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“Se eu pudesse, voltaria hoje”

Crítica do espetáculo Cidade Vodu, de José Fernando Azevedo, por Mariana Barcelos (Questão de Crítica / DocumentaCena)

MITsp 2016

 

No teatro, quando a narrativa biográfica ou confessional se destaca na dramaturgia e na montagem como elemento formador do trabalho, é como dizer que a escolha somente pela ficção não daria conta. O relato íntimo te impõe a crença, não se pode fugir do que se está ouvindo nem ficar no lugar confortável da ideia de “teatro, mentira”.

Dentre inúmeras características dessas dramaturgias, destaco duas: quando se decide falar de si, entende-se que sua história/texto tem um conteúdo com capacidade de ampliação, que é, de certa maneira, coletivo, que diz respeito a muita gente, e por isso é importante ser dito – algo que nem sempre se dá. O outro aspecto é que a afetividade intrínseca às falas geralmente produz a conexão com o público. O que eu tenho a dizer importa, estou emocional e afetivamente envolvido com o relato, e, se o que é dito é de fato muito relevante, optar por uma crítica que prioriza os aspectos técnicos do fazer teatral, além de a mim ser questionável e gerar um desconforto, diminui a importância do enunciado, algo que, em se tratando de Cidade Vodu, criação do Teatro de Narradores, eu não teria autoridade e nem o direito de fazer de dentro deste meu corpo branco.

Cidade Vodu escolhe relatos datados na história para desenhar uma linha do racismo nos últimos séculos sob a perspectiva da nacionalidade dos atores do espetáculo, a bem dizer, haitiana. Numa sequência cronológica, as falas começam no período escravista e alternam contar casos que descrevem com minúcias a bárbara violência sofrida pelos povos negros, com discursos dos homens que detinham o poder à época. Na sequência, tratam do período colonial do Haiti sob os desmandos de Napoleão Bonaparte, de contínua crueldade. O último recorte fala da imigração haitiana para o Brasil após o terremoto de 2010 e da entrada das forças de paz da ONU em parceria com o Exército Brasileiro (MINUSTAH). Neste momento, os relatos se voltam para a vida dos próprios atores, artistas haitianos recém emigrados para o Brasil, em decorrência da condição de vida insuportável e insustentável após o terremoto. Parte mais tocante dos relatos, porque as dores são inimagináveis e aconteceram exatamente com aquelas pessoas, a ênfase está no tratamento recebido pela população haitiana tanto no país nativo, quanto no Brasil e no percurso geográfico da migração. As memórias mais uma vez de violência, truculência por parte do Exército (uma gente que propõe devolver a paz com atitudes criminosas) e do preconceito vivido em terras brasileiras fecham a narrativa apontando o racismo como componente estrutural das sociedades e não simplesmente circunstanciado no tempo histórico.

Dado o valor da proposta e sua potência, então, cabe dizer que a estreia no dia 7 de março, no impactante espaço da Vila Itororó, padeceu por alguns problemas. No percurso itinerante do espetáculo, falhas de projetor e microfones dificultaram a compreensão do texto, primeiro, porque muito não se ouvia e, segundo, porque a ausência da legenda projetada quando as falas estavam em outra língua interrompia a possibilidade de seguir o fio dramatúrgico. Aparentemente, tinha mais público do que o viável para que todos conseguissem acompanhar as cenas tendo condições de realmente assistir ao que acontecia. Fatos que precisam ser revistos e que sem dúvida melhorarão as possibilidades de recepção.

Mais ou menos na metade do espetáculo tem uma festa, um encontro proposto pela encenação. Num espaço amplo, o público é convidado a se sentar, comer, beber, conversar e dançar ao som de músicas típicas haitianas cantadas pelos próprios artistas. Um dos atores apresentou o espaço para mim e para outra espectadora (Júlia) como sendo a Cidade “Vodu”, este boneco no qual são projetados castigos nos outros quase sem possibilidade de defesa. Conversamos um pouco. Júlia perguntou se ele gostaria de voltar para o Haiti, resposta: “Se eu pudesse, voltaria hoje”, e riu. A troca de olhares foi por empatia, embora nada possamos saber, Júlia e eu, dessa angústia. Mesmo vítima de vodu, a cidade produz um encontro alegre, caloroso. Alguns relatos sofridos surgiam em busca de cumplicidade, mas não diminuíam a atmosfera espirituosa de quem propõe a paz a quem oferece quase sempre as costas.

