Todos os posts de Patrick Pessoa

Patrick Pessoa é dramaturgo e crítico teatral, professor de filosofia da UFF e editor da Revista Viso: Cadernos de Estética Aplicada. Como crítico, colabora com a Revista Questão de Crítica e com o site Agora Crítica Teatral, além de ter sido jurado dos Prêmios APTR e Questão de Crítica e de ser membro da Associação Internacional dos Críticos de Teatro (AICT). Como dramaturgo, já colaborou com os diretores Aderbal Freire-Filho, Malu Galli, Bel Garcia, Marcio Abreu, Daniela Amorim, Jörgen Fong, Adriano Guimarães e Marco André Nunes. Dentre seus livros, encontram-se: A segunda vida de Brás Cubas: A filosofia da arte de Machado de Assis (Rocco, 2008), finalista do Prêmio Jabuti de Crítica Literária; A História da Filosofia em 40 filmes (Nau, 2013), Oréstia: adaptação dramática (Giostri, 2013), e Nômades (Cobogó, 2015).

Apolo não!

Crítica do espetáculo “(A)Polônia”, deKrzysztof Warlikowski, por Patrick Pessoa (Questão de Crítica)

MITsp 2016

 

Escrever no calor da hora sobre um espetáculo com a complexidade de (A)polônia, de Krzysztof Warlikowski, é uma temeridade. As múltiplas linguagens trazidas à cena (música, teatro, vídeo, instalação, performance, stand up, conferência acadêmica, manipulação de marionetes), o manancial de referências mais ou menos explícitas (que vão de Ésquilo a Jonathan Littel, passando por Eurípides, Kafka, Coetzee, Hanah Krall, Godard e muitos outros) e a ambição de articular algumas das questões humanas mais arcaicas (sobre a necessidade do sacrifício pessoal em prol de algum ideal ou mesmo de pessoas próximas; sobre a rebelião contra os “deuses” e o destino inaceitável por eles imposto; sobre a tragicidade inerente a qualquer decisão humana e a inescapável “culpa inocente” dos heróis trágicos) tendo em vista a necessidade de elaborar o passado recente da Polônia e expiar a culpa dessa nação no extermínio dos judeus, que “é o legado terrível que pesa sobre nossos descendentes” (no dizer do próprio Warlikowski), mereceriam sem dúvida um tempo e um espaço mais dilatados para a construção de um pensamento mais consistente. (Advertência ao leitor: a construção hermética, para não dizer confusa, desta introdução teve a pretensão de traduzir para a prosa da crítica a minha experiência como espectador diante das múltiplas camadas do espetáculo).

Sim, é uma temeridade escrever no calor da hora sobre um acontecimento político-teatral que ainda estou longe de ter conseguido digerir. As simplificações redutoras e os juízos apressados me parecem, neste caso, um destino tão inescapável quanto o dos heróis (gregos e modernos) postos em cena por Warlikowski. Seria prudente esperar por um momento mais oportuno, em que as condições para essa reflexão estivessem mais maduras. O problema é que, supondo que este momento algum dia possa chegar, talvez já seja tarde demais.

Amanhã (13/3, data das mais eloquentes, pela associação do número 13 ao Partidos dos Trabalhadores, inspirado na sua origem pelos mesmos ideais que presidiram a criação do “Solidariedade”, movimento político polonês que tentou combater sob um viés proletário o conservadorismo histórico daquele país), a imprensa golpista da nossa (a)polônia, tomada por um curioso furor santo de indignação seletiva, está convocando uma manifestação “patriótica” contra “todos os corruptos” (os “judeus” do nosso tempo), instaurando artificiosa e espetacularmente uma polarização entre “nós” (os justos, os puros) e “eles” (os corruptos, os impuros). Por mais que devam ser preservadas as diferenças entre o contexto histórico brasileiro e o polonês, entre o nosso tempo e a primeira metade do século XX, quando o fascismo e o nazismo levaram ao extermínio de milhões de pessoas, por mais que pareça forçada a comparação, agora, no calor da hora, não pára de ecoar em mim uma célebre passagem das Teses sobre o conceito de história, de Walter Benjamin, na qual se lê: “O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ainda sejam possíveis não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história [calcada sobre a ideia de progresso] da qual emana tal assombro é insustentável”. A pergunta, sob essa ótica, não é a do humanista alienado – “Oh, como todos esses fatos horríveis puderam acontecer?! Ohhh!” –, mas sim a do materialista que lê a história a contrapelo: por que fenômenos como o fascismo, o nazismo e a Shoah não acontecem muito mais frequentemente?

