Todos os posts de Ivana Moura

Ivana Moura é jornalista, crítica de teatro, escritora e produtora cultural. Idealizadora e editora do blog Satisfeita, Yolanda? (www.satisfeitayolanda.com.br). Possui mestrado em Teoria da Literatura (Letras - UFPE) e especialização em Jornalismo e Crítica Cultural (UFPE). Foi repórter, editora-assistente e editora do caderno de Cultura do Diario de Pernambuco (1989-2013). Escreveu o livro Osman Lins, o matemático da prosa e a peça O crepúsculo de Van Gogh. Adaptou o texto e dirigiu (ao lado de Lúcia Machado) o espetáculo Os desastres de Sofia, inspirado em conto homônimo de Clarice Lispector. Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

Sensualidade de corpos-poemas

Foto: Nityama Macrini
Foto: Nityama Macrini

Crítica do espetáculo Los Cuerpos, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2015

31 de agosto de 2015

O espetáculo Los Cuerpos transporta uma carga erótica desconcertante. Uma energia masculina, viril. Corpos jovens, vigorosos, com técnica dominada. São dois homens que aparecem com cabeça de cavalo, numa visão quase mítica vinda das sombras. São centauros reversos. Força de guerra entre civilização e barbárie. A coreografia, interpretada e dirigida por Ramiro Cortez e Federico Fontán, ressignifica a cada momento nessa proposta impactante. O duo de dança contemporânea foi vencedor da categoria de Projeto a Desenvolver na Bienal de Arte Jovem de Buenos Aires, Argentina, de 2013. Depois disso já frequentou vários festivais.

Com o palco vazio, os jovens criadores inundam a sala com esfinges. Desejos que explodem. Luta corporal. Desafios das carnaduras. Eles colidem, batem, provocam, tocam, se arrastam, beijam. Instinto de corpos selvagens. Jogo de dominação. Narciso e seu espelho.

Nesses tempos de vigília do corpo e de seus desejos enquadrados em códigos de consumo, a coreografia de Ramiro Cortez e Federico Fontán se manifesta como posicionamento político pela liberdade mais pura, por impulsos indomáveis.

A maioria dos movimentos é realizada no chão. Eles trabalham em vários eixos em empreitadas árduas. A brutalidade sobrepõe à sutileza nessa aposta em que há o tempo da fusão dos corpos.  A dinâmica do duo desperta paixões.

Eles traçam uma cena corajosa, com gestual incomum, por vezes contínuo, repetitivo. Em situações insinuantes de invasões de territórios, com braços ou pernas, os bailarinos empreendem lances difíceis. Provocam um ao outro. Seus ventres se contraem e expandem.

Com o tórax desnudo e usando a apenas calças pretas (em figurino de Alejandro Mateo), eles transpiram libido e fornecem munição para a fantasia do espectador.

A iluminação de Paula Fraga conduz o olhar da plateia, clareando os trechos do palco para revelar situações ou deixar os corpos na penumbra.

Amantes. As cabeças equinas atuam como máscaras que abrem comportas do desejo. Fisicalidade animal. Corpos exaltados. Respiração ofegante. Expressão de violência erótica. Eles desafiam seus próprios limites.

A pulsação, a batida, os deslocamentos são conceituais. Em uma operação de movimentos elegantes e fortes, um calcanhar de um deles é absorvido pela boca do companheiro. Eles prosseguem o movimento sem separar-se. O trajeto de ambos parece uma alavanca. É um jogo de energia, quando um deles tenta separar-se, o outro ataca sua presa. Eles chegam a fundir-se.

Há o gozo. Eles se debatem no chão separados. A música de Martin Minervini, eletrônica e minimalista, possibilita esses cortes abruptos. Tentativas de mudança de direção.

É de extrema plasticidade esses jogos que testam os limites de cada um. Insaciáveis pela dança, os corpos são carregados de densidades, sensualidade, timbres. As envergaduras traçam ousadias. E se renovam nesses corpos-poemas.

Um Shakespeare acessível

Foto: Rômulo Juracy
Foto: Rômulo Juracy

Crítica da peça Ricardo III, com Gustavo Gasparani, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2015

27 de agosto de 2015

Ao revelar a potência da maldade humana, Richard III se tornou uma das figuras mais fascinantes da galeria de William Shakespeare. Explorada pelos mais diversos ângulos e distintas abordagens, essa tragédia pelo trono da Inglaterra já rendeu montagens e filmes memoráveis. A encenação com Gustavo Gasparani, um dos fundadores da Cia dos Atores, com direção de Sergio Módena, é reduzida a um único intérprete, que narra e abarca os principais papéis.

A cena de Ricardo III é despojada. Uma extensa lousa ao fundo exibe a árvore genealógica dos Plantageneta. Enquanto o público se ajeita no auditório, Gustavo fala feito um professor sobre a Guerra das Rosas – o confronto de trinta anos (1455-1485) que contrapôs as castas dos York (cujo símbolo era a rosa branca) e os Lancaster (a rosa vermelha). Gasparani também avisa que vai precisar da participação da plateia em algumas cenas e que conta com a imaginação dos espectadores para preencher os trechos narrados, da Inglaterra na Idade Média, com seus castelos, trajes palacianos e batalhas sangrentas.

O protagonista shakespeariano quer ser rei. Mas entre ele e o trono existem algumas figuras como prioridade. O rei Edward IV e George, Duque de Clarence, seus irmãos, os dois filhos do rei, ainda meninos.

