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Ivana Moura é jornalista, crítica de teatro, escritora e produtora cultural. Idealizadora e editora do blog Satisfeita, Yolanda? (www.satisfeitayolanda.com.br). Possui mestrado em Teoria da Literatura (Letras - UFPE) e especialização em Jornalismo e Crítica Cultural (UFPE). Foi repórter, editora-assistente e editora do caderno de Cultura do Diario de Pernambuco (1989-2013). Escreveu o livro Osman Lins, o matemático da prosa e a peça O crepúsculo de Van Gogh. Adaptou o texto e dirigiu (ao lado de Lúcia Machado) o espetáculo Os desastres de Sofia, inspirado em conto homônimo de Clarice Lispector. Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

Fiac segue na inquietude de seu tempo

Foto: Leonardo Pastor
Espetáculo Nós, do Grupo Galpão abriu o festival baiano de 2016. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

“Para onde ir?”, debate-se o Grupo Galpão, num movimento interno de autopurgação, que também provoca pequenos abalos sísmicos pelo país com o espetáculo Nós. Os atores vibram sobre convivência em grupo, diferenças, tolerâncias e afetos alçados ao limite. Mas também pulsam nas cordas da ambivalência, de um ethos desnudado frente ao público e que revela as contradições do mundo contemporâneo.

A peça Nós é a 23ª produção da trupe mineira em 34 anos de existência. O trabalho dirigido por Marcio Abreu – encenador da Companhia Brasileira de Teatro – com dramaturgia construída coletivamente e texto assinado por Eduardo Moreira e pelo diretor, traduz inquietações dos seus integrantes, os atores Eduardo Moreira, Antonio Edson, Chico Pelúcio, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara.

Já no início da peça, a trupe chama para a ideia de comunhão, quando Teuda Bara entoa “comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar”, versos de Lama, de Paulo Marques e Ailce Chaves, um dos sambas-canções mais celebrados no repertório de fossa, gravado por Linda Rodrigues, Gilda Valença (em forma de fado), Maria Bethânia e Núbia Lafayette.

Essa ideia de confraria se faz presente na preparação da sopa, na frase cênica de Teuda Bara “É pra refrescar!”, que salienta a importância do encontro. As conversas entrecortadas aceleram para outros caminhos, de repetições, perguntas, coreografias. Para conjecturar sobre o espaço da partilha, da confraternização, de estar junto, da vontade da maioria, do respeito à minoria. A encenação Nós também rasga os tecidos da violência que contagiou o mundo e toca na crise da esquerda brasileira.

Numa cena emblemática do espetáculo, a personagem de Teuda Bara é escorraçada, expulsa de forma agressiva, à base de sopapos e pontapés, apesar de sua resistência. É possível associar a cena ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff, mesmo que tenha sido criada antes do impeachment. É um momento angustiante que traça um arco da política do micro ao macro.

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Eduardo Moreira e Teuda Bara. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

A encruzilhada que a pergunta inicial suscita, reforçada pela expulsão de Teuda Bara, me incitou a seguir reflexões de pensadores para tentar entender questões caras cravadas em nossa carne pela eletrizante performance do grupo. Enxergo espelhada na cena uma crítica da ética indolor, na perspectiva do filósofo francês Gilles Lipovetsky, que vem na esteira do esgotamento dos ideais e do declínio da moral. Com o self interest do sujeito exaltado por Lipovetsky o dever é diminuído às rés do chão nessa sociedade pós-dever, sem obrigações difíceis.

Contra o minimalismo ético de Lipovetsky (fincado na exaltação dos desejos, do ego, do individualismo hedonista e narcisista), pulsam na cena lampejos do que o teórico da “modernidade líquida”, o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman chama de “ser-para”, de que existe uma responsabilidade para com o outro, da alteridade.

Então, mesmo diante desse cenário movediço de incerteza e de relativismo moral, de ligações e de desligamentos, em que as pessoas se constroem e desmancham-se, há uma corrente que defende que não somos meros objetos a serem descartados. A construção da democracia no jogo cotidiano se faz também do atrito entre figuras diferentes. A peça Nós pergunta antes de tudo terminar: como recomeçar ou começar algo novo? Alguma esperança na seara dos afetos, com o espelho refletindo o espectador antes do chamamento para a balada.

O espetáculo Nós abriu o Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia – Fiac, realizado de 25 a 30 de outubro de 2016, em Salvador, e que nesse ano reforçou a urgência de tomar posições críticas diante da realidade. Uma edição que assumiu a política no seu sentido mais franco e humano, a micropolítica de todo dia comprometida com o coletivo, com aquilo que nos é comum, nas palavras de Felipe Assis, um dos coordenadores gerais do Festival, ao lado de Ricardo Libório.

Ricardo Libório e Felipe Assis, curadores do Fiac. Foto: Leonardo Pastor
Ricardo Libório e Felipe Assis, curadores do Fiac. Foto: Leonardo Pastor
Provocação do Fiac. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Provocação do Fiac. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

Como posicionar discurso e ação, quebrando regras para criar outros jogos e novos modos de (re)existir em tempos de crise?, como convocar a participação coletiva?, foram disparadores da nona edição do Fiac Bahia. A proposta é de engajamento direto, em detrimento a esquemas de representação. Uma convocação à presença; ou seja, um convite para “meter mão”, tanto no sentido figurado, quanto literal.

Em conversa com o Felipe Assis, ele ressaltou a importância dos trabalhos que se apresentam como resultado, mas também as atividades de formação. A quebra da hierarquia foi um procedimento para valorizar também o processo. “Porque os resultados podem servir a uma lógica de mercado de produto. Mas a gente sabe que é o tempo contínuo de elaboração que também se conecta o processo da prática artística. E que nos últimos tempos se tem valorizado o lugar do processo em detrimento muitas vezes do resultado”. Por isso que, para ele, uma atitude, uma postura política pode ser em alguns casos mais relevante que o resultado estético muito bem-acabado e facilmente comercializável.

Aplicação variada de prática artísticas na curadoria como risco, presença, múltiplas tradições, narrativas fragmentadas, participação estiveram na mira do festival. E em 2016 o Fiac deu relevo à participação como princípio ativo. Para isso contou com um grupo gestor e curador ampliado, composta por 16 mãos que construíram a identidade do festival – coordenações geral, administrativa, técnica, logística e de atividades formativas, além da assessoria jurídica e de comunicação. A equipe fez com que essas ideias pulsassem em todas as ações do festival, das questões políticas e da coletividade.

Ao longo de seis dias, a pergunta que norteou as ações do Fiac Bahia foi como reinventar a participação coletiva diante de tantas rupturas? As respostas vieram de várias formas, principalmente nas tentativas de fortalecer vínculos comuns, entre artistas, produtores, público, sociedade. Tarefa difícil, mas engendrada nas microrrelações de empoderamento.

O festival se tornou “uma rede que se retroalimenta e estabelece vínculos com outras iniciativas interessadas mais em perguntas do que em respostas”.  Muitas ações foram feitas a partir dessa decisão: de criação e intervenção visual e algumas oficinas, ampliação do Seminário Internacional de Curadoria e Mediação em Artes Cênicas.

As peças de divulgação reforçam a proposta de horizontalidade. O público e os participantes do Fiac Bahia foram convidados a personalizar cartazes e programas nos ateliês abertos de serigrafia, carimbo, estêncil e xilogravura montados no Pátio do Goethe-Institut. A confecção desse material incorpora produção industrial e artesanal e foi possível a partir da parceria da TANTO Criações Compartilhadas com a Sociedade DA Prensa. O festival incentivou a “meterem mão” nesse processo e customizar ao mesmo tempo que provoca reflexões sobre autoria, gesto artístico, ser artista e ser público.

Festa em Casa: Casa Preta. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Casa Preta. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Ocupação Coaty. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Ocupação Coaty. Foto: Leonardo Pastor

O festival se espalhou por 12 espaços de Salvador. Com exceção do Teatro Castro Alves, com capacidade para mais de mil pessoas (mas que na realidade funcionou no palco para público mais concentrado), os outros espaços estão voltados para plateias de até 200 lugares, incentivando um convívio mais próximo da experiência cênica. Foram utilizados Teatro e Pátio do Goethe-Institut, e Teatro Vila Velha, Teatro Martim Gonçalves, Espaço Cultural Barroquinha, Teatro Martim Gonçalves, Teatro Experimental, Teatro Gregório de Mattos, Casarão Barabadá, Casa Preta, Coaty e Oliveiras.