Na realidade, com o mundo em guerra (a lista de conflitos ocorrendo no momento é tão extensa que não caberia aqui, incluindo aqueles que, na nossa particular guerra brasileira, levam ao genocídio de milhares de jovens negros todos os anos, evocado nesta MIT pela impactante performance Em legítima defesa, um dos pontos altos do festival), com todas as polarizações étnicas, religiosas, políticas e econômicas entre o Ocidente e o Oriente, com o recrudescimento de uma Guerra Fria que muitos acharam que estava definitivamente superada após a queda do muro, etc, etc, etc, talvez atos de inspiração nazi-fascista aconteçam muito mais frequentemente do que os olhos sempre marejados do humanista amigo da paz seriam capazes de enxergar. É que, e esta me parece ser uma das intuições estruturantes do espetáculo de Warlikowki, os pressupostos ideológicos que tornaram possível a eclosão dos totalitarismos do século XX continuam vivos e pulsantes nesta aurora do século XXI, constituindo talvez o “terrível legado para os nossos descendentes” de que fala o espetáculo (A)polônia.

Se, de acordo com tudo que acabo de dizer, A(polônia) não é apenas a Polônia, mas também o Brasil ou qualquer outro lugar em que as condições para fenômenos assemelhados à Shoah continuem a existir, eu ousaria dizer que o espetáculo a que assisti ontem não é sobre a Polônia, mas sim sobre Apolo. A imagem-síntese que consigo extrair do caos de estímulos visuais e palavras heterogêneas que foram literalmente despejados sobre os espectadores, de forma só aparentemente arbitrária (como no caso de qualquer obra de arte que mereça este qualificativo), é a imagem do deus grego Apolo, nu, com cílios postiços e o piru pintado de azul, tendo nas costas uma gigantesca tatuagem de uma forca da qual pende, enforcada, a estrela de Davi. A interpretação do deus como uma figura caricata, ridícula, afetada, grotesca, obscena é, posteriormente, numa segunda aparição em vídeo, reforçada por um discurso do mesmo Apolo, extraído da Oréstia, de Ésquilo, no qual, tentando defender Orestes pelo assassinato de Clitemnestra, sua mãe – o matricídio, no direito arcaico grego, era punido pelas Fúrias, divindades vingadoras dos crimes de sangue, que perseguiam até a loucura e a morte os culpados –, o deus afirma que a mãe seria só um vaso, um recipiente no qual o pai, o único verdadeiro responsável pela criação, depositaria sua semente e seu sangue. Orestes, sob esta ótica, não teria o sangue da mãe e não mereceria ser perseguido pelas Fúrias. Para além dos traços radicalmente misóginos que esse discurso têm para ouvidos contemporâneos, que Warlikowski habilmente maneja no sentido de aprofundar a repulsa de seu público pela figura do deus, os dois Apolos de (A)polônia têm em comum a recusa de toda mistura, de toda impureza, pregando literal e simbolicamente o extermínio do outro, seja judeu, seja mulher.

O espetáculo Apolônia, agora sem o parênteses (cuja manutenção serve a uma leitura distinta da proposta aqui), traz em seu título uma palavra que, etimologicamente, diz respeito a toda criatura “oferecida a Apolo”, a toda criatura que mereceria ser sacrificada pela sua impureza, pela sua alteridade, pelo fato de ter mais camadas do que aquelas que cabem na dicotomia bom-mau, justo-injusto, ético-corrupto, pelo fato de não ter apenas o sangue do pai (a lei, a fé, a ética de um Sergio Moro, figura das mais apolíneas em seus terninhos justos cortados sob medida, não por acaso merecedor de prêmios provenientes de instituições tão isentas quanto a Globo ou a Veja). Se, no plano do discurso, com a apresentação de dois Apolos derrisórios, Warlikowsi diz um basta a todos os sacrifícios em nome desse deus, no plano da própria constituição formal do espetáculo manifesta-se uma recusa de qualquer ideal de limpeza, de clareza, de organicidade, de harmonia, de equilíbrio, de beleza, características normalmente associadas ao nome de Apolo.

Quando comecei a escrever este texto, pretendia concluir criticando Warlikowski por sua visão unilateral de Apolo, que tem dois epítetos contraditórios: se por um lado é Febo, o resplandecente, aquele que impõe limites claros a todas as coisas (sua imagem mais conhecida), por outro lado é Lóxias, o obscuro, aquele cujos oráculos precisam sempre ser interpretados, sendo que o fato de mal interpretá-los não raro é a principal razão da queda dos heróis trágicos (vide o exemplo de Édipo, por exemplo). Pretendia dizer que, ao apresentar o deus de forma unilateral, fechando os olhos para a sua fundamental ambiguidade, e investindo numa montagem “puramente dionisíaca”, ele paradoxalmente teria acabado sendo mais apolíneo do que gostaria. Pretendia dizer, em suma, que ele não teria ouvido bem a lição de Nietzsche no Nascimento da tragédia. Ali, o filósofo diz que, ao matar Dioniso, o racionalismo socrático, em nome de Apolo, das distinções conceituais claras e distintas, teria acabado por matar também Apolo, já que Apolo e Dioniso seriam as duas faces de uma mesma moeda, nomes emblemáticos dessa ambiguidade ou tragicidade constitutiva do humano, dessa guerra eterna que é a vida. Ao contrário de Sócrates, eu pretendia dizer, em sua tentativa de matar Apolo, de interromper a ruína monumental feita dos cadáveres de todos que foram assassinados em seu nome (lembremos do “anjo da história”, de Paul Klee, na leitura de Benjamin), Warlikowski teria matado também Dioniso.

