atrizes que regem o espetáculo constituem-se como presenças que progressivamente tensionam a si mesmas e ao outro, e assim revelam ainda tensões em relação ao ambiente humano e social que recriamos – ou deixamos de recriar – a cada instante.

Propondo aos seus atores-personagens o desafio da coexistência em um contexto de nítidas diferenças, “Nós” nos acolhe pelo universo social que reconhecemos ter em comum com seus intérpretes, assim como nos provoca pelos contrastes e impasses que sucessivamente leva à cena. Entre excelências e precariedades, entre explosões e contenções, nos vemos ante a presenças que se tensionam a partir de repetições, reiterações de discurso e, sobretudo, da insistente e desafiadora presença diante do outro.

Se, numa primeira mirada, o espetáculo ressalta evidentes individualidades dentro do grupo, o que se constitui, ao longo do tempo, parece ser, de fato, uma espécie de presença coletiva. Percebemos, aos poucos, inclusive, que talvez também façamos parte deste coletivo, à medida em que as questões que lhes tocam, vez ou outra, igualmente parecem nos tocar. Transitando quase sempre entre os limites do indivíduo e as demandas do coletivo, convivemos, em “Nós“, com perguntas que se perdem no ar, respostas que se encontram aos poucos e artistas que buscam em cena, diante do público, afirmar a própria presença e a própria voz.

III

Enquanto “Nós” talvez se apresente como uma guinada do tradicional Grupo Galpão em direção à complexa realidade social brasileira e aos dilemas políticos que ao nosso povo se impõem, outras criações trazem recortes e perspectivas mais específicas em relação à nossa sociedade. Seguindo a conversa com Sammadar, nos aproximamos, então, de outra percepção possível sobre o sujeito político: aquele que está “sujeitado” a uma certa configuração política, mas, consciente da própria sujeição, busca submeter a política à sua própria visão, tornando-se, de algum modo, autor dessa política.

Em “Isto Não é Uma Mulata”, trabalho concebido e realizado pela artista Mônica Santana (BA), o que se tem é uma nítida inversão da perspectiva sob a qual geralmente se narra a história colonial e contemporânea do Brasil. A partir de recursos performáticos, dramáticos e narrativos, o espetáculo revê a participação da mulher negra na construção da história e, sobretudo, do imaginário social brasileiro. Recusando a condição de objeto, assim como os infindáveis estereótipos negativos que há muito contribuem para a manutenção de uma situação de subalternidade, a artista reivindica e afirma a mulher negra como sujeito legítimo de uma história a ser urgentemente recontada e reescrita.

Para tanto, ao longo do espetáculo, a atriz empresta seu corpo a diferentes imagens e presenças comumente associadas à mulher negra em nossa sociedade. Se, de início, nos deparamos com a invisibilidade de uma faxineira uniformizada, logo somos surpreendidos por algumas imagens embranquecidas desse mesmo corpo, fazendo referência a um fenômeno que, por muito tempo, tem condicionado a inserção de artistas negros em espaços de poder historicamente reservado aos brancos.

Ainda que uma camada crítica e extremamente irônica acompanhe boa parte do espetáculo, sobretudo no que se refere à apresentação desses estereótipos a serem negados e combatidos, há também momentos em que a atriz traz a própria voz à cena, rompendo, sem meias palavras, com um processo de silenciamento e objetificação iniciado séculos atrás.

Realizado pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (SP), o espetáculo “Antígona Recortada”, por sua vez, encontra seu esteio na linguagem do rap, que empresta à cena sua força política e contestadora. Tendo o mito grego de Antígona como eixo a ser apropriado e, de modo bastante contundente, aproximado à realidade brasileira, a montagem se volta às situações que remetem a diferentes periferias urbanas do país, nas quais não raro se constitui uma espécie de sub-humanidade privada de toda sorte de direitos e assistência estatal.

O espetáculo chama atenção, assim, ao fato de que nesses contextos, tal como na mítica história de Antígona, muitas vezes a irmãs, irmãos, pais, filhos e cônjuges, ainda é negado o direito de enterrar seus mortos. Em vez de se submeter a essa política, no entanto, a criação do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos a converte em uma espécie de concerto cênico no qual tais condições de vida são contestadas e, como é de costume no universo do rap, transfiguradas em poesia.    

Acrescentando um outro espectro à série de relações de exclusão e subalternidade que fundam a lógica colonial, tal qual o machismo e as relações centro-periferia, a montagem “Mamba Negra”, realizada por Diego Ancântara (BA), se volta a aspectos da cultura e da religiosidade africanas, igualmente relegadas a um lugar marginal em nossa sociedade.