Os sentidos de convivência, de se apropriar da cidade em seus casarões carregados de história, ganharam atitudes nos encontros noturnos do Fiac, com as “Festas em Casa”. Na rota de dialogar com os projetos de ocupação cultural de Salvador receberam artistas e público para contato mais próximo. Um impulso para essa reinvenção do coletivo, da possibilidade de compartilhamentos com instigação festiva. Bandas e Djs de vozes e ritmos variados animaram o Casarão Barabadá, Ocupação Coaty, Oliveiras, Casa Preta.

O exercício do pensamento crítico teve atuação da DocumentaCena, com a participação das casas Questão de Crítica (RJ), Satisfeita, Yolanda (PE)? e Horizonte da Cena (BH), e de outros profissionais como Antropositivo (SP), Agora (RS), Barril (BA) e Precisa-se Público (RJ).

A programação reuniu um leque de espetáculos posicionados de forma crítica frente às questões da contemporaneidade. Nessa 9ª edição, o Fiac quis sacudir o “espectador” para assumir um papel mais ativo, na cena ou fora dela. Chacoalhou.

Seguem comentários sobre outros espetáculos que assisti durante o festival:

O BOBO

Caio Rodrigo mistura Yorick, da peça Hamlet, e a figura do bobo de Rei Lear, ambas de William Shakespeare, para criar um personagem que dispara sua metralhadora giratória, contra tudo e todos. E ele está no meio. O espetáculo O Bobo, do Teatro Terceira Margem, se arvora a dizer verdades antes de um suicídio anunciado. O ator está em cena vestido apenas por uma cueca preta. A ironia que sai da sua boca e de seus gestos se esparrama pelo teatro e ele convoca trechos de obras de Albert Camus, Maquiavel, Caetano Veloso, fragmentos de ensaios filosóficos para reforçar sua munição acusatória.

O intérprete joga com as teorias teatrais e envereda em seu discurso pelas ruelas do ofício do ator, questionando filigranas e trocando de máscaras para defender seus pontos de vista.

Caio Rodrigo anuncia a si próprio como codiretor rejeitado duas vezes na pós-graduação, músico amador e maconheiro, figurinista que não teve trabalho, ator/criador meio frustrado e aspirante a professor da UFBA. Ficção com fundo de verdade?

Criação conjunta de Caio com o diretor teatral Daniel Guerra, O Bobo é bom de provocações metateatrais. Dividida em quadros, a peça circula por várias poéticas e questiona o conceito da presença e a relação entre artista e público. Algumas instigam, outras nem tanto, como a “para quem se faz teatro?”, que se torna uma questão sem grande ressonância diante de todo o esforço de criar um mosaico inteligente e desafiador de pensamento cênico performado. A trilha sonora de Juracy do Amor (Beef), explora texturas, riffs de guitarra ao vivo e potencializa o clima do programa.

ENDOGENIAS

O título Endogenias traduz o processo de valorização dos próprios intérpretes do Balé Teatro Castro Alves como criadores da companhia baiana de dança contemporânea. O espetáculo é formado por três coreografias distintas (Generxs, de Leandro de Oliveira; Youkali, de Konstanze Mello; e Dê Lírios, de Tutto Gomes), apresentadas com a plateia sentada no próprio palco da sala principal.

Imagens e contextos do cotidiano são inspiradores da coreografia Generxs que cria um ambiente de embate para discutir o gênero, a identidade de gênero, a sexualidade, a relação de poder entre masculino e feminino, o machismo. A obra de Leandro de Oliveira produz potentes movimentos e fluxos de imagens nas articulações das cenas sobre a criminalização e o preconceito; a tolerância relativa; e a celebração. Em determinado momento da peça coreográfica, pessoas do público recebem bolinhas e são incentivadas a jogar em um personagem que assume sua homossexualidade. Em seguida, outro bailarino, montado em uma sandália plataforma, pega o microfone e parte para discutir com a plateia sobre o procedimento, questiona a ação e faz um discurso contra o preconceito.

Tudo é permitido sem censura ou julgamentos em Youkali, da coreógrafa Konstanze Mello. É um quadro bem sensual. O bar dançante se transforma em lugar utópico onde os seres podem realizar seus desejos. Lá não existe conflito, discriminação, nem qualquer tipo de censura. A peça é livremente inspirada na obra Cabaré Youkali, do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (1898-1956), e do também alemão, o compositor Kurt Weill (1900-1950). Sugere uma caverna pós-moderna para onde se pode fugir da realidade opressiva e perversa.

Dê Lírios, de Tutto Gomes, trata das desilusões amorosas e chega ao palco com um sotaque nordestino e as influências norte-americanas e europeias. Carrega um tom nostálgico reforçado pela música Chorando e cantando de Geraldo Azevedo. A coreografia também faz referências indiretas ao Movimento Armorial lançado pelo escritor paraibano Ariano Suassuna (1927-1914).

Mônica Santana questiona a invisibilidade, os estereótipos, o silenciamento e a hipersexualização da mulher negra
Mônica Santana questiona a invisibilidade, os estereótipos e a hipersexualização da mulher negra. Foto: Leonardo Pastor

ISTO NÃO É UMA MULATA – SOLO PERFORMÁTICO

No teaser do espetáculo Isto não é uma mulata, a atriz Mônica Santana queima uma edição de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, entre outros livros e revistas. Ela defende o procedimento como ação política contra a lógica da democracia racial. Na peça, a atriz cita a famosa frase “branca pra casar, preta pra trabalhar e mulata para fornicar”. É contra esse tipo de discurso que a intérprete levanta a performance, da invenção da mulher negra no Brasil.

Antes de começar a sessão, enquanto o público aguardava o chamado, uma moça circulava a limpar o chão. Achei estranho. Mas isso já fazia parte da performance, da demonstração de invisibilidade dos papeis subalternos.

O espetáculo se alinha com o processo de muitas mulheres negras e da própria atriz. Dos procedimentos que adotou para ser notada, para parecer branca. Do autoengano de que não é tão preta assim à consciência da beleza e forças negras, que não admite o exotismo, a animalização nem a hipersexualização.

A performance ironiza de forma potente a imagem da mulher negra nas artes e na mídia. Isto Não é Uma Mulata ataca clichês na representação da mulher negra. E é bastante contundente ao criticar os papeis redutores do trabalho doméstico, da sensualidade da passista carnavalesca e do corpo exuberante.

Como exercício de teatro político, a peça também cumpre a função de falar de afetividade e solidão, da feminilidade estilhaçada, de racismo. Enquanto prática política. Isto Não É Uma Mulata leva para o centro da discussão a invisibilidade, a visibilidade reduzida, os estereótipos, e o silenciamento. Num tom empoderado, agressivo até, de quem está pronta para o combate.

Antígona Recortada, do Grupo Bartolomeu de Depoimentos
Antígona Recortada, do Grupo Bartolomeu de Depoimentos. Foto: Leonardo Pastor /Divulgação

ANTÍGONA RECORTADA: CANTOS QUE CONTAM SOBRE POUSOS PÁSSAROS

Os clássicos são assim: têm fôlego para aceitar demandas contemporâneas, para afinar urgências políticas e crescer em poéticas. Ocorre com Antígona recortada: cantos que contam sobre pousos pássaros, montagem do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, que traz o mito grego de Antígona para os tempos atuais. A tragédia de Sófocles serve de base para mostrar meninas da periferia, que organizam uma ação contra o extermínio de seus irmãos pela ação do tráfico.

Já faz 13 anos que o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos surgiu com o intuito de traçar fluxos entre a cultura hip-hop com o teatro épico. O grupo é formado por Claudia Schapira, Eugênio Lima, Luaa Gabanini e Roberta Estrela D’Alva.

No texto original de Sófocles, Antígona defende o direito de enterrar o seu irmão Polinices com todas as honras fúnebres. Isso vai de encontro às ordens de Creonte (a figura do Estado), que decidiu que somente o outro filho de Édipo, Etéocles é merecedor de tais honras, pois foi morto em combate pela defesa Tebas, cuja sucessão do trono foi motivo da batalha entre os irmãos.

Antígona recortada pega do original grego a discussão do direito de as periferias sepultarem dignamente seus mortos exterminados pelo tráfico e com isso se insurge contra os chefes.

