Do maracatu às Torres Gêmas

Foto: Reprodução Facebook Tusp
Foto: Reprodução Facebook Tusp

Crítica do espetáculo Ramadança, de Ricardo Guilherme, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

20 de dezembro de 2015

O vestido ricamente bordado brilha enquanto o corpo gira muito lentamente. Na cabeça uma coroa completa a indumentária de uma rainha do maracatu nação ou maracatu de baque solto. A principal referência trazida pelo ator, diretor e dramaturgo Ricardo Guilherme no figurino do espetáculo Ramadança, exibido durante a II Bienal Internacional de Teatro da USP, está carregada de significados. Vamos apontar alguns deles mas, para isso, é necessário fazer um recuo na história da humanidade. Lá atrás, quando a expansão do islamismo na África converteu líderes africanos à religião de Alá e escravizou os “infiéis”. Os escravos negros se transformaram em mercadoria de valor do mundo árabe.

Nessas “guerras santas” com objetivo de islamizar populações, muita gente foi capturada em vários locais, mas principalmente na África negra, para se tornaram escravos do mundo muçulmano. O tráfico se transformou um negócio lucrativo e os portugueses entraram nessa disputa.

Sabemos em linhas gerais o que aconteceu no Brasil após a diáspora forçada dos africanos. Rebeliões, violências e muitas estratégias para manter a tradição religiosa e cultural. Chegamos então ao maracatu, que teve terreno fértil em Pernambuco, e se expandiu pelo Nordeste, e depois pelo Brasil. A coroação e os cortejos dos maracatus ganharam permissão do governo e da igreja, como forma de controle social, num determinado momento, mas depois foram proibidos e perseguidos por seu poder de articulação. E, por fim, o maracatu foi inserido no mercado cultural.

Quando o ator escolhe a figura da rainha do maracatu, não é apenas um vestido. Essa indumentária da rainha do maracatu nação carrega consigo um histórico de tensões e reivindicação de espaço e visibilidade. O maracatu traz consigo a substância árabe. Esse é um dado importante para vincular o islamismo à cultura negra, o que o ator faz.

É muito importante e significativa a calunga ou boneca – de madeira, de cera de cor negra, que representam ancestrais -, mas que já apareceu de plástico e branca. Fiquemos, porém, na tradição. Se a boneca é negra e o ator apresenta a boneca branca para despedaçá-la, há um sentido de revolta, de resistência aos valores imposto pela cultura branca, pelo imperialismo. Que se cruza com os governantes do século 20 e 21 citados na fala em off.

A referência ao maracatu é apenas o ponto de partida para uma performance que se mostra múltipla, no sentido de que carrega em si uma quantidade sem fim de chaves interpretativas. Cabe então ao espectador enveredar por algumas delas, ou por várias, e montar a sua própria colcha de retalhos. O performer abarca a intenção de disparador de provocações. A partir, claro, do próprio nome do espetáculo: Ramadança, um neologismo que engloba a palavra Ramadã, nono mês do calendário islâmico, quando os muçulmanos celebram a revelação do livro sagrado, o Alcorão, ao profeta Maomé, com preces e jejum.

O texto dito em off, em alguns momentos notadamente rimado, soa como uma liturgia, uma prece, que coloca em questão, por exemplo, as guerras surgidas por conta da religião. Ricardo Guilherme fala nos negros e na sua cultura, mas também cita o papa, além dos metodistas e luteranos. Os conflitos no Oriente Médio, George Bush, Saddam Hussein e Osama Bin Laden, misturando tempos e espaços narrativos, para compor um caleidoscópio auditivo que desafia a compreensão em sua amplitude.

Enquanto o texto é dito, Ricardo Guilherme, como dito, move-se muito lentamente. Parece mesmo a tentativa de instaurar na sala de espetáculo um tempo paralelo: do exercício do ouvir, sem que seja necessário que o ator esteja dizendo o texto, interpretando-o da maneira convencional, de perceber as variações dos movimentos e se permitir caminhar pelo que ouvimos e fazer os cruzamentos possíveis a partir do texto.

Apesar de mergulhar na performance, executada como uma espécie de ritual, o trabalho tem no texto um dos seus pilares mais fortes. A musicalidade e a poesia são qualidades evidentes do texto, que nos leva aos mais diversos caminhos, embora tenha algumas chaves mais definidas, os conflitos religiosos, as ditaduras, os imperialismos. Para se ter uma ideia, Ricardo Guilherme mistura Hamlet, Torres Gêmeas, Hitler, cultura africana.

Ao rodar com aquela roupa pesada, em movimentos que vão se multiplicando com a repetição acrescida, e apontar para o risoma, a obra também se abre para uma discussão de territorialidades. Desde as erguidas nas sedes dos maracatus de ontem e hoje para delimitar a essência do sagrado e seus vínculos ancestrais até a expansão para as ruas, guerreando para a conquistas de outros espaços, como ocorre também nas guerras ditas santas do Oriente.

Ainda assim, a potência do trabalho, que se estabelece principalmente a partir da visualidade, da sonoridade e da atuação do performer, vai diminuindo com o decorrer do espetáculo. O despedaçamento da boneca branca por um ator com o rosto pintado de preto remete para dicotomias, de imperialismos, que neste século 21 ganha múltiplas facetas, e essa bifurcação enfraquece a pretendida dialética de Ramadança.

Ricardo Guilherme apresentou outros dois trabalhos na II Bienal da USP: Bravíssimo e Flor de Obsessão, ambos baseados na dramaturgia de Nelson Rodrigues. A técnica do ator, que defende o que ele chama de teatro radical, baseado principalmente na atuação, já se mostrava vigorosa nesses espetáculos, embora outras questões possam ser levantadas e questionadas a partir das peças. Mas em Ramadança, o cearense que possui 45 anos de carreira se mostra muito mais inventivo e aberto às possibilidades de um teatro performativo.

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