Todos os posts de Pollyanna Diniz

Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda? (www.satisfeitayolanda), do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

Armadilhas do real

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo Caminos invisibles…La Partida, da Cia Nova de Teatro, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo

6 de novembro de 2015

Lidar com o real no teatro revela-se uma equação complexa. No artigo Entre mostrar e vivenciar: cenas do teatro do real, escrito por André Carreira e Ana Maria de Bulhões-Carvalho para a revista Sala Preta, os autores afirmam que “os espetáculos que utilizam o real como matéria, ou dialogam com o real como tema, pedem uma reflexão sobre como podemos construir percepções do real que se projetam para além do efeito imediato, sustentado principalmente pela informação de sua presença na cena”. O espetáculo Caminos invisibles…La Partida, da Cia Nova de Teatro, envereda pelo desafio de tratar da trajetória de imigrantes que chegam ao Brasil e são cooptados por um sistema cruel de subjugação. A montagem, com direção e dramaturgia de Carina Casuscelli, e direção artística e iluminação de Lenerson Polonini, participou da X Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo com apresentações no Centro Cultural da Juventude, no extremo norte de São Paulo.

Na montagem, brasileiros e bolivianos dividem o palco para retratar a situação de imigrantes sul-americanos que chegam ao Brasil em busca de melhores condições de vida, mas acabam empregados em fábricas de costura, tornando-se vítimas do trabalho escravo. A narrativa se desenrola principalmente através da história da personagem principal, uma boliviana interpretada pela própria Carina Casuscelli. Mesmo que o papel principal seja de uma brasileira (que realmente parece boliviana no palco), a potência da montagem me parece calcada basicamente no fato de que os bolivianos (há uma banda de bolivianos fazendo a música do espetáculo ao vivo, além das mulheres da fábrica e de um feitor) estão em cena, como documentos de suas próprias histórias, testemunhos vivos, conferindo abrangência de possibilidades narrativas e, claro, legitimidade à proposta teatral inicial. Mesmo que não tenha acontecido de forma literal com aqueles bolivianos, isso não fica claro, o enredo principal é fincado no real. Todos os andinos ali, certamente, de alguma forma, já sofreram as consequências de serem estrangeiros no Brasil: fronteiras raciais, preconceito, invisibilidade social, injustiças.

A questão é que, ainda que o principal argumento da encenação sejam os imigrantes e eles estejam em cena, há muitas armadilhas pelo meio do caminho. A narrativa, apesar de tentar englobar vários âmbitos da questão, faz isso de maneira bastante superficial. Os personagens caem facilmente na caricatura: o feitor que, mesmo sendo boliviano, obriga as mulheres a trabalhar incessantemente; uma jornalista de televisão que entrevista uma estilista deslumbrada; a polícia carrasca e desonesta; o político corrupto; o pastor que se aproveita dos outros. As interpretações, em sua maioria, estão na chave do histrionismo, do sensacionalismo, não permitindo nuances e enveredando por radicalizações.

Além disso, na cena tudo está dado de forma “mastigada”, não esboçando as complexidades, as diferenças, os conflitos, de maneira que o espetáculo tentasse possibilitar ao espectador criar suas próprias perspectivas sobre o tema. A capacidade desse espectador é negligenciada, numa montagem em que não há espaços para associações, questionamentos, interpretações. Como exemplo, a última fala da peça resume o tema/resultado da encenação, como se isso já não houvesse ficado claro o suficiente.

A direção ainda envereda pelo uso da linguagem audiovisual, principalmente quando faz projeções de cenas. Mas o recurso não traz outras camadas que possam causar qualquer fricção com o que já se mostra estabelecido na encenação. Para o desenrolar da dramaturgia, não faz grande diferença ter a presença do diretor em cena que, no caso, exerce o papel de cinegrafista em momentos específicos da peça.