As atrizes-MCs Luaa Gabanini e Roberta Estrela D’Alva expressam com o corpo e a voz o trabalho de recolher os corpos dos meninos para promover o justo descanso. A palavra pronunciada ritmicamente (“spoken word”) pelas duas intérpretes é cercada, trancada e comentada nas batidas sintetizadas e misturadas pelo DJ Eugênio Lima, provocando uma potente experiência sensorial. E nessa mistura sonora entram diversos sons, falas – como as de Juscelino Kubitschek e Lula – e músicas de vários matizes, do MPB ao funk.

Com texto e direção de Claudia Schapira, a peça mira a violência exercida nas periferias e favelas, mas remete para as reivindicações de injustiças praticadas na ilegalidade ou ainda sob a capa da legalidade.

Artistas falam de um lugar que não existe mais
Artistas falam de um lugar que não existe mais. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Sanja Mitrović, junto à tela, e Vladimir Aleksić, deitado no chão. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Sanja Mitrović, junto à tela, e Vladimir Aleksić, deitado no chão. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

NÃO ME ENVERGONHO DO MEU PASSADO COMUNISTA

Sanja Mitrović (1978) e Vladimir Aleksić (1977) nasceram em Zrenjanin, na República Socialista Federativa da Iugoslávia, atual Sérvia. Ela trabalha atualmente entre Bruxelas e Amsterdã. Ele voltou à Sérvia para reconstruir sua vida. Amigos de infância, eles comungam da mesma memória de um país que não existe mais. A partir dessas lembranças pessoais, do passado socialista, do sentido de comunidade e da história do cinema iugoslavo, eles ergueram o espetáculo Não me envergonho do meu passado Comunista (I Am Not Ashamed of My Communist Past).

O sentimento de perda desses dois artistas é mostrado na peça numa mistura melancólica do auge ao colapso das empresas socialistas e o avanço do conservadorismo. Sanja e Vladimir traçam um diálogo entre cinema e teatro e utilizam uma série de estratégias – de comentários em áudio, sincronização simultânea para criar uma cena física e elucidar / embaralhar o que é fictício ao entrelaçar suas experiências de vida com as dos filmes, que formam um mosaico da história do território iugoslavo.

Partindo da autobiografia da dupla, a peça expõe as transformações geográficas e afetivas impostas pelas guerras, o pós-socialismo, o neoliberalismo. A devastação da cidade natal dos artistas, que era uma potência econômica, atingiu a vida pessoal de cada um deles. Com arquivos de filmes que refletem uma multiplicidade de posições políticas e culturais, eles projetam as contradições da sociedade em que viveram.

Os testemunhos reais estão repletos de humor e de crítica ao capitalismo desenfreado, dos perigos do nacionalismo, do racismo e do ódio, da iconografia da destruição do Leste Europeu, e as identidades europeias numa época de grandes migrações globais.

Ator Eduardo Okamoto. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Ator Eduardo Okamoto. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

OE

Um poema para a cena que sintetiza 28 imagens oscilantes entre a tradução do sonho e memória, vivência e imaginação, palavras e silêncios. O espetáculo Oe tem essa pretensão grandiosa, apesar de sua aparência simples. Traz um corpo altamente emotivo em gestos e expressões, mesmo as mais suaves. Esse solo com dramaturgia inspirada na obra do escritor japonês Kenzaburo Oe – vencedor do Nobel de Literatura de 1994, mais especificamente no livro Jovens de um novo tempo, despertai! trabalha com urgências e impossibilidades. Ao identificar a ameaça da morte, um homem escreve para o seu filho primogênito, que possui  deficiência intelectual, um livro contendo a definição de todas as coisas existentes no mundo.

O ator Eduardo Okamoto encara a vertigem terrível de um pai dividido entre amor e culpa em relação ao seu primogênito, um menino que sofre de uma deficiência intelectual congênita e se supõe eternamente dependente.

O diretor Marcio Aurelio utiliza poucos recursos: cenário reduzido a alguns objetos, uma movimentação desenhada e breves oscilações na voz. A dramaturgia de Cássio Pires ergue episódios que não seguem uma ordem lógica ou temporal.

O filho só desenvolveu a fala depois dos seis anos de idade, aprendendo com o som dos pássaros. O menino aprendeu a tocar piano e, hoje, é compositor respeitado no Japão e fora dele.

O espetáculo propõe um chamado para novas formas de cidadania, baseadas na responsabilidade intransferível de cada ser sobre suas ações: “[há uma] conexão existente entre a violência em escala mundial, representada por artefatos nucleares, e a violência existente no interior de um único ser humano”, escreve Kenzaburo Oe.

Para dar vida a tão profundo personagem, o ator Eduardo Okamoto realizou um estágio em 2014, no Kazuo Ohno Dance Studio, localizado no Japão, transportando sensações aos movimentos do corpo tirados do Butoh, dança japonesa criada por Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno.

Margem de erro, para mais ou para menos

Foto: Caio Nigro/Estúdio Zut
Foto: Caio Nigro/Estúdio Zut

Crítica do espetáculo 100% São Paulo, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2016

7 de março de 2016

Cada uma das 100 pessoas escolhidas para participar do espetáculo 100% São Paulo se enquadra em um ou mais critérios estatísticos que refletem a demografia da cidade, com base em dados do censo. Esse recorte busca traçar um determinado mosaico da maior e mais rica cidade da América Latina. Esse conjunto de desejos múltiplos e fragmentados, hábitos e visões de mundo tão diversos não resulta numa identidade coletiva. A presença desses habitantes de pontos diferentes da metrópole reforça a complexidade que as estatísticas não conseguem traduzir. Fica na margem do irrepresentável. Mas neste nosso mundo marcado pela “crise dos representados”, o projeto 100% City dialoga com diferenças e abre espaço para a alteridade no palco.

Pela primeira vez o Theatro Municipal de São Paulo abriga uma encenação da programação da Mostra Internacional de Teatro – MITsp. E é bastante simbólico que seja com um trabalho que busca espelhar a população da cidade com não atores em cena, ou “especialista/expert de sua própria vida”, como definem os diretores da Companhia Rimini Protokoll, dirigida por Helgard Haug, Stefan Kaegi e Daniel Wetzel.

São pessoas com cara de gente comum que trazem dados biográficos ou testemunhais para dialogar com a pólis em que moram e com a plateia. Esse acesso ao real para a construção de sentidos também passa por uma tensão entre o real e pitadas de ficcional que cada um  leva para o palco.

Esse teatro do real quer sentir a pulsação do mundo, nesse caso do espaço recortado da São Paulo por seus habitantes, muitos que nasceram em outros estados e até estrangeiros. Essas reflexões sobre a cidade rechaçam a ideia de uma realidade unitária. A presença dessa alteridade torna possível entrever a miscelânea de pontos de vista. Mas isso não é muito garantido, pois os “especialistas” podem ficcionar a verdade sobre si. Mas, para os diretores, não é isso o que mais importa, e sim como cada um desses atuadores se apresenta e o papel que assume para entrar no jogo. São eles que constroem um sentido com suas presenças.

Não sei se essa estatística viva, com apresentação e enquetes sobre política, religião, sexualidade, hábitos e outros, corresponde às realidades tão díspares de São Paulo. Mas essa prática criativa carrega uma potência de envolvimento e da experimentação estética por outros atores sociais, permitindo transgressões da representação. É emblemática a pergunta se alguém daquele grupo já havia pisado no palco do Theatro Municipal, deu zero por cento. Talvez, se a pergunta fosse se algum deles já tinha ido ao Municipal como espectador revelasse mais.

Os fluxos de pertencimento dos participantes entre uma situação e outra, as cartas embaralhadas e as sobreposições dessa prática performativa convocam dimensões críticas com a aproximação desses desconhecidos entre si para partilharem opiniões sobre várias questões objetivas e subjetivas. Isso faz oscilar entre o que representa e o que não representa os que estão do lado da plateia.

No cenário, um grande círculo verde, que apresenta detalhes filmados de cima. O caráter cíclico da vida é mostrado em várias ações.

Durante os seis ensaios realizados com o grupo e as duas apresentações, o coletivo promoveu uma proximidade, sinalizando para o entendimento de respeito entre os desconhecidos. Isso reverbera. A saída temporária do anonimato de cada um deles reforça ações políticas de tomada de posição.

