A tentativa de cristalizar a memória

Foto: Divulgação TUSP
Foto: Divulgação TUSP

Crítica do espetáculo Família Museu, de Ariel Zagarese, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

28 de dezembro de 2015

Tudo que é presente, logo ali, no próximo instante, já se mostra passado. Assim é mesmo a vida. Já no teatro, pensando especificamente no enredo dramático, presente, passado e futuro estão circunscritos dentro dos limites da sessão de um espetáculo. Talvez por isso, analisando sob esse aspecto, esses tempos tenham a possibilidade de se tornar mais cristalizados, palpáveis. Ainda assim, por outro viés, o teatro é a arte do efêmero, do que foi e já não é, da impossibilidade da repetição. O argentino Ariel Zagarese recorreu não só ao teatro, mas ao conceito de museu, para resgatar a história do seu próprio pai e da sua família, lá pelas décadas de 1980 e 1990, no espetáculo Família Museu, apresentado na II Bienal Internacional de Teatro de São Paulo.

Logo que as portas da sala de espetáculo são abertas, podemos caminhar pelo espaço e observar, contemplar, tal qual um museu tradicional, os objetos de uma coleção: uma máquina de barbear, fotos, caixa de ferramentas, por exemplo. Uma das especificidades, no entanto, é que aquela exposição conta com a presença de um homem, meia-idade, sentado, lendo o jornal. A tensão entre os tempos começa a se estabelecer exatamente ali. Quando os objetos remetem a um passado, mas o corpo se faz presente.

O homem, interpretado por Alejandro Ruaise, é Rubén Carlos Zagarese (1948-1999), pai do diretor e dramaturgo Ariel Zagarese, cujo papel ficou sob a responsabilidade de Manuel Reyes Montes. Há ainda a mãe e a irmã do ator, vividas pelas atrizes Sabrina Loza e Manuela Iseas. Os atores se apresentam e dizem ao público quais serão os seus personagens. A relação entre representação e não-representação, no entanto, não tem outros desdobramentos para além desse momento inicial da peça.

A escritura cênica de Família Museu se propõe pontuada por fricções e pontos de encontro/embate. Nessa história, o público se questiona o tempo inteiro sobre ficção e realidade; principalmente quando as memórias que são levadas à cena são, de fato, a tentativa de reconstrução de um passado visto sob um único olhar, o do dramaturgo/diretor, pontuadas pela atuação de outras pessoas. Na construção da cena, é o passado “museu” que logo vira presente, mas traz lembranças a muitos dos espectadores, o que de fato se materializa como presente em cena, o que há de ficção a partir dessa história.

Nesse caminho permeado por afetos e desencontros, o foco está na relação familiar. No cotidiano que poderia ser o de qualquer família. A briga entre os irmãos, as questões que permeiam o casamento, mas, principalmente, a falta de diálogo. O pai é retratado como alguém distante, endurecido pela vida, que faz pouca questão de construir sentimentos, como na cena em que o garoto tenta ajuda-lo a consertar o carro. São elementos trazidos pela dramaturgia que, em alguma medida, aproximam o público da montagem, embora o espetáculo não consiga superar um estado, digamos, de certa conformidade e apatia.

As relações/fricções que poderiam surgir na aproximação entre teatro e vida real, entre os elementos do real no espaço da ficção, não extrapolam os limites, de maneira que possam, de fato, trazer tensão à relação com o espectador. É uma linha de dramaturgia que se mostra monocórdica, sem pontos de virada ou oposição.

Apesar de tratada de forma sensível, a abordagem fica tão localizada no microuniverso familiar, que as outras dimensões que poderiam surgir a partir da proposta da montagem, da dramaturgia e da própria encenação, não tomam vulto. Aqui, o que acontece de fato é que o particular, o autorreferente, não se torna universal e saímos com a sensação de que a proposição foi mais interessante do que a sua realização em cena.

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