Em cena, no entanto, o que se vê é a criação de um universo bastante próprio, no qual se combinam ancestralidade e apocalipse, lixo e luxo, passado e futuro. Chamando atenção às múltiplas ancestralidades que nos constituem, assim como à permanente possibilidade de reinvenção dessas ancestralidades, a montagem propõe ao público um significativo deslocamento de pontos de vista e campos de referência, fazendo-nos experimentar, por alguns instantes, uma realidade bastante distinta do quadro hegemônico que geralmente encontramos do lado de fora do teatro.

A partir de um uso não convencional do espaço cênico, no qual atores e público são dispostos em relação de grande proximidade, “Mamba negra” constitui-se como um espetáculo essencialmente performático no qual elementos da cultura africana e afro-brasileira ganham um tratamento contemporâneo, estabelecendo diálogos com discussões de gênero, entre outros temas e estéticas insurgentes.  Em vez de construir uma linha reta, pura e essencial em direção a um futuro cristalizado e pré-conhecido, a montagem parece defender uma lógica mais afeita a contaminações e “zigue-zagues”, apostando na imaginação radical da arte como esboço de um futuro emergente, ainda por ser construído.

IV

Mais adiante, por sua vez, Samaddar nos esclarece que o conceito de sujeito político não necessariamente se refere a militantes individuais, mas também a fenômenos coletivos, geralmente associado à ideia de multidão. Tal sujeito, em sua visão, poderia ser entendido tanto como um produto de regimes autoritários quanto de democracias, a partir de pontos-cegos que, em cada contexto, não tardam a se revelar. De um modo ou outro, tal processo de subjetivação certamente não costuma se dar no âmbito das instituições formais, como o governo, por exemplo, mas, sim, em meio a uma política que passa a se estender também ao povo, constituindo-o como sujeito capaz de alterar a própria história.

Criada a partir de uma interlocução do grupo Perro Rabioso (Uruguai) com o artista brasileiro Marcelo Evelin, a montagem “Trilogia Antropofágica Ato 1: Permanecer” nos apresenta uma obra sem atores, convocando o próprio público a ocupar uma plataforma vibratória coberta por carvão. Como se formássemos uma rede temporária de voluntários, somos convidados, no entanto, a nos alternar, um de cada vez, sobre a plataforma que recorrentemente se agita, não se sabe se devido a movimentos tectônicos ancestrais ou insurgências sociais contemporâneas. Como se habitássemos um deserto coberto por carvão, talvez o espaço residual de algum projeto de exploração mineral, somos convocados a permanecer de pé, afirmar a própria presença e o próprio desejo de permanência em meio a forças externas que continuamente nos expulsam para fora e nos impulsionam a bater em retirada.

Amparado em linguagens como a performance e a dança contemporânea, o espetáculo “Trilogia Antropofágica Ato 2: Resistir”, levado à cena pelo mesmo coletivo, se dá em meio a escombros de um cenário que simultaneamente remete a processos de construção e demolição. Juntos, nesse contexto um tanto insólito, os cinco performers atribuem aos próprios corpos uma vibração que, outra vez, não se sabe exatamente de onde vem – mas da qual,  ao mesmo tempo, não se pode negar a existência. Sozinhos neste cenário apocalíptico, os performers atuam como força coletiva, encontrando quase sempre no outro o amparo por vezes necessário aos terrenos instáveis que habitamos, dentro e fora do teatro. Nesse fluxo, os intérpretes despojam-se, mais adiante, das próprias roupas, assim como de outros traços e atitudes que remetem ao que costumamos entender como civilização.

Também se propõem a uma espécie de revisão civilizatória os artistas sérvios Sanja Mitrovic e Vladimir Aleksic (Sérvia), autores e atores do espetáculo “I Am Not Ashamed of My Communist Past”. Baseada em ações e diálogos estabelecidos entre os dois a partir de um extenso material videográfico referente ao período de consolidação da Iugoslávia, após a 2ª Guerra Mundial, a montagem igualmente recusa a lógica da representação, assumindo uma perspectiva assumidamente performática e autobiográfica. Despojados de personagens, os atores reveem as próprias trajetórias pessoais e profissionais, chamando atenção a infância e juventude vividas em meio ao regime comunista, assim como à condição “estrangeira” que os acompanha desde a fragmentação do país em que cresceram.