Se a ideia do projeto é rica em possibilidades, a concretização da cena pouco possibilita ao espectador a experiência da troca. Seja qual for a temática, em se tratando ou não de imigrantes, talvez uma das chaves esteja na capacidade de enveredar por estratégias de encenação que enxerguem o outro não como um espectador que precisa ser doutrinado, mas como alguém capaz de estabelecer conexões e reflexões entre arte e vida real de maneira mais autônoma.

Morrer de amor: sobre família e ignorâncias

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Morrer de amor, segundo ato inevitável: morrer, da Fundación La Maldita Vanidad Teatro, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

11 de março de 2015

“(…) extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás, lá pra trás não há nada,
e nada mais”
Paulo Leminski

As paredes da casa estão impregnadas de história. Sabe aqueles segredos não revelados por anos? Os assuntos escondidos? As conversas que não chegaram nem a acontecer? Em Morrer de amor, segundo ato inevitável: morrer, da Fundación La Maldita Vanidad Teatro, da Colômbia, despontam as dores advindas de relações que se deixaram empalidecer pelo tempo, pela falta de liberdade de nos mostrarmos como somos.

A encenação proposta pelo colombiano Jorge Hugo Marín nos leva a observar de perto os sentimentos e conflitos que se instauram durante o velório de Luís (Miguel González). Estamos ali, sentados na sala da casa onde familiares choram o morto. Somos/estamos cúmplices da encenação. A carga semântica implícita ao local torna-se um dos elementos da teatralidade nessa escritura cênica. Não adiantaria estar dentro de uma casa, do ponto de vista estético, se não houvesse uma apropriação do potencial simbólico do lugar, o que possibilita ao espectador uma mudança de perspectiva da cena. O jovem grupo colombiano, formado há cinco anos e que já tem pelo menos sete montagens no repertório, realmente se empodera da materialidade espacial da encenação. O caixão no meio da sala, como nos velórios de antigamente ou nas casas pelo interior do país, permite que estejamos diante de conflitos familiares que não conseguem permanecer incólumes, mesmo diante da morte.

A dramaturgia assinada pelo diretor Jorge Hugo Marín trata de questões arraigadas na cultura não só da Colômbia, mas de toda a América Latina, principalmente posições de intolerância e ignorância diante das diferenças. Muitos jovens homossexuais ainda sofrem sim todo tipo de preconceitos e violência, dentro e fora de casa. Não podemos esquecer o contexto em que estamos inseridos. No Brasil, em 2015, ainda precisamos de uma comissão especial na Câmara dos Deputados para discutir se o conceito de família pode estar restrito à união entre um homem e uma mulher, como prega o Estatuto da Família, projeto de lei proposto pelo deputado pernambucano Anderson Ferreira. Uma lei que desconsidera as relações homoafetivas e ainda veta a adoção de crianças por casais gays.

Como montagem que opta pelo caminho do realismo, Morrer de amor traz atuações que transitam por um limite tênue. Por muito pouco, as interpretações poderiam soar over, exageradas e aí perder a relação com a realidade proposta pela encenação. O que não permite que isso aconteça é o talento dos atores e da direção, aliado à clareza de possibilidades e de compreensão da cena, inclusive a partir da dramaturgia. O texto serve ao propósito de revelar o cotidiano de uma família classe média baixa que não sabe lidar com os seus conflitos. Se todos os atores conseguem trabalhar no mesmo diapasão, um dos destaques é a atriz Juanita Cetina, intérprete da jovem Olga, que foi namorada de Luís (Miguel González) na infância. As oscilações na voz, o medo no olhar, os trejeitos assumidos pela personagem levam muitas vezes a plateia ao riso ou à impaciência diante da ingenuidade.

Morrer de amor nos leva à certeza de que, se não podemos extinguir todo remorso, como propõe o poema Bem no fundo, de Paulo Leminski, é melhor encarar as fissuras causadas pelas ações, ausências e omissões. Como plateia, sentimos não só o morto da família. Choramos não só a ficção. O que lamentamos mesmo é a realidade de Morrer de amor.

