Humor crítico sobre processo civilizatório

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo La expulsión de los Jesuitas, da Tryo Teatro Banda, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

16 de novembro de 2015

Os efeitos lúdicos inscritos no jogo teatral do espetáculo La expulsión de los Jesuitas, percorrem, por meio do riso, uma crítica cáustica ao processo civilizatório no Chile – e em paralelo a outros países latino-americanos. O cômico, como sabemos, perturba e atiça reflexões. A galhofa de circunstâncias sinistras consente a crítica e, posteriormente, a ponderação. A companhia Tryo Teatro Banda, do Chile, opera um novo olhar sobre o próprio país e sua história em espetáculos que combinam música ao vivo, atuação, e arte dos menestréis, apelando para o humor com perspectiva satírica em relação a quem ocupa o poder. Uma poética perseguida pelo grupo em suas investigações. Com seus corpos e vozes, os integrantes buscam a expressão extrema, com habilidade nos truques e principalmente na execução de vários instrumentos musicais ao vivo.

Em La expulsión de los Jesuitas, com texto de Francisco Sánchez e Neda Brikic e direção de Andrés del Bosque, a chave bufonesca alcança a escala delirante. Na peça, os religiosos da Companhia de Jesus chegam ao Chile (1593) para catequisar índios, espanhóis e chilenos e acabar com a Guerra de Arauco. Mas o Rei da Espanha, a quem eles defendiam, expulsa os jesuítas em 1767. A peça é inspirada em várias fontes, inclusive o Tratado de Artes Cênicas (1727) do jesuíta alemão Franz Lang, considerado um verdadeiro tesouro. No elenco estão os atores Daniela Ropert, Alfredo Becerra, Eduardo Irrazábal, José Araya e Francisco Sánchez. Eles se multiplicam em alguns papeis e também tocam vários instrumentos com maestria.

O espetáculo perpassa por uma temática religiosa e explora, com seus personagens alegóricos, a doutrinação. A carnavalização, a partir dos pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin, expõe os conflitos e interesse de vários segmentos que chegaram ao Chile para se aproveitar de suas riquezas. Com a carnavalização na cena, a trupe dá voz ao grotesco e ao obsceno, num tempo que não é trágico, nem épico, nem histórico. E provoca um riso profundamente ambivalente. O sério-cômico carrega a crítica da formação de povo. Os traços dos personagens também estão impregnados da ausência de enobrecimento em suas ações. A comicidade é explorada nos vícios de todos os personagens. A ética cristã é desmontada. Os representantes da Igreja Católica também estão em disputa por poder e a cena em que o jesuíta se arrasta aos pés do rei para exigir exclusividade perante outras congregações é emblemática.

La expulsión de los Jesuitas imprime um tratamento humorístico às questões mais cruciais desse processo colonizador, em tom vivo e alegre. Traz a excentricidade carnavalesca e explora o mundo com um grande teatro em que os personagens, sem psicologia aprofundada, resvalam para a caricatura. Mas esses tipos provocam atinada crítica não apenas dos episódios do passado, mas nas questões do presente, como advertências ferinas sobre o mundo contemporâneo. E conjugam idioma indígenas, com espanhol, e passagens em latim e inglês para promover uma vitalidade de linguagem. Todos são satirizados. Suas tiranias e pequenas desonestidades, a ambição, os desvios e as luxúria. Os desmandos da fé e de outros poderes.

A companhia trabalha de forma alucinante, eletrizante, a equação entre jogo e riso. As figuras da peça remetem ao trickster, herói cômico de mitos indígenas norte-americanos, transgressor que usa de trapaças para abiscoitar seus alvos. A noção trickster aponta atualmente, na antropologia, para uma pluralidade de personagens localizados em várias culturas. Segundo Renato da Silva Queiroz, em O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster[1]: “Em geral, o trickster é o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, protagonista de façanhas que se situam, dependendo da narrativa, num passado mítico ou no tempo presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão de boas e más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os, despertando-lhes, por consequência, sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de indignação e temor, por outro.”

Os personagens da montagem guardam o caráter irreverente, apresentam laços estreitos com o trickster, com seus desvios e o ridículo como dispositivo, que detona o riso crítico. Isso fica mais evidente no papel do Padre, mas se contamina nos outros personagens de forma mais densa ou diluída. Os artifícios do jogo começam pelo texto, ganham forma e força na interpretação do elenco que se vale de truques performáticos, gestuais e mímicas que remetem à licenciosidade como danças vulgares, de aproximações com santos da Igreja Católica. E principalmente porque deixam espaços par o exercício imaginativo do espectador.

[1] QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster. In: Tempo Social; Revista Social, USP, São Paulo, Volume 1.

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