Era isso o que eu pretendia dizer, me atendo a uma crítica mais imanente das discutíveis opções formais feitas pelo diretor, que me fizeram sair do teatro com a sensação de ter visto uma nova repetição de uma velha fôrma, um dispositivo eminentemente irônico na lida com a tradição que teve grande potência no teatro dos anos 1990, mas que, à força de sucessivas repetições, acabou por esvaziar-se, convertendo-se em fetiche formalista. Mas, neste momento, a verdade é que eu não posso dizer apenas o que pretendia dizer. Escrevi esse texto sendo atravessado pelas palavras, pelo momento histórico que estamos vivendo, como os personagens de Ça ira, ponto culminante da MIT deste ano. As placas tectônicas que foram finalmente postas em movimento pelos governos Lula e Dilma (a despeito de todas as legítimas críticas que possamos fazer a certos aspectos de seus respectivos projetos de governo, o que não tem nada a ver com saber se eles são puros ou não) estão gravemente ameaçadas de serem novamente imobilizadas pela força reacionária de elites ancestrais que querem conservar os seus privilégios a qualquer preço, que, como em Ça ira, recusam visceralmente a ideia de uma verdadeira igualdade política. Contra essas elites, contra a catástrofe que se anuncia tão próxima, faço então coro com Warlikowski: Apolo não!

A segunda vida

Crítica do espetáculo An Old Monk, de Josse de Pauw, por Patrick Pessoa (Questão de Crítica)

MITsp 2016

 

Ele tinha quinze, dezesseis, dezessete anos. Sentia que não pertencia à sua vida, como se tivesse errado de endereço. À sua volta todos dançavam muito, falavam muito, viviam em bando, se divertiam. Contavam sempre as mesmas anedotas: do último porre, daquela viagem de ácido muito louca, dos melhores baseados, das primeiras transas (descritas com aquela falsa indiferença juvenil que queria se fazer passar por experiência). Tinham quinze, dezesseis, dezessete anos e pareciam achar que aquela era a melhor época de suas vidas. Ele não. Não cabia em seu corpo, que transbordava de pelos esquisitos e espinhas dolorosas. Adolescer era um sofrimento para o qual ele ainda não havia encontrado nenhum nome. Um dia, numa festa, ficou inquieto quando uma amiga disse que estava angustiada. A palavra era bonita: an-gús-ti-a. Tinha o sabor de uma fruta exótica, de uma fruta que ele jurava nunca ter comido. Foi quando leu num desses livros que só se leem aos quinze, dezesseis, dezessete anos, que a vida está em outro lugar. E acreditou. Afinal, a vida, a vida de verdade, tinha que estar em algum lugar! Ele tremia de medo pensando que não viveria o suficiente para conhecê-la. Muitas noites, com o próprio sexo nas mãos, rogava a Deus para não morrer virgem. Por acaso, descobriu um programa de intercâmbio escolar e acabou se mudando para a Holanda, atraído pela miragem da maconha liberada. Quem sabe dali não viriam outras libertações? Mas, chegando lá, o sentimento de estrangeiridade radical só se agravou. Naquela época, Camus foi um vício. Aprendeu holandês lendo as legendas de uma novela americana, The Bold and the Beautiful. Aquela língua estranha, assim sem ele perceber, se gravou nele. Uma língua-mãe que se escolhe aprender às vezes é mais pregnante que a língua e que a mãe que nos foram destinadas pelo acaso.