O aquário absurdo e a profusão de imagens no Woyzeck de Andriy Zholdak

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Woyzek, de Andriy Sholdak, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

10 de março de 2015

Enquanto a Ucrânia amarga uma situação de guerra, com 5,2 milhões de pessoas morando em áreas de conflito, o diretor ucraniano Andriy Zholdak, radicado na Alemanha, apresenta um Woyzeck em estado de tensão permanente. Uma sociedade presa dentro de um aquário transparente, que se movimenta em espaços circunscritos e delimitados. Podem ser todos ratos de laboratório ou coelhos, ou simplesmente homens animalizados, acorrentados a situações de dominação e fatalidade.

Assim como o próprio texto do alemão Georg Büchner, a performance midiática proposta pelo diretor ucraniano tem caráter político. A questão no primeiro plano continua sendo o desamparo e as relações de poder num mundo absurdo; no caso da encenação, especificamente, em diversas instâncias: desde as referências mais diretas e facilmente assimiláveis, com imagens que ressaltam a desigualdade social e a citação de que “somos 15 milhões de pobres”, o imperialismo, o militarismo, a globalização, até disputas internas que se dão noutras instâncias, como no campo da própria teatralidade.

Patrice Pavis já dizia no livro A encenação contemporânea que, na concorrência entre a imagem fílmica e o corpo real do ator, não é necessariamente esse último que ganha. No caso do Woyzeck proposto por Zholdak podemos dizer que o que se instaura é uma desorientação (propositada, obviamente) espacial do espectador. Desde o inicio, quando passamos por uma antessala e nos deparamos com a visceralidade da atuação dos performers em deliberada anarquia, até estabelecermos uma relação de frontalidade com o espetáculo, percebemos que o que se revela é uma instalação visual e sonora. O diretor bebe nos campos de várias linguagens, música, cinema, artes visuais, para compor um espetáculo que não se deixa enquadrar por um elemento sobrepujante de condução. Pode ser facilmente estudo de caso da teoria do teatro pós-dramático do alemão Hans-Thies Lehmann.

A fricção entre os vários componentes dessa ópera caótica nos deixa inicialmente aturdidos. As camadas vão se sobrepondo a cada instante com signos que não serão compreendidos em sua totalidade. Nem essa é, de maneira alguma, a intenção do diretor, que assina ainda roteiro dramático e coreografia. Assim como os atores, estamos nadando em aquários, perdidos na profusão das imagens que nos remetem a um mundo de seres absurdos no ano de 2108, seja em alguma grande metrópole ou numa nave espacial com destino a Saturno. De qualquer maneira, assim como acontece no palco, somos levados a recorrer a uma edição de imagens, de texto, de expressões e sonoridades, mesmo que, no espectador, os significados possam ser depurados muito tempo depois.

O texto de Büchner, com sua fragmentação de dramaturgia, um “drama de farrapos”, como pontua Anatol Rosenfeld, é um aliado na construção da engenhosa teatralidade de Zholdak. Sobre o texto, Anatol Rosenfeld complementa: “É um fragmento; mas é uma obra que só como fragmento poderia completar-se. Ela cumpre a sua lei específica de composição pela sucessão descontínua de cenas sem encadeamento causal. (…) Tal fato desfaz a perspectiva temporal; boa parte das cenas pode ser deslocada, a primeira cena não é mais distante do fim do que a sétima ou a décima-quarta”.