Além do quadro branco, o cenário, assinado por Aurora dos Campos, é constituído por um cabideiro, uma mesa, uma cadeira, uma luminária e uma dúzia de canetas pilotos. Esses objetos podem assumir função de personagem em algum momento. A iluminação de Tomás Ribas rompe um pouco o clima de sala de aula. O figurino, assinado por Marcelo Olinto, é composto por uma calça básica, uma blusa cinza e tênis.

Com algumas nuances, gestos, movimentações de palco e inflexões de voz, Gasparani assume as principais figuras do espetáculo, do vilão principal às suas vítimas. E narra na acepção do narrador benjaminiano, de sugerir experiências, aproximando inclusive da realidade brasileira, atual ou remota. Ao destrinchar os bastidores da política, o ator ironiza que aquelas intrigas, imoralidade, lutas pelo poder são coisas da Idade Média. Até parece.

Movido pela egolatria, vingança e perversidade e usando da sedução, dissimulação e cinismo, o personagem-título faz de sua inteligência e habilidade de manipular as pessoas armas robustas para chegar ao seu destino.  Para compor o invejoso e corcunda Duque de Gloucester o ator inclina o quadril, manca ao andar, torce uma das mãos.

É corajosa a iniciativa de erguer a difícil história de Ricardo III com recursos mínimos. E nisso há vantagens e desvantagens. O intérprete consegue prender a atenção da plateia que acompanha e vez por outra é questionada se está entendendo a trama. É uma montagem que atende bem a grupos não iniciados na complexidade da peça. Também fascinante é a experimentação entre espaços, os diálogos dramáticos e os comentários e reflexões aproximando da contemporaneidade. Desse contraponto entre diegese e mimese.

A tradução em verso de Ana Amélia Carneiro de Mendonça rasga o palco praticamente vazio de beleza em várias ocasiões. E é muito bom que Ricardo III chegue numa linguagem acessível. Inclusive sustentar que a natureza humana, em seu lado mais sombrio, é muito suscetível perante o mais insignificante vislumbre de poder até hoje.

Mas por outro lado estar sozinho para se multiplicar em tantos personagens traz limites. Ao compor a personagem corcunda, deformada e maquiavélica de Shakespeare dividido com dezenas de papeis, inclusive os femininos, utilizando tão poucos elementos compromete a intensidade. O ritmo exigido pela multiplicação dilui a vilania, a maldade do protagonista. Ao exibir esse “horrendo conto” Gustavo Gasparani exerce mais sedução do que seu protagonista.

A dor e a delícia de ser o que é

Foto: Júnior Aragão
Foto: Júnior Aragão

Crítica da peça A geladeira, da Companhia AntiKatártiKa Teatral (AKK), por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2015

26 de agosto de 2015

Nelson Baskerville diretor de A geladeira argumentou em uma entrevista que qualquer obra que se posicione a favor dos “direitos LGBT é de extrema importância, pois o preconceito é um erro e não apenas uma piada. Ele mata”. Copi, pseudônimo do franco-argentino Raúl Natalio Roque Damonte Botana, (1939-1987) impregnou seu trabalho de um caráter transgressor e advogou pela plena liberdade de se ser o que é. Esse dado contra o preconceito aufere relevância no Brasil em que grupos fundamentalistas ganham espaços de poder e carregam atrás de si fiéis que acreditam nas asneiras preconceituosas, inclusive na “cura gay”.

A crítica ao preconceito é uma linha de uma rede dessa montagem da companhia AntiKatártiKa Teatral (AKK), com o ator Fernando Fecchio. Mas não é a única. A geladeira envereda por questões caras da nossa modernidade líquida, de identidades estilhaçadas e de solidão que beira ao absoluto.

“O texto traz a marca da caricatura, do desenho cômico, que busca marcar o gestual, ‘fixar’ expressões ou situações, como se o tempo congelasse neste quadro, mas se seguisse o gesto pela sua retomada no quadro imediatamente seguinte. Certo ‘exagero’, típico da caricatura, é artifício para se vislumbrar a realidade aumentada, potencializada em todas as possibilidades.” Atesta a poeta e pesquisadora pernambucana Renata Pimentel sobre a obra do escritor, dramaturgo, cartunista e ator travesti, em seu livro Copi – Transgressão e Escrita Transformista (Editora: Confraria do Vento, 2011).

A produção de Copi é difícil por estar revestida de grossas camadas culturais. Baskerville aponta para alguns fundos falsos na peça. O primeiro plano de A Geladeira explora o lado engraçado e cheio de clichês da situação vivida pela protagonista. Ao atingir uma certa profundidade, outra cava é desvendada pra provocar outras reflexões. A cena mostra complexidades, em meio a tiradas irônicas, sarcásticas, mordazes.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman nos indica que a “‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto” na modernidade líquida. E que “as identidades ganharam livre curso, e agora cabe a cada indivíduo capturá-las em pleno voo”.

Essas questões de Bauman são projetadas no espetáculo. O ator Fernando Fecchio se desdobra em vários personagens da peça. Um ser andrógino, L. se apresenta como homossexual em estado de esgotamento ao completar 50 anos e ser presenteado com uma geladeira; sua psicóloga – A pastora/psiquiatra; a criada Goliasta, a sua própria Mãe, vozes do telefone – como o amigo Hugh, da Autrália; e do relógio da sala, ou o fantasma de si mesmo.  No texto L., mostra-se um ser andrógino

Baskerville dispõe na beirada do palco com cubos de formar palavras, a frase “Todo mundo é gay”. Isso norteia o eixo do personagem homossexual, que se desdobra em outros. De ex-modelo histérico, que busca escrever sua autobiografia, que é estuprada pelo seu chofer, que é chantageado por sua mãe.

