Crítica da peça Stereo Franz, do grupo [pH2]: estado de teatro
II Bienal de Teatro da USP
A tarefa a cumprir neste breve texto é fazer uma crítica de Stereo Franz, peça do grupo [pH2]: estado de teatro, que está na programação da II Bienal de Teatro da USP. A peça parte de Woyzeck, de Georg Büchner, texto muito usado no teatro por grupos ou encenadores que desejam trabalhar com poéticas da fragmentação e/ou com recursos da encenação contemporânea. A ideia de uma “tarefa a cumprir” aparece aqui porque a prática da crítica nem sempre pode se dar ao luxo de ser exclusivamente espontânea e criativa. Às vezes a crítica tem que tentar dar conta de uma tentativa de diálogo que pode estar condenado a uma conversa de surdos.
Muitas vezes a crítica é um embate ideológico, como quando há um desencontro entre o pensamento sobre teatro da crítica e o pensamento sobre teatro dos artistas cuja obra está em questão. O caso aqui pode não ser o da simples crítica negativa, talvez se trate da exposição de uma divergência com relação a um ponto específico do teatro que é a relação dos artistas com os espectadores – enquanto proposta de elaboração poética, algo que se dá tecnicamente, como parte do trabalho e não como consequência subjetiva do acaso e das afinidades aleatórias.
Os recursos usados no espetáculo compõem praticamente um checklist de elementos das poéticas contemporâneas do final do século XX: a recusa do drama, o uso do audiovisual, a presença de línguas estrangeiras, textos proferidos em microfones, um espaço externo que o espectador só vê em parte, a mistura de linguagens (com a presença da música ao vivo, por exemplo), referências (no caso da música) à cultura pop ou a canções de apelo popular, uma opacidade na lida com os sentidos e, por fim, uma adesão à estranheza como norte para os elementos da cena. Assim, a peça se apresenta como um exercício formal sobre o teatro, mas com um vocabulário poético já estabelecido, que parte do público de teatro já encaixa em poucos minutos em categorias dadas, como teatro experimental, teatro alternativo, teatro contemporâneo, etc.
O exercício sobre a opacidade da linguagem, reiterada com a sobreposição de elementos, corre o risco de desencadear uma dinâmica de anulação. Por mais que se deseje dar menos atenção à produção de sentido e lidar com o espetáculo por outras vias, a busca pelo sentido não nos abandona – ela é da natureza da sociedade em que vivemos, podemos tentar neutralizá-la, mas é ingênuo acreditar que podemos nos livrar dela. Os vídeos, expostos em televisores com resolução de imagem precária, fica restrito aos que estão mais próximos dos aparelhos. O que acontece no espaço externo também fica distante demais para quem não está de frente para a porta. Assim, em Stereo Franz, buscar o sentido nas palavras e frases que conseguimos, com esforço, discernir é tudo o que nos resta. Com isso, o texto ganha um protagonismo que não combina com os esforços de polifonia e sobreposição de camadas da encenação.
Soma-se a essas condições o fato de que Woyzeck tem um papel canônico na história do teatro – e um papel canônico enquanto texto – mesmo que as formas da dramaturgia não obedeçam a regras prévias nem tenham gerado novas regras. Resulta que o texto – um texto clássico – permanece como núcleo do espetáculo. Aparentemente tentando não fazê-lo, a peça acaba por reiterar uma noção textocêntrica do teatro, na qual o que é importante (o conteúdo) é anterior à cena ou está por trás de uma superfície (o espetáculo) que se precisa desbastar.
Mas o que me parece um problema nuclear é que a peça estabelece uma relação exclusivamente cerebral com o espectador, que deve estar interessado em refletir sobre os problemas formais das artes cênicas, que deve se entreter com a identificação dos recursos técnicos e tentar adivinhar o que as opções estéticas querem dizer sobre o material a partir do qual se está trabalhando. Essa concepção exclusivamente cerebral toma o corpo do espectador como um corpo estranho, que deve ser tratado (reiteradamente) como corpo estranho, que praticamente deve ser expelido do teatro. O corpo do espectador não é bem-vindo. A sensorialidade da peça opera apenas pela via do incômodo, do desconforto, sempre na mesma nota. Isso se percebe especialmente na atitude dos atores para com o público.
A encenação coloca público e atores no mesmo plano espacial, mas os atores são os donos do espaço: os espectadores têm que se encolher para que os artistas se desloquem e façam as suas cenas, para não atrapalhar. A relação ator-espectador é impositiva, vertical. As falas são gritadas, muitas vezes cuspidas nos espectadores. Uma atriz se desloca de maneira atabalhoada, servindo Campari nos copos espalhados pelas mesas, sem se incomodar se está derrubando a bebida em alguém. O espectador, se está no teatro, tem que sofrer as consequências. A proximidade proposta é apenas espacial, não há relação de convívio nem possibilidade de diálogo. Essa foi a impressão que tive da peça, mas o que me intriga é que essa não parece ser a intenção do grupo. Talvez tudo isso seja consequência da falta de uma reflexão mais apurada sobre a condição do espectador no teatro em 2015 e os modos de trabalhar isso na poética da cena.