A política ainda desperta paixões

Crítica sobre o espetáculo Ça Ira, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda? / DocumentaCena)   

MIT 2016

7 de março de 2016

A política pulsa. Tensiona nervos, acelera o sangue e diz respeito a todos nós.  Ça ira, espetáculo do francês Joël Pommerat, com a Compagnie Louis Brouillard, conduz o público para o núcleo dos acontecimentos que urdiram a Revolução Francesa. É um estímulo ambicioso, que insere a plateia no coração dessa aventura humana, em turnês temporais que projetam o ontem no hoje e trafegam em várias camadas. Em 4h20, três atos, o dramaturgo e encenador leva atores e plateia a uma exaustão revigorosamente crítica, depois de uma avalanche de palavras encarnadas de ações da política e do poder. Do desejo de mudança do homem no seu tempo.

A peça inicia com a convocação dos Estados Gerais em 1788 e segue até a noite de 4 de agosto de 1789, quando os privilégios são abolidos e é legitimada a igualdade de todos os cidadãos. Marco da democracia moderna, esse período retraça o estar no mundo. Há uma profusão anárquica na exposição de fatos e rumores que estremecem a cena. Os espaços do palco e plateia, juntos, acolhem as ações: a residência do rei em Versalhes, o salão dos estados gerais e um distrito eleitoral e a assembleia dos bairros.

O público incluído na ação pode ser encarado como a multidão indecisa, que acompanha e muda de posição a partir das atuações dos revolucionários conservadores, moderados ou radicais. Os atores usam microfones, as intervenções mais violentas que ocorrem fora da cena são materializadas no som. E a iluminação sombria cria os climas dos espaços públicos, inclusive com as luzes da assistência acesas, e os salões privados para os nobres.

Lugar da ficção, a plateia assume a função de assembleia nacional. Mesmo que não seja a invenção da pólvora, a configuração de alguns atores espalhados entre o público é potente. Durante a peça, intérpretes se destacam para falar, outros permanecem nos corredores, colaborando com aplausos, vaias e palavras de ordem. Eles atuam como representantes da nobreza, do clero, do Terceiro Estado, deputados da Assembleia Nacional e da Assembleia Constituinte. Para engrossar, o diretor também escalou atores e não-atores brasileiros, falantes de língua francesa.

Durante o programa Pensamento em Processo, encontro de artistas com o público da MITsp efetivado no Itaú Cultural, no sábado, o diretor explicou que não separa as imagens das palavras em suas produções “para mim é uma coisa única”. E que Ça ira não é um espetáculo político, mas sobre política.

Na sua acepção mais ampla, a política está metida em tudo. Sua razão de existir é o dissenso. A possibilidade de troca simbólica de comunicação, num jogo argumentativo, declarativo, em que princípios e crenças são defendidos num embate de ideias e posições diferentes, numa negociação em que entram muitos verbos, inclusive brigar.

Se o poder é um princípio na política, a justiça ou a liberdade são dispositivos que podem produzir mobilização. O que não é possível esquecer é que todos os seres têm interesses pessoais e coletivos.

Cada personagem de Ça Ira está implicado com sua luta. E para isso gritam, insultam e fazem da oratória uma paixão algumas vezes risível. Integrantes do Terceiro Estado conquistam o direito de fala pública e política, até então dedicado à nobreza, clero e parlamentos. Nessa energia revolucionária salta a intransigência que produz cenas e posturas no elenco que faz ferver o ambiente.

Pommerat convocou para esse campo de batalha não as grandes figuras e mitos históricos. Mas indivíduos desconhecidos que colaboraram para a mudança de rumo. Isso também ajuda a superar o aspecto mais documental. O nomeado é Louis XVI, que enfiado em ternos de Yvain Juillard, defende que é preciso equalizar os impostos, com a inclusão de nobres e do clero como pagadores.

Os discursos ideológicos são incendiários e conduzem para a invenção da democracia. A partir de ideias e visões de mundo contrastantes, são projetados valores e representações de demandas morais e filosóficas. Ao dobrar-se sobre o passado, o encenador francês questiona o futuro.

Mas o diretor é sarcástico com a sociedade do espetáculo. Inventa uma comentarista de uma emissora espanhola, para reforçar que o mundo assiste à Revolução Francesa ao vivo. Ou nas cenas em que anônimos repreendem o rei, por qualquer coisa, e para depois ser fotografado com o soberano e desmaiar de emoção.

Brasil e mundo dos imigrantes

Na sexta-feira da estreia do Ça ira no Brasil, o país foi afetado pela condução coercitiva do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva para depor na Polícia Federal, em mais uma etapa da Operação Lava Jato. Essa atuação provocou debates durante todo o dia e levantou dúvidas sobre a parcialidade do episódio. “Nós precisamos ter provas de simetria, provas de que essas instituições agem de maneira simétrica contra qualquer ator político”, comentou o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle sobre o assunto.

Com essa medida da PF e seus desdobramentos, a reação de Lula e seus aliados, o espetáculo ganhou outras linhas com o real, e possibilitou traçar outros significados com a realidade brasileira, a república e a democracia. Associações e paralelos da encenação com a crise das instituições brasileiras, avanço reacionário, o poder dos grupos dos “3B” – o boi, a bala e a Bíblia – foram inevitáveis.

Mas a ferida de retrocessos se espalha pelo mundo capitalista. Ça ira também aponta para o fluxo de pessoas deslocadas, principalmente as que fogem das guerras. Do seio da revolução francesa encenada é possível vislumbrar uma vigor reivindicatório, a partir da crise dos refugiados e migrantes que chegam à Europa

O encenador investe na força da palavra e na presença dos atores para compor as espessuras desse jogo, entre coro de vozes dissonantes.  O exercício e o aprendizado do poder democrático são árduos e dão sinais de fadiga. Mas o poder de mudar a sociedade, martela Joël Pommerat em Ça ira, está nas mãos de todos.

 

Memória encharcada de sangue

Foto: Frederico Chigança e equipe
Foto: Frederico Chigança e equipe

Crítica do espetáculo Villa, de Guillermo Calderón, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

26 de dezembro de 2015

Que destino dar a nossa memória traumática particular?! Pergunta difícil. Imagina quando esse sótão carregado de lembranças individuais compõe uma dolorosa história coletiva! Tudo ganha contornos ainda mais lancinantes quando reviramos os porões da ditadura latino-americana. Os momentos de horror da humanidade, em todas as épocas, ganham uma fisionomia de ignomínia a partir dos discursos que os humilhados e ofendidos conseguem erguer e propagar. É sempre uma luta. Uma negociação. Tentativas de convencimento.

Desde a tradição de Heródoto, busca-se na narrativa histórica uma verdade. Mas até que ponto confiar na fragilidade da memória de testemunhas e dos envolvidos, já que nessa reconstrução a subjetividade atua de forma decisiva, trazendo variações de relatos para o mesmo fato? Esse objeto recuperável é cognoscível, e pode ser alterado a partir da linguagem.

As obras teatrais do diretor chileno Guillermo Calderón exploram de forma potente a memória política do seu país e a representação teatral desse legado. Uma dobra entre as escavações íntimas e a construção poética da cena. Complexidades do discurso público. Em Villa, três mulheres se reúnem para discutir o futuro da Villa Grimaldi, maior dos 1.200 centros de detenção criados pela ditadura militar de Pinochet, um lugar onde foram torturadas milhares de pessoas e outras centenas foram “desaparecidas”.

Concebida como um díptico, em alguns festivais Villa foi apresentada junto com Discurso, em que o papel da presidente do Chile Michelle Bachelet é dividido por três atrizes. A personagem faz um balanço para acentuar as projeções, as possibilidades e falhas de um líder político. Mas na II Bienal Internacional de Teatro da USP, Villa foi exibida isoladamente.

As recordações das ações do regime autoritário são caras as três Alejandras, interpretadas por Francisca Lewin, Macarena Zamudio e Maria Paz Gonzalez. Mas elas não sabem os motivos das outras. Isso será revelado gradualmente. Elas estão reunidas, em volta de uma mesa que abriga uma maquete, para decidir o que deve ser feito do que foi o Villa Grimaldi. Transformar num memorial? Mas com que conceito?

Numa discussão acalorada, cada uma defende os pros e contras de cada proposta. Desde a demolição do edifício até um museu em que os visitantes possam sentir o que os torturados sentiram, ou mesmo uma projeção de futuro para sobreviventes e seus parentes.