Quando voltou do ano de intercâmbio, seu pai, tentando uma reaproximação, começou a levá-lo para os shows de jazz que frequentava compulsivamente. Aos vinte, vinte um, vinte dois anos de idade, o garoto viu e ouviu músicos cujos nomes nunca conseguia lembrar, mas que seu pai sempre dizia que eram “bons pra caralho”. A sensação que tinha nesses shows era esquisita. As primeiras notas já o transportavam para muito longe dali. O fato de que os músicos pareciam tocar mais para si do que para os outros era um pretexto para ele se desconectar. Em geral, ficava pensando na vida que poderia ter sido, ou na vida que ainda poderia ser, mas que… Muitas vezes, se sentia culpado por não conseguir desfrutar devidamente daquele privilégio, já que os concertos costumavam ser caros: até achava os músicos tecnicamente bons, mas parecia que alguma coisa lhe faltava, talvez um sentido mais apurado para fruir o que não cabe em palavra nenhuma, a liberdade de se entregar a um fluxo de sensações mais brutas, abstratas, resistentes a uma compreensão racional.

Aos trinta, trinta e três, trinta e cinco anos, seu corpo continuava não vestindo bem, mas ele tinha uma vida que os outros consideravam boa. Ou, pelo menos, normal. Mulher, filho, um trabalho que lhe permitia viver sem grandes preocupações financeiras. Eram tantas as obrigações a cumprir que ele só raramente se lembrava de que a vida ainda não tinha lhe dado nem um décimo do que ele esperava. Como quando era garoto, ele continuava com medo de morrer cedo demais. Pelo menos, já não era mais virgem.

Aos quarenta anos fez uma viagem a São Paulo, para cobrir um festival internacional de teatro. Algumas pessoas consideravam que ele era um crítico teatral, embora aquela roupa lhe caísse como um terno alugado numa loja de segunda mão. Foi ver uma peça de um diretor belga, chamada An Old Monk. Como sabia que teria de publicar uma crítica em menos de 12 horas, se informou antes sobre Josse De Pauw, o autor, diretor e performer do espetáculo. Descobriu que ele não chamava seu trabalho de uma “peça de teatro”, mas sim de um “concerto teatral”. Começado o espetáculo, entendeu por quê.

Em cena, uma banda com piano, baixo elétrico e bateria atacou um jazz como aqueles que costumava ouvir ao lado do pai, vinte anos antes. Lembrou do velho e pensou com um sorriso de canto de boca: “Esses músicos são bons pra caralho!” Na sequência, viu um senhor corpulento, careca, com uma barba branca comprida, mistura de Xico Sá e Paulo Cesar Pereio, entrar em cena dançando, se entregando ao fluxo da música. Aquele senhor dançou por um longo tempo, até ficar realmente cansado. O procedimento era muito interessante, porque fazia do cansaço uma experiência corpórea real, para além da mera representação. Então, dialogando sempre com o ritmo da banda, que continuaria a tocar ao longo de todo o espetáculo, e tendo sempre em vista a necessidade de construir uma relação inclusiva com o seu público, Josse De Pauw começou a sua narrativa. A mágica do dispositivo, simples mas rascante, estava no fato de que, apesar de falar de experiências aparentemente autobiográficas, o performer usava a terceira pessoa, transformando a sua vida em uma ficção e assim realizando a quimera de converter a própria vida em obra de arte. (No epílogo do espetáculo, aliás, essa ideia era reforçada com a projeção de imagens do corpo nu do artista com interferências gráficas que propunham diversas outras narrativas possíveis para aquele suporte material.) Antes de compreender o fio condutor da narrativa, na qual De Pauw usava a dança como metáfora para falar das três grandes épocas de sua vida (a juventude, na qual ele dançara sem nunca cansar e o tempo parecia infinito; a maturidade, quando as obrigações o tinham levado a parar de dançar; e a velhice em que se encontrava agora, quando, depois de buscar inutilmente pelo silêncio e a solidão característicos da vida de um monge (monk), ele havia finalmente, a despeito de todas as limitações físicas, recuperado o desejo de dançar e cantar como Thelonius Monk), o garoto com terno de crítico foi atravessado por uma estranha sensação de pertencimento: Josse De Pauw não apenas falava holandês, sua segunda língua materna que ele julgava ter esquecido, mas, sobretudo, ao atuar como uma espécie de repentista do cool jazz, transpunha o abismo que sempre o separara da música: a ausência de palavras. Josse De Pauw celebrara diante de seus olhos estupefatos o casamento entre o fluxo musical da vida e a narrativa necessária para transubstanciar sensações brutas em sentidos inteligíveis.

Eu saí então do teatro dançando, com a impressão de estar afinado com o ritmo da vida, me regozijando por não ser mais um estrangeiro neste mundo. Como disse De Pauw: “Nada de demasiada paz, porque ainda há tempo para uma outra vida, se preciso for. Para outra vida, e talvez uma vida melhor, também, mesmo que a anterior já tenha sido boa.” Uma segunda vida, não resta dúvida, fundamentalmente dependente da possibilidade de articular narrativamente os fragmentos dispersos da nossa experiência descontínua do tempo. O que, a meu ver, é não apenas a tarefa da arte, mas sobretudo a da crítica.