O afeto que aprisiona

Foto: Estúdio Zut
Foto: Estúdio Zut

Crítica do espetáculo Cinderela, de Joël Pommerat, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2016

4 de março de 2016

Desde criança, quando ouvimos a história da Cinderela, enxergamos a suposta superação como foco da fábula. A garota que era maltratada e humilhada pela madrasta e por suas duas filhas diante da omissão do pai consegue finalmente livrar-se de todo sofrimento quando encontra o seu príncipe no baile. O enredo, mais do que conhecido por todos, ganhou outras possibilidades na versão do dramaturgo e encenador francês Joël Pommerat, apresentada pela Compagnie Louis Brouillard na abertura da 3ª edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) na última quinta-feira (3), no Auditório Ibirapuera. Uma questão que merece ser pontuada inicialmente, no âmbito de um festival internacional, é a importância das legendas, que continham erros de português e uma linguagem que parecia mais coloquial do que a peça propunha.

Mas vamos adiante na encenação: se os irmãos Grimm ou até mesmo Walt Disney trataram da morte da mãe de Cinderela de maneira muito episódica, apenas como disparadora da ação, Pommerat consegue traçar outros contextos, deixando a história mais psicológica e atraente não só para crianças e adolescentes, mas para os adultos. Na sua versão, Cinderela é Sandra, uma garota comum, de cabelos desgrenhados e mochila nas costas, que não consegue entender as últimas palavras da mãe no leito de morte. Acredita que a mãe tenha dito para que pensasse nela, a cada cinco minutos, para que ela não morresse de fato. O amor e a devoção de Sandra à mãe, o medo de traí-la, não cumprindo o seu último pedido, fazem com que Sandra caia numa armadilha, enveredando-se por meandros dentro de si mesma, deixando-se aprisionar pelo afeto carregado do peso do medo, da culpa, da dor. Pommerat constrói uma personagem que se abandona; que, por exemplo, aceita as tarefas domésticas sem reclamações não por seu excesso de bondade, mas porque não se importa consigo mesma. Ou não trava um relacionamento com o pai porque não vê possibilidade de superação de uma realidade. Mesmo diante de uma suposta cumplicidade com o pai, quando ele fuma na companhia dela e não da madrasta, só há conformação nessa relação e não interação, diálogo, questionamento, vivência. Esse “autoabandono” se desdobra em diversas situações, como quando a madrasta faz um discurso sobre como Sandra está velha e descuidada.

As primeiras cenas desta Cinderela são sombrias, escuras.Na casa em que vive com a família, Sandra não vai alimentar os pássaros, cantando feliz, enquanto eles a ajudam nas tarefas, como no filme; aqui o cenário é diverso: a “princesa” carrega com as próprias mãos os pássaros que morreram ao se chocarem contra as paredes de vidro da casa. O sofrimento de Sandra é evidenciado na noite em que passa sozinha no quarto do sótão, sem janelas. A cenografia do espetáculo, composta em boa parte através de projeções, transmite essa confusão interior de Sandra, seu estado de espírito, ao mesmo tempo em que noutros momentos constrói realidades paralelas, como a casa de vidro ou as paredes que vão tendo estampas diversas.

Se o contexto psicológico é carregado e o relógio que Sandra tem no pulso toca insistente para lembrá-la de não esquecer a mãe, Pommerat brinca, com sarcasmo, ironia e humor, não se esquecendo de alimentar a identificação da fábula pelo espectador. Há alguns caminhos diretos: por exemplo, a madrasta e as irmãs continuam sendo figuras estranhas, feias e desengonçadas, mas Pommerat não se prende a isso, vai muito além. Nesse sentido, o autor e encenador tem na personagem da madrasta um dos grandes trunfos da montagem, enriquecendo as chaves de discussão abertas pela peça. A madrasta possui uma visão equivocada de si mesma, principalmente no que diz respeito à sua aparência física. Fica lisonjeada com os falsos elogios de que ela parece irmã das próprias filhas e se ilude com a possibilidade de que o príncipe se apaixone por ela e não pelas filhas.

No viés da desconstrução, ou mesmo do embaralhamento de alguns estereótipos tão comuns aos contos de fadas, o príncipe neste caso é feio, inseguro e também sofre com a ausência da própria mãe. No decorrer da montagem, alguns elementos deslocados, que fogem ao estabelecido a priori, vão dando um caráter muito mais instigante à peça, mas sem que ela perca a capacidade de fazer rir ou emocionar. Nesse mesmo âmbito, realidade e sonho, idealização, são dimensões questionadas pela encenação. Não podemos dizer que é exatamente uma experiência radical de reescrita desse texto, já que no espetáculo de Pommerat os elementos conhecidos do público, responsáveis por uma identificação direta com a história, estão todos lá. Ainda é a história da mocinha, mas aqui menos frágil e com nuances que a deixam mais interessante.

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