A escritura cênica no campo visual encontra reverberação no corpo do ator, submetido a uma experiência rigorosa. O caos é orquestrado e coreografo em minuciosos detalhes pelo diretor. Se a escritura cênica é marcada pelo excesso e pela profusão e multiplicidade de imagens, o efeito que isso tudo produz na plateia, no entanto, é de muito distanciamento ao final das duas horas de sessão. Como se toda frieza das relações em cena também fosse transposta para o espectador. A tentativa de humanizar aqueles seres se mostra vã. Os limites do aquário, mesmo que invisíveis, não são rompidos ainda que a cena aconteça no telhado, numa possibilidade frustrada de expansão. Quando, ao final de contas, tenta-se falar de amor, não há laços construídos que se encaixem em padrões a que estejamos minimamente familiarizados. O único ponto de conexão com alguma delicadeza possível é a criança; a esperança remota de que, em 2108, o mundo de Zholdak não esteja definitivamente instaurado em sua totalidade.

Todos permanecem vivos

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo As Irmãs Macaluso, da Compagnia Sud Costa Occidentale, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

7 de março de 2015

No último dia 19 de fevereiro, o The New York Times publicou um artigo de Oliver Sacks. No texto, que viralizou rapidamente pelas mídias sociais, o escritor e professor de neurologia escreveu sobre a experiência de encarar a consciência da proximidade da morte por conta de um câncer terminal. Os compartilhamentos na rede talvez tenham vindo pelo fato de que, ao invés do tom pesaroso diante da finitude, o artigo propunha a superação, com uma mensagem clara de encorajamento. “It is up to me now to choose how to live out the months that remain to me (Agora depende de mim escolher como viver os meses que me restam)”. Para o filósofo existencialista Martin Heidegger, a tomada de consciência da morte nos leva a um questionamento radical diante do ser. Em As Irmãs Macaluso, montagem da Compagnia Sud Costa Occidentale, esse questionamento é trazido exatamente pela convivência com a morte proposta pela encenação de Emma Dante: os mortos continuam sendo parte de nós. Será que estamos mesmo vivos? O que determina a existência de vida?

As sete irmãs da história – Gina, Cetty, Maria, Katia, Lia, Pinucia e Antonella – saem do limbo da escuridão e passam a existir para os espectadores inicialmente todas de preto. Executam cortejos fúnebres coreografados, em bloco, mesmo diante da insistência de uma delas em se destacar do grupo com liberdade de expressão. Se a queda se instaura por alguns instantes, a força do grupo reanima, coloca de volta no prumo.

A movimentação permanece até que as irmãs assumem a posição na qual permanecerão ao longo de praticamente toda a montagem, dispostas uma ao lado da outra. Na encenação da diretora e dramaturga de Palermo, no entanto, o fuzilamento do pelotão não será pelas mãos de elementos desconhecidos, externos, sem qualquer relação próxima e que apenas cumpram ordens pós-sentença de morte. Numa reunião familiar, as lembranças podem ser muito mais cortantes e virulentas do que qualquer projétil. Os julgamentos são desfiados e se mostram inevitáveis quando os laços relacionais permitem o conhecimento profundo do outro.

O estado de energia e tensão presente no corpo das atrizes se desdobra na sonoridade da língua – o espetáculo é encenado no dialeto de Palermo – e das músicas cantadas inclusive pelos próprios atores. A partir do ritmo impresso pela movimentação do corpo, a poética do espetáculo vai se afirmando aos poucos e reverberando na plateia. As risadas com as travessuras e episódios de infância se transformam com a apreciação dos dramas que compõem a história daquela família, marcada por tragédias e calcada na tradição. O humor e a ironia travam uma relação tênue com a melancolia da percepção dos erros, com a inevitabilidade do acidente trágico, com os cuidados que deveriam ser tomados e não foram. O tempo não volta atrás, mas permanece. O presente existe enquanto desdobramento do passado, mas este último não se exaure, se estabelece como permanência e continuidade.