Na primeira votação estabelece-se um impasse. Uma delas escolhe a opção A – reconstruir a Villa como era; outra decide-se pela opção B – construir um museu; e o terceiro voto é nulo – pois está escrito marichiweu, palavra mapuche que significa “dez vezes venceremos”. A crise se instala, mas traz consigo senhas.

Essas cicatrizes do passado não aceitam o consenso. Mas como fazer justiça às vítimas – mulheres que foram estupradas até por cachorros? Como punir os algozes com suas imagens já descolados do passado?

A fertilidade de logos na montagem de Villa mostra que pessoas que passam por situações muito semelhantes podem desenvolver uma visão de mundo bem distinta, que se apresenta como um exercício dialético vigoroso. Nessas discussões, as contradições e as tensões remetem para o caleidoscópio na produção dos afetos e as marcas cravadas em cada uma dessas mulheres.

E como reagir ao destino duro de quem precisa encarar a sombra do seu carrasco na face da criança gerada por abuso sexual? Horror materializado numa gangorra de sentimentos que desliza do amor ao ódio. As “receitas” para esquecer uma grande dor parecem todas inválidas. A vingança beira uma outra barbárie.

E é com maestria que Guillermo Calderón traça as dores desses destroços sem fluidificar suas consequências em frases de efeito sensacionalista. E sem maniqueísmo. Lembrar é um ato político. E para salientar isso, a cena é erguida com simplicidade.

A dificuldade de lidar com essa memória é também posta na alternância de técnicas de identificação e de distanciamento. As narrações estão carregadas de imagens fortes, de brutalidade, de violência, de violação aos direitos humanos. E a discussão expõe as marcas das atrocidades, em defesas apaixonadas.

A opção reconstruir a Villa é defendida para impedir a extinção das provas e um consequente esquecimento; a opção B visa erguer um museu branco, como a neve, “um museo del recuerdo doloroso, pero lindo”:

O final apresentado pelo grupo Teatro Playa – de um abalo sísmico em que a mesa e os copos de vidros começam a tremer até quedar em fragmentos no chão – abre para variadas interpretações. E que indicam que junto com o sofrimento individual de quem sentiu na carne as ações criminosas, esses atos ainda fazem sangrar o coração, os olhos, os pulmões e os ossos do país.

Esse silêncio grita por humanidade

Foto: Ivana Moura
Foto: Ivana Moura

Crítica a partir da performance Espaço de Silêncio, de Nina Caetano, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

21 de dezembro de 2015

Em média, 13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil. Uma a cada duas horas, segundo o Mapa da Violência Contra a Mulher. Os dados são alarmantes, mas essa realidade pode ser ainda pior. As políticas públicas são insuficientes para barrar a cultura machista, apesar de alguns avanços, como a lei do feminicídio. A indiferença da maioria da população é um grave problema. Como em outros quesitos da vida contemporânea, o entorpecimento da sensibilidade chega a patamares tão elevados que cada um só se preocupa com os seus problemas. Mas violência que fere ou abate as mulheres não distingue classe social, nem idade. Todas podem ser vítimas. E isso é assustador.

Mas as estatísticas revelam que as mais atingidas são as pobres e negras. A elite brasileira, que poderia contribuir mais, aparenta se importar pouco, de verdade, com isso. Parece que as figuras encasteladas, sob as vigilâncias de todas as ordens,  – e principalmente que ocupam posições de poder – só são tocadas quando lhes rasgam a carne: matam seu filho, sequestram seu neto, estupram sua filha. Quando uma infelicidade dessa acontece, atinge os nervos, os ossos, os músculos e o coração dessa gente.

Talvez esse não seja o principal público da performance Espaço de Silêncio, da dramaturga, professora e atriz mineira Nina Caetano, que se insurge contra esse quadro aterrador. Mas outra plateia, subjugada pelo capitalismo e desatenta ao poder submerso dentro de si, que em dinâmica coletiva seria (será) capaz de provocar mudanças. Espaço de Silêncio é uma atuação política, de denúncia e repulsa pelas mulheres mortas. Mostra-se necessária e comovente. Normalmente é apresentada em lugares de intenso fluxo de pedestres.

Na sexta-feira em que parte do país saiu às ruas em manifestação contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, Nina Caetano estava na Praça da República, no centro de São Paulo. Sua performance integrou a programação da II Bienal Internacional de Teatro da USP. Era um dia especial. As pessoas passavam apressadas. Umas para correr da passeata, outras para engrossar a mobilização.

Os transeuntes pareciam em dúvida se era um protesto, uma dessas pegadinhas da TV ou até mesmo teatro. Uma ação de poucos gestos, nenhuma fala, vários textos escritos, como listagem de mulheres mortas, micro obituários e manifesto poético. Vestida de vermelho, com um turbante também vermelho na cabeça, a atriz e cofundadora do agrupamento mineiro Obscena traçava seu ritual pagão.

Durante quase uma hora, um lençol branco é seu palco. A atriz aparece com uma fita vermelha em cruz afixada na boca. Desprende a fita adesiva dos lábios. Corta com os dentes outros pedaços de fita para formar cruzes sobre o tecido branco. Um cemitério simbólico, com suas histórias de massacres que a omissão covarde quer fazer parecer banal, uma consequência “natural” da postura da mulher vítima da violência de pessoas que deveriam cuidar delas, como maridos, noivos e namorados.

Esse ritual silencioso vocifera de historicidade e traça seu legado de injustiças. O gestual é suave e decidido. O olhar duro carrega uma revolta contida. Quem cruzou o olhar com a atriz sente que ela cobra a parcela que cabe a cada um da responsabilidade de estar no mundo. Essa performance atesta que essa brutalidade não pode ficar por isso mesmo. Perturbadora.

É artivismo vigoroso e contundente. Chega a ser lancinante. A cada nova cruz posta no chão amplifica a potência desse grito. Aquelas mulheres simbolizadas ali insuflam os pedidos de socorro. Com os sentidos débeis, fala-se em demasia. Vivemos saturados pela superprodução mercantil de signos, de informações descartáveis. Espaço do Silêncio vem interromper o falatório vazio das coisas. Nesse espaço-gesto que ressalta a omissão adotada em torno dessa violência, a intervenção explode de indignação na paisagem urbana. A performance foi criada a partir da Ideia-Situação do artista visual Artur Barrio, uma proposta feita para a Documenta 11.

Nessa atuação performativa e micropolítica prevalece a arte do inacabado. A poesia que se instaura a cada nova ação. Temporária e nômade. Na Praça da República, a artista encarou e desafiou os presentes. Um homem tentava fazer um discurso inócuo sobre como ele valoriza a mulher. Nina Caetano pegou o cabra pela mão e “ordenou” que ele lesse o manifesto. O rapaz não suportou. Uma mulher apareceu e queria explicações sobre o trabalho. Outros paravam um minutinho, eram tocados e partiam. E Espaço do Silêncio segue afrontando as estruturas de controle. Investe na provocação para despertar os desejos de que somos todos humanos.

Obsessões rodrigueanas

Foto: Bruno Soares
Foto: Bruno Soares

Crítica do espetáculo Flor de obsessão, de Ricardo Guilherme, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

17 de dezembro de 2015

Em Flor de obsessão, o ator e diretor de teatro cearense Ricardo Guilherme trilha um caminho de desejo dual oposto ao mundo de incerteza e extrema insegurança em que vivemos. As fragilidades nas relações sociais de que fala Zygmunt Bauman são substituídas por uma ideia obsessiva de amor, a partir de três contos de Nelson Rodrigues (Morte pela boca, Missa de sangue e Unidos na vida e na morte). O material fez parte da coluna A vida como ela é, publicada pelo escritor em jornais cariocas nos anos 1950.

Na montagem, erguida em 1993, a dramaturgia de Flor de obsessão traz figuras transpassadas pelo trágico, que enxergam como única saída a morte. Além de dois depoimentos, em primeira pessoa, que formam o prólogo e o epílogo.

Largada pelo amante, a personagem de Morte pela boca revela ao marido a prevaricação e ordena que o traído abata o rival com um tiro na boca. Em Missa de sangue, a infidelidade só é constatada pelo homem enganado nos delírios de febre da mulher, que clama pelo amante. O amor também é uma prisão em Unidos na vida e na morte, mas dessa vez nem a morte configura-se como liberdade.