A figura se desconstrói e se transforma em ações non senses, que ressignificam o mundo contemporâneo. Desses tempos marcados pela fragmentação do indivíduo. O ator transita com propriedade pelos personagens, dança, modula vozes, desnorteia o espectador.

Fernando Fecchio opera o jogo, a sobreposição, a aglutinação e o confronto em uma cena frenética, em que muda de papéis com um ou outro adereço cênico, ou manipulação de uma boneca de tamanho humano.

O ritmo é acelerado, num jogo de diálogos aparentemente ilógicos. Carregados de estranhamento, com toques grotesco, imagens de distorções, elementos kitsch, exageros. O intérprete se estica com potência nesse jogo entre personagens, em que essas figuras da cena buscam esconder o fator precário, as vezes dolorido da existência, típico da criatura contemporânea.

É interessante que o título e o elemento propulsor seja um refrigerador, objeto de consumo comum a todos e que remete para o paradigma do gasto da pós-modernidade em batimento com a ideia de produção da modernidade. Esse sujeito plural, heterogêneo está fraturado por carências, falhas, urgências.

O fotógrafo David LaChapelle – com sua leitura escrachada “de contrastes assustadores e nuances surrealistas”, que para suas imagens capta o clima da excitada sociedade de consumo é uma referência na concepção visual do espetáculo. As cores vibrantes do cenário e a tentativa desesperada de glamour para o personagem da peça traz esse toque de beleza e bizarro. Em algumas fotos de LaChapelle, o mundo desmorona e um elemento na imagem tenta manter o charme.

Mas se o diálogo com o fotógrafo puxa para o universo pop o século 21, a geladeira vermelha instalada no meio da cena é vintage, e sobrevive entre outros adereços que parecem sucatas e que conferem um clima de decadência.

A trilha sonora reforça o ambiente entre os anos 1970 e 1980, com clássicos de artistas como Barry Manilow, Queen e Love Unlimited Orchestra e números típicos das boates gays.

Os apontadores setecentistas e oitentistas também colocam um pé no freio no vigor do texto de Copi com suas bizarrarices e contradições, de traços extravagantes. É como se a audácia e o universo avassalador de Copi se perdesse um pouco pelo caminho em planos estilísticos já repetidos à exaustão.

Deslocamentos do desejo em Senhorita Julia

Foto: Divulgação MITsp
Foto: Divulgação MITsp

Crítica do espetáculo Senhorita Julia, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

14 de março de 2015

O protagonismo do espetáculo Senhorita Julia, do grupo alemão Schaubühne, baseado na obra do sueco August Strindberg (1849-1912), migrou da personagem-título para a cozinheira da casa, Cristina. A releitura dirigida por Katie Mitchell e Leo Warner provoca um deslocamento de olhar (ponto de vista) do drama original de 1887, numa montagem multimídia, na qual convergem performance teatral, efeitos sonoros e filmagem ao vivo, como a exposição dos equipamentos de produção. A peça está em cartaz até domingo na 2º MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, no Sesc Pinheiro.

A misoginia borbulha nesse clássico, em que o jogo de poder se assenta entre classes sociais distintas e, em determinado momento, é suplantado por um poderio sexual masculino. Uma pequena sinopse da história: a aristocrata Julia tem um caso com Jean, o empregado do Solar. Ele é noivo em segredo da cozinheira Cristina, que percebe o envolvimento. Após o ato sexual, a relação de dominador/dominado entre Julia e o serviçal é invertida. Isso está lá em Strindberg.

Com o deslocamento do sujeito do enunciado, a direção cria uma complexidade desse lugar, tendo como camadas subjacentes o texto literário. Mas com o acréscimo na perspectiva da cena de contar essa história a partir da mulher traída. É uma outra visão feminina, que abre espaço para a subjetividade de uma personagem subalterna, de pouco destaque na obra textual. Não diria que chegaria ao viés feminista (na sua acepção mais pura), porque as posições adotadas por Cristina ainda reservam espaço para uma subserviência ao masculino, reveladas em pequenos detalhes, depois da traição, como o assessoramento do barbear de Jean.

O experimento envolve de forma radical a captação e edição de imagens ao vivo no palco. Esse procedimento amplia detalhes, expressões faciais das personagens e manipula as sutilezas, que vão para o grande quadro de visão do espectador. Praticamente todo o maquinário está exposto ao público – a movimentação das câmeras, a atuação da equipe técnica, os músicos, os efeitos sonoros. Tudo é milimetricamente marcado, com maestria na execução do desenho da cena.

A percepção é um aspecto perturbador. Existe um cenário realista ambientado em uma casa sueca do século XIX. Técnicos e atores manejando as câmeras. O olhar do espectador é direcionado a partir dessas filmagens, que aceleram e desaceleram. Expõe intimidades, enquanto o mecanismo de como aquilo é produzido também está à mostra. Tecnicamente é um trabalho magistral.

Não vou me deter no ponto de se é cinema feito ao vivo, em cena ou se a linguagem audiovisual se sobrepõe ao teatro. Isso merece uma tese. O que a diretora tem dito é que utiliza os recursos tecnológicos justamente para potencializar a experiência teatral. Penso que intensifica de forma belíssima.