“Nós estamos aqui um por causa do outro”, frase de um dos relatos e eco histórico. Se o estar junto veio constantemente à  base do choque, do enfrentamento, da resistência e da luta, Cidade Vodu propõe um encontro festivo contra o modus operandi do nosso mundo que vê lógica em entrar em guerra para alcançar a paz. Se a proposta é o encontro, como não, encontremo-nos.

Agir em tempos mortos: o teatro e a natureza-morta de todos os dias

Crítica do espetáculo Still Life (Natureza-Morta), de Dimitris Papaioannou, , por Mariana Barcelos (Questão de Crítica / DocumentaCena)

MITsp 2016

 

Natureza-morta. Natureza, da biologia, do corpo, organismo. Morta, o que já foi vivo, a concretude no estado físico da matéria, dimensão só apreendida no tempo. Ao manter o olhar para obras categorizadas como natureza-morta, dois traços inerentes ao gênero conduzem a narrativa entre a materialidade do objeto (comida, corpo, flor) e o tempo posto até a morte. Um traço é sólido, o outro estendido. A nomenclatura em português remete a algo findo (morreu, ponto); em inglês, os objetos aparentemente inanimados têm sobrevida, still life.

Still Life (Natureza-Morta), espetáculo com direção do grego Dimitris Papaioannou, estreou dia 4 de março no Sesc Vila Mariana, na programação da 3ª MITsp. A tensão latente no título (que em princípio é apenas a dobra do mesmo nome em língua diferente) dá a ver, já de antemão, a questão que atravessa as cenas da montagem, nas quais, por meio de exaustivas repetições, sete atores implicam-se em manter vivo o objeto morto.

Justificados pelo mito de Sísifo, estar morto aqui pode ser tomado como não sair do lugar, embora em movimento. Ou, numa inversão à lógica própria da natureza-morta, o corpo que se mexe está vivo (tentando), o tempo gasto com repetições é o que morre. Como gerar ação no tempo-morto e olhar a natureza-morta sob a perspectiva da ação dramática, do teatro, não da pintura. Como agir na imobilidade do tempo. Papaioannou, e esta é a proposição deste texto, constrói uma refinada dialética: corporifica o tempo enquanto dilata o corpo (dos atores) na duração das cenas.

O espetáculo começa com a luz da plateia acesa. Sentado ao centro do proscênio numa cadeira escura, o ator manuseia uma pedra enquanto olha para o público em aparente neutralidade. Lentamente a luz da plateia se apaga, o palco, vê-se agora, é um todo preto, do chão ao teto que, ainda sem nitidez, revela uma bolha negra brilhante sobre todo o tablado. Um sujeito entra e retira a cadeira do ator, seu corpo, impassível, permanece na mesma postura de sentado, mas, agora, é visível que para estar ali em ilusória imobilidade é necessário muito esforço, trabalho físico. Mesmo quando parado, vê-se que está atuando – é possível que a ideia de ação seja tomada por esta imagem, se não houvesse ação, o corpo cairia. Ação é força.

A natureza-morta no teatro é surpreendida pela condição primordial da ação. Mesmo na imobilidade. E a contar pela física presente nos corpos dos atores, agir (estar vivo) é exercer força sobre. Aos poucos o ator sai da posição, caminha até o fundo do palco e desaparece. Tempo. Sons de objetos caindo, tipo azulejo, som de obra. Tempo. Caminha do fundo, em direção à frente do palco, outro ator carregando uma grande parede nas costas, bem grossa na largura, quase o dobro da altura do ator, comprida para as laterais de modo que seria impossível abraçá-la. Um peso-morto sobre as costas. Durante um tempo superior à necessidade de entendimento da ação o ator forçará seu corpo contra a parede com o objetivo de mantê-la em pé. A constância das cenas segue esta condição, a de estravar o tempo do entendimento, sobrando por fim apenas a materialidade dos objetos e do corpo em tensão. O esvaziamento do sentido narrativo das operações desenha um tempo posto em lentidão, em que vislumbra a qualidade estática do quadro pictórico. O tempo não tem cronologia corrente, seu corpo é definido numa hora parada, suspendida, em que sucessivas ações se repetem como que no mesmo instante. Um tempo-corpo que, na vida, o olho nu é incapaz de perceber. Como que numa câmera extremamente lenta (negativa), parada num só segundo, no qual é possível ver infinitas ações se processando em repetição – eternidade.