Na encenação, o ator Ricardo Guilherme dramatiza e comenta as ações narradas. Quando o público entra no teatro, o artista já está no palco, deitado em uma bancada que lembra um caixão. Nos informes sobre o espetáculo, o ator (que também é o diretor da peça) diz que são dois movimentos para cada um dos tópicos narrados. Ao todo, oito movimentos matriciais. No prólogo, de pé, Ricardo Guilherme usa as mãos para realizar ações verticais para cima e para baixo no rosto, formando máscaras da comédia e da tragédia. Em Morte pela boca, com os dedos em forma de garras, simula ferir alguém ou a si mesmo. O gesto de Missa de Sangue, apresenta o ator de braços abertos e cruzados, imagens que aludem ao abraço esperado/ desejado e abraço rejeitado. Já em Unidos na vida e na morte, enlaça e desenlaça as mãos. E por fim, no prólogo, levanta-se, fala ao público e sai.

Os traços expressionistas são evidenciados com grande potência pelo intérprete de grandes recursos técnicos, vocais e corporais. Criador do que chama de teatro radical (método em que a figura do ator traça os significados, a partir de imagens do corpo, que permitam ao espectador participar com sua imaginação e projetar sua subjetividade), ele utiliza o conceito de repetição criativa: a ação se reproduz, mas a repetição lhe acrescenta novos significados. Uma luz quase na penumbra valoriza as expressões.

Autor com gosto pelos paradoxos, como afirma o estudioso Eudinyr Fraga, Nelson Rodrigues coloca a mulher – historicamente massacrada pelos crimes provocados por ciúme doentio e mórbido – como as detonadoras das pulsões de vida e morte nos contos escolhidos para a peça. Em Flor de obsessão as mulheres são possessivas, manipuladoras e se não são por suas mãos que os homens matam, ou se suicidam, são elas quem incitam o ato.

O crítico Sábado Magaldi, também estudioso de Nelson Rodrigues, assinala que a obra do autor de Senhora dos Afogados carrega consigo a fórmula cristã: desejo, pecado, punição/redenção. O personagem mata ou se suicida para se redimir do sentimento de culpa.

A frase de Nelson Rodrigues “Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor”, que sustenta a ideia do espetáculo, e é dita no início da peça remete, talvez, a um ideal romântico em que era bonito até morrer por amor. Na primeira vez em que assisti ao espetáculo, lá pelos anos 1990, fiquei absolutamente encantada com as frases do texto em harmonia com o gestual do artista, o que era música para meus olhos cansados de uma desilusão amorosa. Anos depois, tenho outra visão do espetáculo.

Bem, Flor de obsessão não está estruturada no social, mas é palco de revelações de desejos íntimos e inconfessáveis, tablado para lançar luz a deformidades psíquicas. Mas mesmo tendo a mulher como o ser mais algoz, que trai e dissimula (e como já disse o paradoxo rodrigueano não pode ser entendido somente como misoginia; penso no texto com uma tendência para o anedótico), a construção do espetáculo não me parece dialogar com as atuais questões que pulsam na sociedade. E disso sinto falta.

O controle social dos impulsos é estudado por Freud em Totem e Tabu e o pai da psicanálise aponta que o sujeito nunca internaliza completamente a interdição. Daí ocorre o conflito de duas grandes forças: o desejo da violação das normas e o recalque do desejo. Nelson Rodrigues faz emergir nas ações de seus personagens os impulsos mais secretos.

Fazendo uma aproximação com a ideia de Bauman, que está lá no começo do texto, a qualidade das relações diminui vertiginosamente no mundo contemporâneo, ou como ele define, na modernidade líquida. E, para compensar esse dado, a tendência é o aumento no número de parceiros. Bauman chama isso de conexão e a característica é não haver responsabilidade mútua.

O sociólogo polonês trabalha com conceitos de Afinidade e Parentesco para expor sua defesa de que vivemos em uma sociedade de extrema descartabilidade. O parentesco seria o laço irredutível e inquebrável. E a afinidade, eletiva.

Mesmo que o cenário do amor em Nelson Rodrigues seja povoado por prisões emocionais, que escravizam e clamam pela morte, é preciso não esquecer que esse autor genial era um provocador. Para alguns, reacionário, por suas posições conservadoras sobre temas polêmicos à época em que viveu.

Seus personagens se revestem de ambiguidades. No livro A menina sem estrela: memórias, Nelson Rodrigues. Defende: “O amor normal não tem imaginação, nem audácia, nem as grandes abjeções inefáveis. É um sentimento que vive de pequenos escrúpulos, de vergonhas medíocres, de limites covardes”.

Na ótica desse autor, o sofrimento humano é um processo de redenção para redimir a culpa. Nesse contexto de Flor de obsessão, outras camadas de afetos poderiam fazer vibrar outras notas, inclusive as dissonantes, desse universo doentio que o autor pinta nos seus textos com tintas bem carregadas.

Cubalândia traça imagens da decadência

Foto: Divulgação Tusp
Foto: Divulgação Tusp

Crítica do espetáculo Cubalândia, do grupo El Ciervo Encantado de Cuba, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

5 de dezembro de 2015

As dimensões territoriais de Cuba são inversamente proporcionais às paixões que essa ilha já despertou em gente de todo mundo. O cromatismo afetivo compõe um paradoxo de julgamentos, o que inclui sua própria população. Da revolução socialista à abertura ao capitalismo, cabe todo tipo de interpretação dos que estão de fora aos que estão lá dentro. O solo Cubalândia, do grupo El Ciervo Encantado de Cuba, com a atriz Mariela Brito e direção geral de Nelda Castillo, – exibido dentro da programação II Bienal Internacional de Teatro da USP – aplica a chave do grotesco para criticar a política dos irmãos Castro e seus companheiros e expor uma visão de decadência cultural, daquele país que já foi apontado como o utópico laboratório do socialismo.

A figura que surge nessa reorganização da economia cubana, apresentada no espetáculo, é a “cuenta-propista” – a empresária por conta própria, a empreendedora. Yara, a Chinesa, tem três licenças para trabalhar e oferece excursões pelos lugares paradisíacos da ilha. Ela salienta o tempo todo que viajar, com ela, para Varadero, Viñales, Trinidad ou Santiago de Cuba é um investimento e, consequentemente, terá retorno.

Seus clientes potenciais são os próprios cubanos, os que recebem seus salários em CUP (moeda nacional). A outra é o peso cubano conversível (chamado de CUC), usada para comprar alimentos, pagar viagens e hotéis. Então, correm duas moedas no país, uma com mais valor que outra. Talvez aí resida uma crítica severa à simulação de igualdade a partir dos dois dinheiros: dois pesos e duas medidas. Mas se a ideia era realmente essa em Cubalândia, de detonar com a economia subterrânea, essa sutileza parece que não acertou o alvo para a plateia brasileira.

Não é possível conferir o desempenho de Mariela Brito descolado da realidade da ilha, que já foi o ideal refúgio socialista. Nem deixar de pensar na mundialização da cultura, com todos os prejuízos que isso acarreta.

A protagonista vende a ilha para turistas e nativos. Além das belezas edênicas, ela propõe uma restituição financeira a partir de alguma atividade escusa: contrabandear charutos ou coisas parecidas. Yara China é uma cubana que acumulou bens baratos e é capaz de quase tudo para sobreviver. Ela é uma figura festiva, otimista, que fala o tempo todo de maneira apressada e nem dá para entender o que ela está dizendo direito (tem as legendas, que ajudam). A protagonista se apresenta vestida de forma espalhafatosa. Peruca, unhas excessivamente longas, lábios pintados com cores brilhantes, as roupas apertadas e curtas (short e mini blusa), sapatos plataforma e um conjunto de pulseiras e brincos dourado formam sua indumentária. A maquiagem pesada e um contorno preto, que lembra a pintura do palhaço, e dois dentes de ouro completam o layout desse rosto que termina ganhando ar de pouca confiabilidade.

Para armar sua tenda e estabelecer o seu negócio, Yara, a Chinesa, carrega consigo um mapa fragmentado da ilha, chamado de “Doble Moneda”, criado pelo artista Lázaro Saavedra. Instala um cartaz de Fidel e Raul Castro e uma pequena estátua de um índio contra mau olhado.

Nesse jogo ela procura desmitificar ícones. Se a montagem de sua figura já compõe o exagero, os códigos gestuais clamam pela vulgaridade. O riso é disparado pelo mau gosto da cena, do grotesco, do ridículo. Em sua atuação como marqueteira para vender a ilha, a personagem dança, com requebros que lembram o funk ou pagode em que a linguagem chula predomina e isso é acompanhado pelos movimentos do corpo. Yara, a Chinesa parece uma mistura de personagens popularescas de Zorra Total, Gretchen, falsa cigana e as novas celebridades da música apelativa.