Enxergo movimentos de dobras e desdobras quanto aos conteúdos questionados, principalmente da luta de classe e da situação da mulher. A utilização da tecnologia (numa execução magistral) aponta, na sua dureza de captação/reprodução de imagens e sons, e na opção de cenários e figurino de época, que esse poderia ser um Strindberg a ser visto com distância no longínquo século XIX. Mas, enquanto esse movimento é sinalizado, é também negado nas reflexões sobre os conteúdos problematizantes citados. Somos convocados e refletir novamente sobre as mudanças e como elas são devolvidas da ficção para a realidade. Como funciona o poder nas relações íntimas, nas relações privadas. As questões levantadas pelo dramaturgo não foram totalmente superadas.

A luta silenciosa travada por Jean – em que amor e ódio revezam o protagonismo no coração do personagem masculino – na sua cultivada necessidade de ascensão permite pensar nos resquícios desses conteúdos emocionais em pleno século XXI.

Se os espaços reais se distanciam, os psicológicos dessa estrutura arcaica permanecem latentes. Isso me mobilizou nos movimentos de superaproximação, na frieza técnica das atuações. Os diálogos mínimos contribuem para isso.

A recepção na estreia foi calorosa, a tirar pelos aplausos do público que compareceu ao Sesc Pinheiro. O debate transversal com a psicanalistas Maria Rita Kehl, sob o ponto de vista das pessoas da plateia que se pronunciaram, problematizou questões desde a provocadora estética da cena, passando pelas escolhas textuais e de condução do olhar da direção.

Humanidade abortada pelo poder

Foto: Divulgação MITsp

Crítica do espetáculo Matando o Tempo, Primero Ato Inevitável: Nascer, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

13 de março de 2015

Os altos níveis de violência, o tráfico de drogas, as desigualdades sociais, a guerrilha e a crise que enfraquecem a Colômbia estão ficcionados no espetáculo Matando o Tempo, Primero Ato Inevitável: Nascer, do autor e diretor Jorge Hugo Marín e da companha colombiana La Maldita Vanidad. O quadro explosivo não é explícito. E não há imagens de guerrilheiros e assassinatos. O contexto é deslocado para a sala de jantar de uma família de classe alta, um microcosmo das vísceras do aparelhamento de controle e opressão. O diretor trabalha no hiato de um hiper-realismo em que onze personagens se digladiam, oprimem, competem e são humilhados durante um almoço familiar de domingo. O embate entre essas pessoas em situações extremas esquadrinha a degradação humana e revela um equilíbrio sempre por um triz. Aí está uma chave para uma das leituras da peça, seja na encenação ou no desempenho dos atores.

Algo parece prestes a desmoronar a qualquer momento. As personagens riem muito, em suas gargalhadas falsas (ou forçadas), enquanto exercem pequenos poderes umas sobre as outras. Apesar de se tratar de uma família matriarcal, as mulheres da cena são oprimidas, ora pelos homens, ora pelas outras mulheres, as mais fortes.

Uma mulher grávida, cujo bebê poderia mudar o destino da família, pode ser condenada a perder seu herdeiro. Um jovem que foi estudar em Cambridge, mas ainda é ameaçado pelo pai de apanhar de cinturão, é apontado como o novo líder. E vai ganhar o seu cavalo. Mas sua subida ao trono requer o massacre de uma vila de pobres enfurecidos.

A companhia ocupa espaços não convencionais em suas montagens e, na 2ª edição da MITsp, a apresentação ocorre em uma das salas da Oficina Cultural Oswald de Andrade, no Bom Retiro. Com escadas de um lado e do outro e o salão à frente do público, a cena se desenvolve enquanto a família bebe. Como afirmavam os antigos romanos: “in vino veritas” (“no vinho está a verdade”), e as personagens soltam a língua e deixam cair a frágil máscara de hipocrisia, revelando ressentimentos, invejas e expondo o intricado nó de mentiras.

As figuras trocam ideias de coisas sem importância, valorizando lugares como Cambridge, Inglaterra e a sua realeza. Matam o tempo em aparentes banalidades, a beber e exercer a opressão sobre a empregada Margarita, nome mais gritado dos primeiros minutos da peça.

As criaturas subalternas da cena são confrontadas e humilhadas, expondo o lugar de derrotadas. Desse núcleo, Margarita, é a complexa. Ela é solicitada o tempo inteiro a servir a todos que, do alto das suas arrogâncias, empurram-na para baixo. Ela, em alguns momentos, pode até pensar que faz parte da família ao abraçar o menino ou bater palmas para o tio cantante. É lembrada sempre de que não. Seus passinhos curtos e ligeiros, sua carinha de quem guarda segredos que ouve “sem querer” dão a dimensão dessa natureza. A família não tem para com ela nenhum tipo de humanidade. Margarita está em sintonia com os outros pobres da Colômbia, subtraídos na potência de riqueza do país, com as ações de corrupção realizadas pelos donos da casa.

A mulher deslocada tenta fazer parte da roda dos seus chefes. Nessa postura, tenta seduzir ora um, ora outro. Um terceiro personagem desse grupo exerce uma função colaborativa – o capacho –, é um agente da corrupção, que viabiliza a compra de terras ilegais. Ele funciona em outro registo, o falso vencedor. Naquela casa, que fica a meia quadra do palácio presidencial, eles fazem suas falcatruas praticamente debaixo do nariz do governo. Essa informação geográfica está repleta de significados.