Na cena, a realidade vai sendo permeada pela memória, que é capaz de se mostrar cruel e dura, mas também pode trazer uma afetividade transbordante. O que foi se apresenta amalgamado com o presente. Os que morreram permanecem ali e, mesmo aqueles que parecem voltar, nunca estiveram no campo do esquecimento. O pai, que faz um grunhido de porco, dá bronca com dedo em riste, mas canta a música com a preferida, a caçula, já estava presente como narrativa. Uma das sequências de maior potência poética na montagem é o encontro da mãe com o pai. Os dois giram agarrados como crianças, eternizando um momento que pode ser ilusão, sonho, idealização.

Sem nenhum cenário ou mesmo aparatos tecnológicos, a teatralidade de Emma Dante é construída a partir do vazio. Do vazio do preto que assume outras cores, mas depois se estabelece como ausência de cor. Do vazio do silêncio preenchido pela sonoridade rápida e ininteligível do dialeto. Do vazio da narrativa que se transforma em memória. Também há muita simplicidade estampada na cena. Quando a opção é óbvia, mas eficiente: o convívio do espectador com a história que nos agarra sem que nenhum esforço se mostre excessivo, talvez só pela constatação de que, naquela família, cabem todas as famílias do mundo, inclusive a minha.

Atravessando o território do Gólgota

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Metacrítica a partir de Gólgota Picnic, de Rodrigo García, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

26 de março de 2014

O lugar do calvário virou cenário para piquenique. Mas quem seria sacrificado? Jesus Cristo não estava sozinho na crucificação proposta pelo diretor argentino Rodrigo García e sua companhia La Carnicería em Gólgota Picnic, apresentada durante a primeira edição da MITsp. Mesmo com todo distanciamento proposto pela encenação do palco italiano, é o público quem está ali enfrentando “as verdades” de uma sociedade que não deu certo; embotada pelo capitalismo desenfreado, pela sede de poder, pela guerra.

O discurso cênico não se deixa encerrar numa só análise; e isso se dá principalmente por conta da quantidade de estímulos a que a plateia é submetida. Se fosse, aliás, apenas por exercício mental, para resumir leituras e significados, excesso seria uma boa palavra. Excesso de palavras, excesso visual, excesso performático. Sem verticalidades, o texto desfia um rosário de críticas que, em algum momento, de uma maneira ou de outra, irão atingir o espectador. Mesmo aquele que, inicialmente, consegue se distanciar do discurso quase panfletário da montagem, talvez seja capturado quando a função da própria arte e os seus conceitos são questionados. Há espaço para tudo: desde os artistas que retrataram o calvário até críticas sobre o mercado de arte e as suas instituições.

Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García transita pelos limiares do panfletário, dessa construção calcada em clichês e superficialidades. Ao mesmo tempo, no entanto, é esse acúmulo que constrói a potência do discurso que se rebela contra o estabelecido e nos faz questionar as bases da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: estamos todos ali participando do mesmo piquenique, satisfazendo os nossos desejos, nos utilizando da arte para saciar as próprias falências e deficiências.

Ainda que atinja tantos alvos, o enunciador desse discurso se mostra sempre um só. Não há diálogos entre os atores, que não assumem personagens definidos. São todos participantes de um encontro na grama de hambúrgueres de que é composto o cenário. Essas pessoas não têm identidade – podem ser qualquer um de nós em discursos ditos de maneira isolada ou em confabulação e sem contrapontos advindos do embate que qualquer diálogo pode trazer. Não há outra visão, quebras ou rupturas na construção dessa mensagem. Isso se confirma também na maneira como os atores dizem o texto – em tom de conversa, às vezes de confissão, de narração. Essa linearidade entra em choque imediatamente com a profusão visual da montagem.

Rodrigo García constrói uma instalação. As artes visuais estão entranhadas no seu teatro. As projeções em vídeo e também em tempo real em proporções gigantescas que nos levam para dentro da tela; os 25 mil pães dispostos no chão; a maneira como a performance dos atores se desprende da realidade. Eles mesmos reinventam os seus próprios quadros sacros ou profanos. Eles são os personagens – mesmo que ausentes de personas definidas – da simulação da vida. Recebem a tinta no corpo como se fossem as árvores que carregam os frutos e são banhadas com inseticidas.