O discurso é cínico e exagerado. Sua sátira aos encantos da Cuba que tenta vender desperta um desconforto. Parece-me que há um fundo ético e estético nessas escolhas. De denúncia de algo podre dentro do arquipélago. Mas muitas questões me vieram à mente durante a apresentação carregada de zombaria e escárnio, piadas e ridicularização da realidade atual, que remete à história cubana, seus mais de 50 anos de revolução e do embargo econômico à Cuba socialista provocado pelos Estados Unidos.

Espero que minha percepção não seja muito idealista de uma Cuba que visitei há mais de 15 anos, que se abria aos poucos e, mesmo com as controversas opiniões do povo cubano, ainda guardava uma aura de resistência. A Revolução Cubana sempre defendeu seu estado de perfeição, com as conquistas revolucionárias. A pressão externa (e interna) para desestabilizar o governo já passou por muitas etapas. Fica a sensação de uma construção inacabada. Diante de um possível fracasso, o espetáculo grita em alto e bom som que a alienação se instalou também na sociedade de José Martí.

Talvez a “elegância” de decadência seja uma forma de mostrar a precariedade de um povo, projetada na figura patética da agente de turismo de uma Cuba temática. Talvez fale alto de uma miséria espiritual que chegou depois de tantos anos de adversidades. Quem sabe uma crítica mordaz ou um espelho a alertar dos erros e excessos sem precedentes.

Se o cubano sabe zombar assim de seus infortúnios; o ridículo, o infame, o kitsch de Cubalândia que aciona seu arsenal contra a política interna de reposicionamento do país conduzida por Raul Castro leva a crer que as novas estratégias de dominação dos Estados Unidos são esquecidas ou sublimadas no espetáculo.

De todo modo, para uma plateia como a brasileira, que está exausta com os personagens caricatos da indústria cultural, que visam o riso fácil e sem grandes reflexões, a figura de Yara, a Chinesa parece mais uma dessa galeria bizarra e descartável.

Construção de sentidos e verdades

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa, do grupo El Bachín, por Ivana Moura? (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

16 de novembro de 2015

O grupo El Bachín abraça o “fidelismo”. E é desse lugar que a trupe portenha arquiteta os enunciados para discutir a construção da subjetividade, tendo como ponto de ancoragem as articulações da mídia e suas versões de fatos em progressão descolada de veracidade. “Que é a verdade?, disse zombando Pilatos e não esperou pela resposta”, registrou Sir Francis Bacon em seu Ensaio sobre a Verdade. Séculos depois, Jean Baudrillard (entre outros teóricos), aplica outra voltagem à representação de realidades expostas e embaralhadas pelos meios de comunicação.

No espetáculo Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa o grupo argentino, que participou da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, investiga como o senso comum é erigido, produzido como fator da classe dominante. Então, averigua a relação do jornalismo, ou os mass mídia no sentido mais amplo, com a política, a verdade, o poder, e o simulacro de “giro linguístico”. Mas a peça também sinaliza que corre subterrâneo uma outra peleja cultural, em chave dialética, que busca construir outros sentidos.

A ação de Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa se passa na véspera do dia 1º de janeiro de 1959, na redação de um jornal argentino. Naquela noite, entre máquinas de escrever e notícias captadas em ondas curtas, telefonemas sobre questões pessoais e coletivas, cinco indivíduos convivem com a expectativa e a previsão do futuro. O dia irá amanhecer com o triunfo da Revolução Cubana.

As informações a conta-gotas que chegam ao jornal estabelecem uma crise na redação. Esse tal de Fidel Castro é o detonador de uma mudança que ocorrerá no mundo e uma metáfora. Manuel Santos Iñurrieta assina a direção e o texto. O grupo percorre um caminho de ideias não convencionais, argumentos com engajamento ético e militância política, mirando o “vale tudo” pós-moderno.

Os personagens adotam posições divergentes quanto ao que ocorre naquela desconhecida ilha do Caribe e exacerbam suas posições políticas, desde a manutenção do colonialismo às utopias de libertação. É um dia histórico, a noite anterior da tomada de poder, no Palácio de Moncada. O grupo de jornalistas espera com ansiedade por notícias; um deles faz aniversário, uma entra em trabalho de parto, outro busca prever o futuro com sua bola de cristal.

Esse procedimento de adivinhar o amanhã também faz um paralelo com os fenômenos como os “simulacros” – que se tornam mais sedutores ao espectador do que o próprio objeto reproduzido – e uma mutação que conduz o real ao hiper-real. E principalmente a manipulação dos meios de comunicação.

A redação se torna também a toca de resistência peronista. Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa exalta o jornalismo “militante” contra o cinismo dos que defendem o simulacro vazio de realidade. Eles advogam o lema “Jornalistas recusam a mentir”. No jogo dramático a obra adota uma postura um pouco extremista. Os personagens proferem a frase “periodista que miente que se quite la vida”. Verdades e mentiras se misturam nos jogos teatrais. A peça cita as figuras Rodolfo Walsh e Jorge Masetti, dois jornalistas argentinos que se envolveram diretamente no espírito revolucionário, fundaram a agência de notícias Prensa Latina e se tornaram referências para seus pares.

O tom farsesco adota a política como algo indissociável da atuação humana. Nos quinze anos de trajetória (2001-2015), o bando sofreu e lutou contra os processos sociais e culturais do pós-neoliberalismo na Argentina. Os atores da El Bachin – Manuel Santos, Carolina Guevara, Jerome Garcia, Julieta Grinspan, Marcos Peruyero e Federico Ramón fazem da política a poética do palco, apontando para as contradições do capitalismo.

A companhia trabalha a partir do dramaturgo alemão Berltod Brecht e seu teatro político. E em Fidel Fidel. Conflicto en la prensa hibrida com a pop teatralidade, realismo crítico, o expressionismo, o hiper-realismo, o absurdo, a história e a metateatralidade. Humor e ironia escorrem entre gestos e falas.

Os personagens elaborados a partir da caricatura, do grotesco, dos velhos cômicos, formam seres absurdos, acelerados, que parecem manipuláveis em seus gestos como os bonecos do teatro de mamulengo, figuras atravessadas pela teatralidade máxima. Com suas perucas pretas diferentes de cabelo, seus figurinos de tonalidade cinza, inclusive para o Papai Noel. A iluminação joga com o contraste, com a semiescuridão, promovendo recortes como ocorrem nas edições no jornalismo.

Entre diálogos disparatados, o grupo refaz as dobras da história e utiliza fontes de áudios conhecidos, fotos e gravações e vídeos, traçando ligações também com mundo em que vivemos. Nesses tempos chamados pós-utópico, a El Bachín revê as utopias. Se algumas falharam, como a utopia socialista de gerar sociedades justas e sem classes, parece que o grupo aponta para o que Paulo Freire chamou de utopias minimalistas, aquelas que realizam o “possível viável”.

Humor crítico sobre processo civilizatório

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo La expulsión de los Jesuitas, da Tryo Teatro Banda, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

16 de novembro de 2015

Os efeitos lúdicos inscritos no jogo teatral do espetáculo La expulsión de los Jesuitas, percorrem, por meio do riso, uma crítica cáustica ao processo civilizatório no Chile – e em paralelo a outros países latino-americanos. O cômico, como sabemos, perturba e atiça reflexões. A galhofa de circunstâncias sinistras consente a crítica e, posteriormente, a ponderação. A companhia Tryo Teatro Banda, do Chile, opera um novo olhar sobre o próprio país e sua história em espetáculos que combinam música ao vivo, atuação, e arte dos menestréis, apelando para o humor com perspectiva satírica em relação a quem ocupa o poder. Uma poética perseguida pelo grupo em suas investigações. Com seus corpos e vozes, os integrantes buscam a expressão extrema, com habilidade nos truques e principalmente na execução de vários instrumentos musicais ao vivo.