Os condicionantes desta temporalidade só se sustentam, portanto, na crueza da fisicalidade da matéria, sem significações. Ou se tem sons produzidos pelos objetos, ou silêncio. Os sons são ainda enfatizados pelos microfones dispostos no chão do palco, existem na condição de materialidade das ondas sonoras – quando cacos de azulejos caem da parede, faz-se barulho, quando fitas adesivas são puxadas do chão, idem. A iluminação vai do clarão à escuridão, sem semântica. No cenário, as superfícies são sólidas, líquidas ou gasosas. A parede é um bloco, o plástico em formato de rede, que no início do espetáculo era uma bolha negra brilhante no teto, aos poucos é iluminado, e transparece na maior parte da peça com a paradoxal função de estocar fumaça. A parede sólida, por um lado, se desfaz em pedaços, a fumaça, por outro, ganha corpulência na moldura do plástico e, por vezes, transforma-se em outros substantivos: nuvem, mar, célula; todos disponíveis ao toque, podendo mudar de forma com o contato de uma pá.

É o tempo dilatado que aproxima o espectador da materialidade, ainda que a narrativa, poderosa, suba à superfície da cena como pequenos relâmpagos. Dilatar o tempo é como ver pelo microscópio e perceber os detalhes das coisas antes do organismo – antes da causalidade, da narrativa, de dar nome aos órgãos. É a parte em que tudo é uno, corpo que também é parede, que é tempo. Corpo-parede-tempo, composição que só se modifica pela alternância dos estados físicos.

Uno e concreto, como o corpo dos atores. Com roupas da mesma tonalidade, que pouco se distinguem entre si, remetendo por vezes à vestimenta de trabalho, os atores estão no palco como massa de um só, bloco de um, coro. Não tem “eu”, não tem personagem, figuras etc., estão no palco atuando, apenas, agindo. Tomando recorrentemente um o lugar do outro no que seria uma mesma partitura física/coreografia, seus corpos se conectam e apresentam-se como único. A imagem mais forte que pode ser descrita como exemplo é a sequência em que os atores sucessivamente atravessam pelo buraco do centro da parede; um vindo da parte de trás, o outro “entrando” pela frente, os desenhos dos corpos revelam o jogo de quebra-cabeças no qual apenas um corpo inteiro pode aparecer, ainda que formado por partes de mais de um ator. Assim, as partes de cima do tronco pertence a um, as de baixo a outro ator, e outras múltiplas alternâncias neste sentido se dão. O corpo é um, mesmo fragmentado, expandido por todos.

Metáfora contundente das repetições diárias, do trabalho massivo, o rolar eterno da pedra de Sísifo, o espetáculo pode ser visto como esta crítica que se opõe a viver sob a restrição do mito. Porém, se o mito (a narrativa) é o que te faz morrer, still lifeé a força que te mantém vivo (agindo) em tempo-morto. O tempo na vida não se configura em suspensão, fugir do mito, então, está mais próximo da utopia. Em vez de estar fadado ao inevitável peso da história, propõem-se uma autonomia da narrativa, mas em relação dialética. A rotina está lá, morta, você não.

O peso da parede sobre as costas dos atores deixa no máximo um rastro de pó. A parede, inclusive, não passa de uma espuma de grandes proporções. O morto, ainda, não deixa de ser bonito. Na penúltima cena do espetáculo, os atores trazem até a frente da plateia uma mesa na qual se sentam para uma refeição tipicamente mediterrânea. Frutas, frutos, louças, objetos inanimados dos quadros de natureza-morta. O aroma das ervas e azeitonas é bom. A cena simula uma refeição entre amigos, os atores gesticulam como se estivessem conversando, mas não há som. Aliás, não há fala no espetáculo, a voz não se propaga em tempo parado. E não é preciso ouvir a voz neste caso, porque qualquer um é capaz de supor as banalidades que são ditas nas refeições cotidianas frugais. Qualquer um ouve este silêncio. A voz da narrativa está nas cabeças dos espectadores, sem fuga. A cena bonita é um exemplo inconfundível da rotina morta que temos prazer em repetir.