Em busca de um novo homem

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

16 de novembro de 2015

O peso da masculinidade imposta historicamente pode despedaçar os órgãos de um cabra. Diante de tanta pressão, o cara pode perder, junto com o paradigma tradicional de virilidade, seus pedaços pelo caminho. O prejuízo finde a identidade. Extravio ou privação de pernas, fígado, braços, pênis, olhos que foram arrebatados com força (ou astúcia). É de forma radical e poética que o grupo A motosserra perfumada trata dessas questões. O coletivo arrisca uma pesquisa nos limites entre o teatro a e performance. Na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, a trupe estreou o primeiro espetáculo. A montagem Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou é um experimento híbrido, à beira da exaustão física e spoken word, essa palavra falada que ganhou força na cultura Hip Hop nos últimos tempos.

Depois da apresentação no Centro Cultural São Paulo, a peça começa nesta semana uma temporada no Subterrâneo Theatro Municipal, espaço underground paulistano e a moçada garante que lá o espetáculo vai proporcionar uma experiência mais radical, com a inserção de conteúdos mais fortes. A produção recomenda que o público use calçados fechados. Os personagens quebram coisas como vidros e tijolos.

Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou tem texto e direção de Biagio Pecorelli, que está no elenco do programa e é autor do livro de poemas Vários Ovários, publicado pela editora independente Edith. A peça é de uma verborragia apaixonante e questionadora dos desejos e explora as contradições dessa crise do masculino.

As performances são exibidas num longo corredor formado por espectadores dos dois lados. No centro, nesse tapete imaginário, os atores atuam. Uma banda, de um dos lados desse corredor toca rock, derrama poesia, fantasias, fragmentos de vidas.

Matheus, um homem despedaçado que persegue o que perdeu na vida, é defendido por vários atores. Ele quer recuperar seus olhos, entre outras partes do corpo, para conseguir chorar. Nesse percurso imaginário ele bate à porta de ex-namoradas, de garotos (de ou sem programa) que encontrou pelo caminho para matar o tédio.

Entre fios de recordações, estilhaços de mágoas, um quebra-cabeças é erigido nessa cidade “onde os fracos não têm vez”. A cena traz as sujeiras de cacos, de restos de consumo, a fragilidade de um homem frente a virilidade solicitada do vale-tudo do capitalismo da selva de pedra. Seus personagens caminham com suas incertezas desafiando os discursos de verdade e de opressão.

Uma mulher com uma preleção fascista encarna em sua fala aspectos retrógados que ameaçam a democracia. Seu discurso se posiciona contra mulheres libertárias, contra o aborto, as relações homoafetivas, as várias etnias, e defende uma arte absolutamente mercantil. Ela parece ter surgido do nada, como as vozes que ecoam pelo país em suas posições atrasadas.

Esse corpo masculino que padece é exposto em suas partes em ganchos de frigoríficos dispostos no cenário. As demandas contemporâneas produzem fragilidades no campo subjetivo. As relações efêmeras, a situação caótica, essa vida fragmentada produz instabilidade em todos. Mas esse masculino abalado em sua identidade viril abre espaço para essa investigação em Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou. Os atributos de coragem e valentia, do super-herói provedor, cede lugar a um mundo de sentimentos na peça, onde a fragilidade permite reflexões sobre guerras e violações, acidentes, condutas e sociais, atitudes sexuais.

O espetáculo reforça que feminilidade e masculinidade são construções culturais que sobrevivem em um determinado contexto. As tensões e conflitos podem gerar o desamparo. Como diz um trecho do texto, essas figuras correm sem cinto de segurança, usam aditivos para dar mais sentido à vida, procuram o amor com poesia, mas sem uma suposta caretice. Depois de tudo isso, alguém pode botar o pé no freio e chamar para a real.

A Motosserra Perfumada é formada por Alex Bartelli (ator e produtor), Biagio Pecorelli (poeta e ator), Camilla Rios (atriz), Felipe Vasconcelos (artista visual e performer), Hugo Cabral (pesquisador, cenógrafo e figurista), Jonnata Doll (ator e músico), Júlio Castilho – “Feiticeiro Julião” (músico) e Paula Micchi (atriz). Em outubro de 2014 o grupo foi contemplado pelo edita “PROAC – Primeiras Obras”, promovido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, para a montagem do texto inédito de Biagio Pecorelli.

ATUALIZAÇÃO:
Infelizmente, a temporada do espetáculo foi cancelada. No último domingo (15), o local onde aconteceriam as apresentações, a passagem subterrânea da Rua Xavier de Toledo, no Anhangabaú, foi invadido por integrantes de um movimento de ocupação intitulado Coletivo Laboratório Compartilhado TM13. De acordo com o grupo A Motosserra Perfumada, que prestou queixa na delegacia, os cadeados do local foram arrombados, os camarins foram revirados, sumiram objetos cênicos, figurinos, dinheiro, além da bebida que estava estocada para ser vendida durante a temporada. O dinheiro da bilheteria e da venda da bebida serviria para manter as apresentações, já que o grupo não teve apoio para temporada.

Confira aqui a carta aberta do grupo A Motosserra Perfumada.

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