Crítica do espetáculo Senhorita Julia, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)
MITsp 2015
14 de março de 2015
O protagonismo do espetáculo Senhorita Julia, do grupo alemão Schaubühne, baseado na obra do sueco August Strindberg (1849-1912), migrou da personagem-título para a cozinheira da casa, Cristina. A releitura dirigida por Katie Mitchell e Leo Warner provoca um deslocamento de olhar (ponto de vista) do drama original de 1887, numa montagem multimídia, na qual convergem performance teatral, efeitos sonoros e filmagem ao vivo, como a exposição dos equipamentos de produção. A peça está em cartaz até domingo na 2º MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, no Sesc Pinheiro.
A misoginia borbulha nesse clássico, em que o jogo de poder se assenta entre classes sociais distintas e, em determinado momento, é suplantado por um poderio sexual masculino. Uma pequena sinopse da história: a aristocrata Julia tem um caso com Jean, o empregado do Solar. Ele é noivo em segredo da cozinheira Cristina, que percebe o envolvimento. Após o ato sexual, a relação de dominador/dominado entre Julia e o serviçal é invertida. Isso está lá em Strindberg.
Com o deslocamento do sujeito do enunciado, a direção cria uma complexidade desse lugar, tendo como camadas subjacentes o texto literário. Mas com o acréscimo na perspectiva da cena de contar essa história a partir da mulher traída. É uma outra visão feminina, que abre espaço para a subjetividade de uma personagem subalterna, de pouco destaque na obra textual. Não diria que chegaria ao viés feminista (na sua acepção mais pura), porque as posições adotadas por Cristina ainda reservam espaço para uma subserviência ao masculino, reveladas em pequenos detalhes, depois da traição, como o assessoramento do barbear de Jean.
O experimento envolve de forma radical a captação e edição de imagens ao vivo no palco. Esse procedimento amplia detalhes, expressões faciais das personagens e manipula as sutilezas, que vão para o grande quadro de visão do espectador. Praticamente todo o maquinário está exposto ao público – a movimentação das câmeras, a atuação da equipe técnica, os músicos, os efeitos sonoros. Tudo é milimetricamente marcado, com maestria na execução do desenho da cena.
A percepção é um aspecto perturbador. Existe um cenário realista ambientado em uma casa sueca do século XIX. Técnicos e atores manejando as câmeras. O olhar do espectador é direcionado a partir dessas filmagens, que aceleram e desaceleram. Expõe intimidades, enquanto o mecanismo de como aquilo é produzido também está à mostra. Tecnicamente é um trabalho magistral.
Não vou me deter no ponto de se é cinema feito ao vivo, em cena ou se a linguagem audiovisual se sobrepõe ao teatro. Isso merece uma tese. O que a diretora tem dito é que utiliza os recursos tecnológicos justamente para potencializar a experiência teatral. Penso que intensifica de forma belíssima.
Enxergo movimentos de dobras e desdobras quanto aos conteúdos questionados, principalmente da luta de classe e da situação da mulher. A utilização da tecnologia (numa execução magistral) aponta, na sua dureza de captação/reprodução de imagens e sons, e na opção de cenários e figurino de época, que esse poderia ser um Strindberg a ser visto com distância no longínquo século XIX. Mas, enquanto esse movimento é sinalizado, é também negado nas reflexões sobre os conteúdos problematizantes citados. Somos convocados e refletir novamente sobre as mudanças e como elas são devolvidas da ficção para a realidade. Como funciona o poder nas relações íntimas, nas relações privadas. As questões levantadas pelo dramaturgo não foram totalmente superadas.
A luta silenciosa travada por Jean – em que amor e ódio revezam o protagonismo no coração do personagem masculino – na sua cultivada necessidade de ascensão permite pensar nos resquícios desses conteúdos emocionais em pleno século XXI.
Se os espaços reais se distanciam, os psicológicos dessa estrutura arcaica permanecem latentes. Isso me mobilizou nos movimentos de superaproximação, na frieza técnica das atuações. Os diálogos mínimos contribuem para isso.
A recepção na estreia foi calorosa, a tirar pelos aplausos do público que compareceu ao Sesc Pinheiro. O debate transversal com a psicanalistas Maria Rita Kehl, sob o ponto de vista das pessoas da plateia que se pronunciaram, problematizou questões desde a provocadora estética da cena, passando pelas escolhas textuais e de condução do olhar da direção.