O pão simboliza o sagrado, o corpo de Cristo, mas também a consagração do consumismo, do fast food. A maneira doentia como a nossa sociedade se relaciona com a comida; a crise de alimentos que assola o mundo enquanto a cultura do desperdício é instaurada. As metáforas podem ser claras assim ou nos levar por caminhos desconhecidos, que chegam quanto mais nos distanciamos da obra. A potência está exatamente na possibilidade de reverberações e imagens que a encenação de Rodrigo García nos permite formatar.

As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real; mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo de maneira muito clara e efetiva.

Mesmo que o lugar de espectador seja preservado, somos provocados e desestabilizados o tempo inteiro. Seja pelo cheiro desconfortável dos pães, pelas minhocas colocadas dentro do sanduíche, pela sujeira da tinta azul e vermelha, pelo bolo da comida mastigada que, projetada na tela, nos causa embrulho no estômago e ânsia de vômito.

Quando, por fim, parece que passamos por tudo isso e a divindade bate à porta, não sabemos lidar com ela. E isso, mais uma vez, nos tira do lugar do conforto. O pianista se despe para executar a obra Sete últimas palavras de Cristo na cruz, de Joseph Haydn, mas a mudança de estado no espectador proposta pela música clássica que, inicialmente, nos conforta, também sufoca. E incomoda pensar que ela nos inquieta. Que à estética do Gólgota estamos bastante habituados, a rapidez desconcertante, uma quantidade incomensurável de estímulos, a poluição, a sujeira, a violência. O choque é tão brutal que não conseguimos absorvê-lo e continuamos nos debatendo como se não conseguíssemos sair do Gólgota para o lugar do sagrado – se é que ele realmente existe.

 

Cinematografia da realidade teatral

Foto: MITsp/divulgação
Foto: MITsp/divulgação

Crítica  do espetáculo Cineastas, de Mariano Pensotti, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

15 de março de 2014

A certa altura do espetáculo Cineastas, a declaração de um dos personagens saltou aos ouvidos: “o cinema é o ser humano fazendo o tempo parar”. Enquanto no cinema o instante se deixa capturar e reproduzir pelo aparato tecnológico, no teatro há mais coerência em dizer que ele é experimentado em conjunto. Por isso mesmo, a característica da efemeridade mostra-se, como sabemos, uma das mais intrínsecas à atividade teatral. Atores e espectadores estão em busca de uma vivência compartilhada, da fruição de pulsões e desejos, que não se dão numa via de mão única: acontecem tanto do palco para a plateia quanto vice-versa, mas significam efetivamente tempo, acontecimento e, geralmente, espaço divididos.

Em Cineastas, o dramaturgo e diretor argentino Mariano Pensotti traça paralelos e similitudes entre o teatro e o cinema e problematiza os limites entre realidade e ficção, só que utilizando, de fato, sempre a chave da ficção. A trama apresenta as vidas “reais” de quatro diretores de cinema e, concomitantemente, os filmes nos quais eles estão envolvidos. A dicotomia entre criação e realidade se estabelece a partir das representações dos filmes postos como obras de ficção quando, na realidade, tudo é simulacro do real.

As histórias se desenrolam simultaneamente e com a agilidade da linguagem audiovisual. As ações são apresentadas em planos distintos. A cena, aliás, propõe o mesmo recorte imagético do cinema nos enquadramentos bem definidos. Tudo está restrito ao que cabe naquele retângulo e, com isso, a questão: quais são os recortes que fazemos da realidade priorizando este ou aquele viés?