A tensão explorada na cena deixa escapar as fissuras da criação enquanto obra. Na linha tênue de falar sobre abusos de poder, a peça parece incorporar em alguns momentos esse mesmo lugar. Como se a introjeção de uma realidade fosse carregada também dos próprios preconceitos a que, a princípio, parece combater. Isso transborda nos diálogos que, na minha escuta, não conseguiram abrir caminhos para uma análise em um nível mais libertário daquele quadro. Os ecos de Ricardo III, de William Shakespeare surgem aqui e ali, mas sem grande potência.

Os julgamentos e falas das personagens dão margem para uma justaposição da conformação política da própria obra nas suas brechas e isso gera um incômodo de desesperança. Ao tratar de assuntos privados como extensão do público, o combate à corrupção e aos males da Colômbia, a peça não incorpora uma força libertária na sua poética, nem na sua dramaturgia, nem na cena.

A carne da palavra numa intimidade desconcertante

 

Foto: Divulgação MITsp
Foto: Divulgação MITsp

Crítica do espetáculo Canção de muito longe, de Ivo van Hove, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

11 de março de 2015

O protagonista de Songs from Far Away (Canção de Muito Longe), Willem (Eelco Smits) escreve cartas numa tentativa desesperada de estabelecer uma relação com seu irmão morto. Essas missivas, sem o destinatário vivo, remetem para afetos extraviados, afeições profundas escondidas sob a velocidade do tempo e da distância autoimposta pelo personagem, que deixou para trás pessoas queridas. Nesse rito de passagem, ele inventa um território para resgatar a vida amorosa largada em Amsterdam, quando migrou para Nova York.

Única estreia mundial da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, Canção de Muito Longe é uma coprodução entre a MITsp e a Toneelgroep Amsterdam. A encenação do belga Ivo van Hove (com dramaturgia do inglês Simon Stephens) amplifica a intimidade de um jovem banqueiro no seu processo de luto. As canções de Mark Eitzel criam uma gama de sensações dessa perda irreversível.

O encenador provoca pequenas explosões. Algumas vezes, quase imperceptíveis. Outras chegam como convulsões no corpo do ator. E transborda de conceitos da cena, apagando fronteiras e surpreendendo. Um teatro da palavra, vinculado à performance.  O “extremo contemporâneo” nas palavras da pesquisadora Josette Féral.

Um teatro que desnorteia. Podem conviver a evocação da estrutura dramática de ilusão do real, com os confrontos e restrições do recurso mimético, e a ampliação das possibilidades da cena contemporânea. Carrega a “extrema manifestação de corporeidade” da qual fala Hans-Thies Lehmann, numa presentação, que envolve corpo, espaço e tempo, articulados magistralmente.

O processo de luto é delicado. O protagonista desce a regiões inimagináveis em que o nervo exposto é refletido em dor profunda, que vibra como um instrumento de corda e atinge os lugares de sensibilidade do espectador. Nesse processo de luto, ele passa por todas as fases, da revolta à aceitação.

 Na trajetória desse arco lança desejos e inquietações para um território inalcançável, o passado. Mas reelabora sua cartografia amorosa ao reinventar esse lugar. Sua presença pulsa e ocupa o palco em carga eletrizante.

Em princípio, Willem parece um robô de ganhar dinheiro. Mas se desfaz de seus gestos programados ao despir-se das vestes. Capa, casaco, blusa, calça. Desnudo, ele perscruta o humano. Seu corpo lateja ao percorrer um espaço da memória.

O texto se torna carne viva para atuar na produção de sentido. O corpo se torna o dispositivo cênico da própria fala, das canções, da ambiência. Ivo van Hove des-hierarquiza os componentes cênicos num processo perturbador.

A cenografia e a iluminação de Jan Versweyveld criam uma atmosfera de apartamento, quarto de hotel, com poucos elementos em cena. Assumem outras metáforas de espaços geográficos concretos e subjetivos. A janela faz o contato com o mundo externo, a neve, o frio, que influenciam no estado do personagem e da plateia.

Essa experiência sensível ecoou como uma dificuldade de controle da dor íntima. Uma vertigem a que somos submetidos em algum momento da peça, a partir de efeitos de luz e som. Parece reforçar uma das falas do personagem quando diz que todos nascemos, todos morremos e não vale a pena comentar. Mas a exposição da intimidade grita em sentido contrário.

Como será o amanhã?

Foto: Júnior Aragão
Foto: Júnior Aragão

Crítica do espetáculo Tomorrow, da Vanishing Point Theatre Company, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2014

30 de agosto de 2014

Se houver amanhã, ele será decrépito. Sem apelação. Sem melodramas. Cruel? Talvez. C’est la vie. Tomorrow, da escocesa Vanishing Point Theatre Company, traduz esse vaticínio. O espetáculo foi inspirado em estudo sobre o envelhecimento da população mundial. Graças à tecnologia, os humanos passaram a viver mais tempo e com isso, o número de idosos triplicou nos últimos 50 anos. A previsão é de que em 2050 o total de velhos no mundo chegue a dois bilhões. Mas essa longevidade não é garantia de saúde. Pelo contrário, traz ameaças de doenças, sendo a demência (o Alzheimer é uma delas) a que deve atingir um terço da população.

Primeira coprodução internacional do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, Tomorrow, toca nessas feridas abertas, que nega a humanidade e as relações amorosas (fraternas ou filiais) entre jovens e velhos, quando as limitações dos segundos exigem atenções especiais dos primeiros.