Ao longo do caminho, a conversa entre amigos por vezes se converte em debates históricos, políticos e econômicos que se estendem também a discussões sobre  autonomia e subalternização, levantando questões certamente pertinentes também a artistas, espectadores e cidadãos de outras origens. Quase duas décadas após o fim do comunismo no país onde cresceram, os artistas nos expõem à sua força e atratividade, recorrendo, para isso, às próprias experiências de vida. Diante de um contexto marcado pela consolidação de uma imagem fútil, corrompida e imoral sobre o Ocidente, “I Am Not Ashamed of My Communist Past” nos apresenta um retrato afetivo do famigerado mundo comunista, defendendo-o, em certo sentido, como legítima fonte de imaginação social.

O passado igualmente serve como ponto de partida ao díptico “Villa + Discurso”, realizado pelo Teatro Playa (Chile). Enquanto a primeira peça, “Villa”, emprega recursos dramáticos para se voltar às dificuldades de dar forma a memórias e espaços relacionados ao longo período ditatorial enfrentado pelo país, a segunda, “Discurso”, explora, a partir da reprodução de um pronunciamento oficial, questões relacionadas à trajetória da ex-presidenta chilena Michelle Bachelet, vítima direta e indireta da ditadura de Pinochet.

Assim como às atrizes, parece caber a cada um de nós, espectadores, decidir em que transformaremos experiências que nos tocam, em maior ou menor medida, como indivíduo e, também, como povo. Entre as alternativas levantadas ao longo do espetáculo, contudo, estão tanto uma alienação permeada por boas doses de cinismo quanto certa exacerbação dos traumas, ali associadas a sentimentos como obsessão e vingança. Se somos autores de nossas próprias histórias e agentes de nossa própria política, assumimos, então, a responsabilidade de selecionar, examinar e reconstruir, quase sempre sob novas perspectivas, as narrativas que nos explicam como indivíduos e também como povo.

V

Talvez tenha surgido dessa inquietação o movimento realizado pela Cia. Hiato (SP), convidada a encerrar o FIAC 2016 com o espetáculo “Amadores”. Após realizar, nos espetáculos “Ficção“ e “Duas Ficções”, exercícios de fabulação a partir das histórias de vida de seus integrantes, o grupo se abre, agora, a trajetórias de vida que expandem em muito, sobretudo do ponto de vista social, o leque de experiências, temáticas e universos até então abordados e compartilhados em seus trabalhos.

Incorporando ao elenco de “Amadores” corpos, presenças e memórias cujas origens remontam a diferentes gerações, classes sociais, ocupações, etnias e visões de mundo, o grupo constrói, em cena, um panorama que muito nos diz sobre a cidade de São Paulo e, em certa medida, sobre o próprio país em que vivemos. Ao reunir em cena 18 atores, dentre os quais apenas quatro atuam profissionalmente e fazem parte da companhia,  a montagem convoca os espectadores a enxergar, no palco, fragmentos de uma realidade social muito diversa e, por outro lado, muito parecida com o que experimentamos fora do teatro.   

Reunidos, em cena, pelo interesse em participar de uma montagem teatral profissional, assim como por trajetórias de vida que os colocam na condição de “artistas amadores”, os atores não profissionais que participam do espetáculo parecem se constituir como sujeitos políticos à medida em que desestabilizam hierarquias relacionadas tanto ao universo das artes cênicas quando à própria sociedade, como a conhecemos. Estruturado a partir de performances artísticas individuais e coletivas, combinadas a depoimentos que remetem a contrastantes experiências e momentos de vida, “Amadores” conduz o público – e também seus intérpretes – a entrar em contato com um amplo e complexo leque de emoções e vivências, ali trazidas, em matéria e epistemologia, pelos próprios sujeitos que as experimentaram.

São certamente muitos e muito variados, como se pode ver, os caminhos para o surgimento e a ação de novos sujeitos políticos, seja dentro ou fora do campo das artes. Na visão de nosso companheiro Samaddar, agir politicamente seria, essencialmente, agir em nome da liberdade, enfrentando, às vezes, normas e códigos legais, assim como regras políticas que vigoram em diferentes dimensões do ser, do saber e do poder. Seja por meio de evidentes rebeliões ou ainda de subversões mais ou menos discretas, o pesquisador encontra no desafio a soberanias exclusivistas e a relações de subalternidade alguns dos caminhos próprios à conformação de novos sujeitos políticos e de novas políticas, sejam elas referentes ao funcionamento da sociedade, à criação de uma obra artística ou, ainda, à concepção de um festival de teatro.   


Referência bibliográfica

SAMADDAR, Ranabir. Emergence of the political subject (New Delhi: Sage, 2009).

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