Em La expulsión de los Jesuitas, com texto de Francisco Sánchez e Neda Brikic e direção de Andrés del Bosque, a chave bufonesca alcança a escala delirante. Na peça, os religiosos da Companhia de Jesus chegam ao Chile (1593) para catequisar índios, espanhóis e chilenos e acabar com a Guerra de Arauco. Mas o Rei da Espanha, a quem eles defendiam, expulsa os jesuítas em 1767. A peça é inspirada em várias fontes, inclusive o Tratado de Artes Cênicas (1727) do jesuíta alemão Franz Lang, considerado um verdadeiro tesouro. No elenco estão os atores Daniela Ropert, Alfredo Becerra, Eduardo Irrazábal, José Araya e Francisco Sánchez. Eles se multiplicam em alguns papeis e também tocam vários instrumentos com maestria.

O espetáculo perpassa por uma temática religiosa e explora, com seus personagens alegóricos, a doutrinação. A carnavalização, a partir dos pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin, expõe os conflitos e interesse de vários segmentos que chegaram ao Chile para se aproveitar de suas riquezas. Com a carnavalização na cena, a trupe dá voz ao grotesco e ao obsceno, num tempo que não é trágico, nem épico, nem histórico. E provoca um riso profundamente ambivalente. O sério-cômico carrega a crítica da formação de povo. Os traços dos personagens também estão impregnados da ausência de enobrecimento em suas ações. A comicidade é explorada nos vícios de todos os personagens. A ética cristã é desmontada. Os representantes da Igreja Católica também estão em disputa por poder e a cena em que o jesuíta se arrasta aos pés do rei para exigir exclusividade perante outras congregações é emblemática.

La expulsión de los Jesuitas imprime um tratamento humorístico às questões mais cruciais desse processo colonizador, em tom vivo e alegre. Traz a excentricidade carnavalesca e explora o mundo com um grande teatro em que os personagens, sem psicologia aprofundada, resvalam para a caricatura. Mas esses tipos provocam atinada crítica não apenas dos episódios do passado, mas nas questões do presente, como advertências ferinas sobre o mundo contemporâneo. E conjugam idioma indígenas, com espanhol, e passagens em latim e inglês para promover uma vitalidade de linguagem. Todos são satirizados. Suas tiranias e pequenas desonestidades, a ambição, os desvios e as luxúria. Os desmandos da fé e de outros poderes.

A companhia trabalha de forma alucinante, eletrizante, a equação entre jogo e riso. As figuras da peça remetem ao trickster, herói cômico de mitos indígenas norte-americanos, transgressor que usa de trapaças para abiscoitar seus alvos. A noção trickster aponta atualmente, na antropologia, para uma pluralidade de personagens localizados em várias culturas. Segundo Renato da Silva Queiroz, em O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster[1]: “Em geral, o trickster é o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, protagonista de façanhas que se situam, dependendo da narrativa, num passado mítico ou no tempo presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão de boas e más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os, despertando-lhes, por consequência, sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de indignação e temor, por outro.”

Os personagens da montagem guardam o caráter irreverente, apresentam laços estreitos com o trickster, com seus desvios e o ridículo como dispositivo, que detona o riso crítico. Isso fica mais evidente no papel do Padre, mas se contamina nos outros personagens de forma mais densa ou diluída. Os artifícios do jogo começam pelo texto, ganham forma e força na interpretação do elenco que se vale de truques performáticos, gestuais e mímicas que remetem à licenciosidade como danças vulgares, de aproximações com santos da Igreja Católica. E principalmente porque deixam espaços par o exercício imaginativo do espectador.

[1] QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster. In: Tempo Social; Revista Social, USP, São Paulo, Volume 1.

Em busca de um novo homem

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

16 de novembro de 2015

O peso da masculinidade imposta historicamente pode despedaçar os órgãos de um cabra. Diante de tanta pressão, o cara pode perder, junto com o paradigma tradicional de virilidade, seus pedaços pelo caminho. O prejuízo finde a identidade. Extravio ou privação de pernas, fígado, braços, pênis, olhos que foram arrebatados com força (ou astúcia). É de forma radical e poética que o grupo A motosserra perfumada trata dessas questões. O coletivo arrisca uma pesquisa nos limites entre o teatro a e performance. Na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, a trupe estreou o primeiro espetáculo. A montagem Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou é um experimento híbrido, à beira da exaustão física e spoken word, essa palavra falada que ganhou força na cultura Hip Hop nos últimos tempos.

Depois da apresentação no Centro Cultural São Paulo, a peça começa nesta semana uma temporada no Subterrâneo Theatro Municipal, espaço underground paulistano e a moçada garante que lá o espetáculo vai proporcionar uma experiência mais radical, com a inserção de conteúdos mais fortes. A produção recomenda que o público use calçados fechados. Os personagens quebram coisas como vidros e tijolos.

Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou tem texto e direção de Biagio Pecorelli, que está no elenco do programa e é autor do livro de poemas Vários Ovários, publicado pela editora independente Edith. A peça é de uma verborragia apaixonante e questionadora dos desejos e explora as contradições dessa crise do masculino.

As performances são exibidas num longo corredor formado por espectadores dos dois lados. No centro, nesse tapete imaginário, os atores atuam. Uma banda, de um dos lados desse corredor toca rock, derrama poesia, fantasias, fragmentos de vidas.

Matheus, um homem despedaçado que persegue o que perdeu na vida, é defendido por vários atores. Ele quer recuperar seus olhos, entre outras partes do corpo, para conseguir chorar. Nesse percurso imaginário ele bate à porta de ex-namoradas, de garotos (de ou sem programa) que encontrou pelo caminho para matar o tédio.

Entre fios de recordações, estilhaços de mágoas, um quebra-cabeças é erigido nessa cidade “onde os fracos não têm vez”. A cena traz as sujeiras de cacos, de restos de consumo, a fragilidade de um homem frente a virilidade solicitada do vale-tudo do capitalismo da selva de pedra. Seus personagens caminham com suas incertezas desafiando os discursos de verdade e de opressão.

Uma mulher com uma preleção fascista encarna em sua fala aspectos retrógados que ameaçam a democracia. Seu discurso se posiciona contra mulheres libertárias, contra o aborto, as relações homoafetivas, as várias etnias, e defende uma arte absolutamente mercantil. Ela parece ter surgido do nada, como as vozes que ecoam pelo país em suas posições atrasadas.

Esse corpo masculino que padece é exposto em suas partes em ganchos de frigoríficos dispostos no cenário. As demandas contemporâneas produzem fragilidades no campo subjetivo. As relações efêmeras, a situação caótica, essa vida fragmentada produz instabilidade em todos. Mas esse masculino abalado em sua identidade viril abre espaço para essa investigação em Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou. Os atributos de coragem e valentia, do super-herói provedor, cede lugar a um mundo de sentimentos na peça, onde a fragilidade permite reflexões sobre guerras e violações, acidentes, condutas e sociais, atitudes sexuais.

O espetáculo reforça que feminilidade e masculinidade são construções culturais que sobrevivem em um determinado contexto. As tensões e conflitos podem gerar o desamparo. Como diz um trecho do texto, essas figuras correm sem cinto de segurança, usam aditivos para dar mais sentido à vida, procuram o amor com poesia, mas sem uma suposta caretice. Depois de tudo isso, alguém pode botar o pé no freio e chamar para a real.

A Motosserra Perfumada é formada por Alex Bartelli (ator e produtor), Biagio Pecorelli (poeta e ator), Camilla Rios (atriz), Felipe Vasconcelos (artista visual e performer), Hugo Cabral (pesquisador, cenógrafo e figurista), Jonnata Doll (ator e músico), Júlio Castilho – “Feiticeiro Julião” (músico) e Paula Micchi (atriz). Em outubro de 2014 o grupo foi contemplado pelo edita “PROAC – Primeiras Obras”, promovido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, para a montagem do texto inédito de Biagio Pecorelli.

ATUALIZAÇÃO:
Infelizmente, a temporada do espetáculo foi cancelada. No último domingo (15), o local onde aconteceriam as apresentações, a passagem subterrânea da Rua Xavier de Toledo, no Anhangabaú, foi invadido por integrantes de um movimento de ocupação intitulado Coletivo Laboratório Compartilhado TM13. De acordo com o grupo A Motosserra Perfumada, que prestou queixa na delegacia, os cadeados do local foram arrombados, os camarins foram revirados, sumiram objetos cênicos, figurinos, dinheiro, além da bebida que estava estocada para ser vendida durante a temporada. O dinheiro da bilheteria e da venda da bebida serviria para manter as apresentações, já que o grupo não teve apoio para temporada.

Confira aqui a carta aberta do grupo A Motosserra Perfumada.