Antes do início da apresentação, o jovem diretor Matthew Lenton explicou que o cenário da peça ficou retido na alfândega, em São Paulo, e que este era o maior desafio da estreia. Lançar-se com uma cenografia arranjada em três dias.

Lenton também sugeriu ao público a não ficar preso às legendas (a peça foi apresentada em inglês com legendas em português), porque os atores poderiam improvisar algumas frases e, principalmente, que era melhor entrar na viagem sonora das palavras casadas com as imagens exibidas.

De fato, as imagens são impactantes. Principalmente porque conta com um projeto de luz que esfria, esquenta, indica, esconde, clareia, enfim, uma iluminação criativa que se torna um elemento imprescindível da encenação. Uma luz deslumbrante que dá a medida das situações, trabalhando inclusive com efeitos de “fade in” e “fade out” semelhante ao cinema.

Pela temática, não há como não lembrar da montagem Sobre o Conceito do rosto do Filho de Deus, da companhia teatral Socìetas Raffaello Sanzio, com direção de Romeo Castellucci, que esteve no Brasil durante a 1ª Mostra Internacional de Teatro – MITsp, em março. Mas enquanto a obra do italiano é carregada de culpa cristã e referências à fé e sua negação, parece que Tomorrow está esvaziada dessas problematizações.

Matthew Lenton faz uma brilhante articulação do teatro com quadrantes de espaços e inversões e supressões de tempo em Tomorrow. Mas a cena é fria, no sentido de não apelar para sentimentos mais melodramáticos do espectador. Com maestria o encenador agrupo componentes que desestabilizam o espectador.

Atroz, bárbaro, desumano é seu contexto – dos velhos “abandonados” em asilos sob a responsabilidade de cuidadores profissionais. E esses cuidadores da encenação se aproximam muito dos profissionais da saúde – médicos e paramédicos – quando tratam de doentes em hospitais e ostentam sua atitude técnica ao lidar com aqueles corpos frágeis, indefesos, ao dispor deles.

Presumo que o diretor equalizou para o mínimo a pulsação do afeto na cena para produzir um outro efeito inquietante. Penso ser proposital e calculadas as opções do encenador, para não tocar na emoção mais à flor da pele, que a matéria em si já incita.

Ele expõe um quadro duro, difícil de encarar, mas ao mesmo tempo avisa que aquilo ali pode acontecer com qualquer um de nós, espectadores. Não há consolação para a perda de liberdade e o sofrimento dos internos daquele lugar. E muito menos sacrifícios dos filhos deles.

A ironia perpassa a cena na hora das “brincadeiras internas”, as conversas de intervalo, quando um cuidador pergunta para o outro qual dos velhos escolheria para “ficar”.

A montagem é muito plástica e se resolve com os poucos artefatos, cadeiras e mesas basicamente. As máscaras de borracha, fabricadas nos Estados Unidos, são elementos de destaque na composição dos personagens. Aliás, o elenco é de uma afinação de orquestra. Os atores que interpretam os velhos ostentam uma técnica segura e eficiente. Os cuidadores fazem um contraponto, dando leveza ao ambiente, também com interpretações convincentes.

A primeira cena é de uma potência dura e bárbara. Um velho caminha pelas ruas geladas de um determinado lugar, carrega flores consigo. Esbarra em George, um jovem que está muito apressado para chegar ao hospital onde sua mulher pariu a filha do casal. No primeiro momento ele procura ajudar o velho, que cai, e George volta a ajudá-lo. Mas aí o velho se agarra às pernas do jovem e dois travam uma luta desesperada, quase um abraço de afogado. É uma cena forte.

Durante 90 minutos acompanhamos inquietos essa passagem das horas, dias, meses, na ficção. Crianças chegam, brincam, os velhos olham. A passagem do tempo. O tempo que se confunde. Apesar de expor situações humilhantes dos velhos, já tão limitados em seus corpos, a peça não despertou comiseração, pelo menos não em mim. Mas esse trabalho perturbador invade a consciência e sem pedir licença brada forte sobre o que queremos para o futuro.

 

Grupo bom é grupo morto

Foto: Júnior Aragão
Foto: Júnior Aragão

Crítica do espetáculo Adaptação, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2014

29 de agosto de 2014

A companhia Teatro de Açúcar, de Brasília, “morreu” em 2012. Mas depois disso montou alguns espetáculos, inclusive o criativo Adaptação, monólogo defendido por Gabriel F., que foi exibido na 15ª edição do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. (Adaptação estreou em Brasília em janeiro de 2013, financiado pelo Ministério da Cultura do Distrito Federal. E no início deste ano participou do Janeiro de Grandes Espetáculos, no Recife). Os motivos do óbito são fáceis de adivinhar: dificuldades financeiras para manter as atividades da equipe – sintomas que acometem outros conjuntos Brasil à fora.

O monólogo leva ao palco uma transexual, atriz, que ensaiou durante três ou quatro meses com um encenador de ideias vacilantes e hoje é sua estreia. Precisa improvisar.

E para falar de ameaças de desaparecimento, o bando institui paralelismos dentro da cena com personagens que buscam driblar a extinção. No caso um diretor que vive uma crise de criação do espetáculo e já pensa em mudar de profissão, uma atriz que veio do interior e precisa se acostumar ao novo estilo na capital, uma transexual – que por sinal é a atriz- às voltas com sua nova identidade e um dinossauro de futuro incerto.

Os procedimentos para tratar de todas essas questões são inventivos. O que fica é que todos querem sobreviver.

Para formar o quadro estão na cena um minúsculo piano, um microfone com pedal, uma caixa de equipamentos sonoros, uma mesa coberta por toalha, um dinossauro de brinquedo e uma taça. No chão, um jarro.

Entra uma figura estranha, mas bonita. Traz flores. Peruca loura, sapatos vermelhos de salto alto e um ar que mistura uma personagem interiorana com uma figura que vai sobreviver. Mesmo que para isso precise adaptar-se.

O verbo que faz referência ao fato de ajustar uma coisa à outra. Então, se acomodar a diversas circunstâncias e condições. A personagem faz bem isso e o registro do intérprete a esse processo é o meio-tom em que alguém vai expondo sua situação, seus limites, e ao dizer coisas com tanta sinceridade dribla o ato ridículo e consegue a cumplicidade da plateia.

É um progressivo conquistar do público, ao falar da crise do teatro, das estacas do contemporâneo, das técnicas ironizadas pelo ator.

A primeira parte de Adaptação é uma sequência de justificativas sobre o vazio da cena, com frases de inteligência mordaz e pelo menos dois momentos de uma beleza crítica desconcertante. Quando ele mostra, com as mãos, um dinossauro (e neste caso a iluminação é determinante) e a evolução disso quando o ator explora gestos e finaliza com uma frase de que adora dança contemporânea.

Esse discursar sobre o vazio é redirecionado para a música (Gota de Sangue, de Angela Rô Rô e uma outra autoral) e para uma pequena fábula de um encontro quase amoroso e sua impossibilidade diante das convenções sociais. No caso, da atriz transexual e seu professor de piano na sua cidade do interior.

O registro interpretativo, num tom de negociação, vai conquistando o seu interlocutor aos poucos, também me parece um pouco dessa camuflagem como mecanismo de defesa da qual fala a personagem sobre o camaleão que engana os possíveis predadores.

É uma encenação que destaca a ironia desse viver contemporâneo, sem lições de moral. Tem potência, mesmo quando parece falar do nada. É uma dramaturgia original, com humor sutil, uma peça divertida para falar do medo do fim. A caracterização do ator é ponto alto da montagem.

Dispensaria apenas o cigarro fumado em cena.

Cacá Carvalho brinca com máscaras da aparência

 

Foto: Cena Contemporânea/Divulgação
Foto: Cena Contemporânea/Divulgação

Crítica do espetáculo umnenhumcemmil, com Cacá Carvalho, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2014

28 de agosto de 2014

O monólogo umnenhumcemmil, com o ator Cacá Carvalho, é a terceira peça de uma trilogia que o artista desenvolve a partir da escritura de Luigi Pirandello. Os três espetáculos (O homem com a flor na boca, A poltrona escura e umnenhumcemmil) foram apresentados na 15ª edição do Cena contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, e tem assinatura do diretor italiano Roberto Bacci. Um nenhum cem mil é o último romance de Pirandello e trata de assuntos caros e recorrentes na obra do escritor italiano, o “ser” e o “parecer”, a sobrevivência de identidades e no fundo o próprio teatro e seu leque de simulacros.

O romance Um, nenhum e cem mil, de 1926, é desconcertantemente atual nos questionamentos das identidades a partir do olhar do outro, que nessas épocas são cada vez mais manipuláveis. A encenação explora as sutilezas desses motes num monólogo de 80 minutos, verborrágico e cativante.

Um dos principais teóricos da modernidade líquida, o polonês Zygmunt Bauman atesta que a identidade é um “beco sem saída”. E defende que é um “conceito altamente contestado”. E que a palavra remete à batalha. Já o sociólogo francês Michel Maffesoli fala de sistemas de significação e representação cultural que são multiplicados.

Para trabalhar esses pontos complexos, a montagem conta com um magnifico ator, com domínio de diferentes estéticas e formas cênicas plurais, por onde Cacá Carvalho desliza com sobriedade.

umnenhumcemmil é um drama existencial de Vitangelo Moscarda (o Genge), 28 anos, casado com Dida, sem filhos, dono de um banco e de Bibi, uma cadela. Ele mora na cidade de Richieri e tem dois amigos fieis, Quantorzo e Stefano Firbo, que cuidam de seus negócios. Uma figura ordinária, comum.

Um belo dia, um comentário da esposa sobre seu nariz, que se inclina para a direita, desencadeia uma crise sem precedente. Genge não é, nem para Dida, aquilo que imaginava ser. Isso provoca a investigação de outros defeitos físicos: descobre que tem sobrancelhas semelhantes a dois acentos circunflexos “^^”; que as orelhas são mal grudadas; que em uma das mãos o dedo mindinho exibe desproporcionalidade; além de outras pequenas “anormalidades”.

O protagonista conclui, então, que cada pessoa que o enxerga vê̂ um Moscarda diferente. E esse indivíduo não suporta o peso da opinião pública. Ele quer uma unidade, mas ao mesmo tempo não aguenta ser mais um.

O sujeito mergulha num abismo de reflexões. E diante da situação bizarra, abandona sua vida vulgar, funda um asilo, onde vai trabalhar. Se livra da identidade pública e abraça o anonimato.

As máscaras vão caindo. Com poucos recursos cenográficos de Marcio Medina (uma poltrona, algumas cadeiras, balde), o ator assume essa figura que limpa o chão, que treme em nervos expostos numa interpretação visceral de Cacá Carvalho. Ele constrói um personagem patético, ridículo, poético. Seus gestos e vozes se transformam em lâminas de corte para essas pulsações contemporâneas. Tão vibrantes em suas identidades descartadas. Metateatro erguido com competência diante dos olhos do público.

Ao convidar alguns espectadores a se sentarem no palco, acompanhando de perto a encenação, a montagem explora mais um link da superexposição da vida íntima. Uma pertinente metáfora. A luz de Fábio Retti e a música de Ares Tavolazzi compartilham desse processo.

A inteligência cênica da parceria entre ator e diretor joga no palco um intérprete de vários personagens, fragmentado em diversas vozes, multifacetado. Numa atuação luminosa de Cacá Carvalho.

Cheiro forte de vinho barato

Foto: Fernanda Pessoa
Foto: Fernanda Pessoa

Crítica do espetáculo Metrópole, da Inquieta Companhia de Teatros, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

7 de agosto de 2014

Metrópole, da Inquieta Companhia de Teatros, joga frestas de luz sobre o lugar da vocação na vida de cada um, e na sua esteira convoca para outras questões como sorte, perseverança, oportunidades. O espectro pode ser ampliado, mas no caso domar e projetar esse talento estão no âmbito das artes, mais especificamente do teatro numa cidade de pedra.

Num piscar de olhos, fui transportada ao longa-metragem Bye Bye Brasil, de Carlos Diegues, de 1979, e sua Caravana Rolidei. A uma cena específica em que o ator alagoano José Márcio Passos, na pele de um poeta que peleja para mostrar escritos a Lord Cigano (José Wilker). No filme, o poeta é preterido por um sanfoneiro arretado. Nos bastidores, José Márcio perdeu o papel do sanfoneiro Ciço, para o ator e cantor Fábio Júnior.

A lembrança me veio porque estão no âmago da discussão entre os dois irmãos da peça esses meandros do caminho artístico. Em algum momento, amargurado, Caetano (o mais velho) diz que foi o teatro que desistiu dele. Ele atendeu ao chamado, mas não foi suficiente para vencer os embates subjetivos e objetivos. Ensimesmou-se.

Caetano “abriu mão” do teatro para fabricar bolos, tortas e pães sob encomenda. Sem avisar, seu irmão Charles aparece para uma visita, ou melhor, para passar uma temporada e volta com esse assunto do teatro, com essa febre do teatro, com esse vírus do teatro. Quer contaminar novamente Caetano. Diz que escreveu uma peça para ele.

O texto é de um jovem dramaturgo carioca, radicado em Fortaleza, Rafael Barbosa. Apreendo influências de Caio Fernando Abreu em sua escritura. Há outras, lógico, mas Caio pulsa mais forte. Em cena estão os atores Silvero Pereira e Gyl Giffony, este segundo também diretor do espetáculo. Em termos de atuação, Silvero se destaca e talvez a atuação de Gyl merecesse um olhar de fora.

Já como diretor Gyl Giffony empreende voo mais alto para materializar essa relação ambígua de dois artistas com a cidade. Na IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo, Metrópole fez quatro sessões (duas terça e duas quarta), na Sala de Ensaio 1 do Centro Cultural São Paulo. Assisti à última.

Para chegar ao espaço da apresentação o público desce escadas percorre corredores, é um labirinto. O local escolhido está afinado com a proposta da encenação. Quando o público adentra, o ambiente está escuro. Uma luz tênue de lanterna ajuda a localizar os assentos.

Ainda na penumbra o ator Silvero Pereira começa a contar a história de um garoto que consultou a vidente Agnes e se “descobre” Audrey Hepburn, atriz belga de filmes como Bonequinha de luxo e A princesa e o plebeu. O personagem Caetano conta que os rapazes, os atores daquela cidade correram para saber da vidente quem foram, entre estrelas de cinema e cantoras famosas, em vidas passadas.

Nesses momentos Silvero Pereira canta lindamente numa louvação ao “monstro teatro”. A cena despojada avança.

Depois da revelação desse sonho despudorado, as luzes se acendem e aparece Charles. Um estranhamento inicial se instala e eles se enfrentam feito dois búfalos e aos poucos somos informados que eles são irmãos, com diferenças de posturas com relação ao teatro. Enquanto um desistiu, o outro persiste. Um se trancou no seu apartamento, o outro ainda busca enfrentar o mundo. Espaços abertos e fechados em duelo de metalinguagem.

O espetáculo oscila entre claros e escuros. A plateia está sentada defronte de espelhos. O público fica sentado em dois blocos e suas imagens também estão refletidas. Os intérpretes circulam entre esses blocos de gente, atuando na frente, atrás, e dos lados dos espectadores. Duas portas, de onde eles entram e saem, sinalizam que há saídas. Talvez uma aposta da dramaturgia e da direção de que a suposta falência da vocação não deve ser encarada como absoluta, mesmo com todos os danos e traumas.

Mas é um reflexo pertinente sobre o desalento do ofício de ator (e seus derivados) como proposta profissional que garanta dignidade para custear a sobrevivência. Urgente e latejante.

Os sujeitos às vezes se digladiam na cena, às vezes se permitem delicadezas. O ator batendo ovos em uma tigela cria uma sonoridade estridente que vai marcando a ação em alguns momentos. Os aspectos sujo, urbano e vivo são destacados nas ações com farinha, papel e vinho, no figurino de Charles e nos patins sobre os quais ele desliza.

Na sessão que assisti, numa cena com mais intensidade, o ator Gyl Giffony joga vinho nos espelhos, sem querer quebra um pedaço e se corta. A cena progride mais real, deixando no ar aquele cheiro forte de vinho barato.