Nas duas telas, as narrativas exibidas se influenciam e são postas em fricção o tempo inteiro – até que ponto “realidade” e ficção podem se misturar e relacionar? De que forma esses conceitos podem ser intercambiáveis? Um dos cineastas, por exemplo, decide mudar o roteiro do filme depois que descobre uma doença terminal. Outra é afetada porque está filmando um roteiro em que um desaparecido surge anos depois desestabilizando a família; e ela enxerga ali a própria história, já que o pai dela também sumiu.

A dramaturgia está apoiada ainda nas contradições desveladas no cotidiano, entre os papéis assumidos diariamente nas diferentes situações e o que realmente somos ou gostaríamos de ser. Um dos diretores trabalha no McDonald´s, mas se dedica a rodar um filme em que teoricamente destruiria a imagem da multinacional.

Cineastas solicita o tempo inteiro que o espectador esteja acompanhando as sequências e os cortes propostos pelo diretor, retomando a narrativa de onde ela foi interrompida, como as diversas tramas em que nós mesmos, plateia, estamos envolvidos. A história de Pensotti normalmente tem um narrador, onisciente, que assume a condução da trama quando dispõe do microfone, e aí nos revela o que se passa, mesmo que os outros dois atores, por exemplo, estejam conversando. Não interessa o que dizem; aquele narrador já é capaz de traduzir não só o que está acontecendo “de fato”, como de nos contar em tom confessional o que os personagens estão pensando, os dilemas enfrentados, como se sentem. Logo depois o diálogo entre os dois pode ser retomado e virar novamente o foco principal da cena.

As possibilidades de espelhamento e construção de interferências entre realidade e ficção representadas dentro da peça nos inquietam também acerca do quanto nos resignamos diante das condições dadas pela efetividade do cotidiano.  E, ao mesmo tempo, nessa perspectiva, do quanto podemos ser afetados e influenciados pela arte e, especificamente, pela experiência partilhada do teatro. Como se, sendo ou não capazes de lidar com a realidade ou suas reconstruções do dia a dia, o teatro sempre fosse um refúgio possível.

As sete primeiras palavras pós-calvário de Gólgota

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Gólgota Picnic, de Rodrigo García, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

14 de março de 2014

Introdução.

É de tirar o fôlego, embrulhar o estômago, aflorar os nossos instintos de manifestante em tempos de passeatas midiáticas, quando juntamos tudo no mesmo bolo – gritamos contra a corrupção, pedimos por melhorias nos transportes e aproveitamos para falar de saúde, educação, sem nos esquecer de emitir opiniões pelo Facebook e postar a foto com filtro no Instagram. Enquanto um protesto fechava o trânsito na Avenida Paulista e ativistas subiam ao palco por conta do cavalo utilizado na performance Eu não sou bonita, de Angélica Liddell, a companhia La Carnicería Teatro apresentava Gólgota Picnic no Sesc Vila Mariana, dentro da programação da MITsp.

Público caído.
O lugar de espectador contemplativo é desestabilizado. Seja pelo cheiro dos 25 mil pães de hambúrguer que compõem a instalação cênica, pelas minhocas colocadas no sanduíche, pela tinta azul e vermelha aplicada como veneno nos corpos dos atores. Mas esse espaço não chega a ser deslocado. Mesmo com uma obra que desperta tanta polêmica, a opção de atingir só até determinado limite estabelece uma falsa ilusão de segurança, de barreiras não rompidas. Por que, afinal de contas, quem somos nós, os espectadores? Que lugar ocupamos no rosário de críticas desfiadas à sociedade de consumo?

Sobre McDonald’s e cadeiras de piquenique.
Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García não se estabelece, mas transita pelos limiares do panfletário, da construção calcada em clichês e superficialidades. Mas, ao mesmo tempo, numa linguagem virulenta, o acúmulo de signos constrói a potência do discurso cênico que se rebela contra o estabelecido da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: o que queremos é participar do piquenique e satisfazer os nossos próprios desejos.

Toma que o calvário é teu.
As diversas referências às artes plásticas, Rubens, Giotto ou Antonello da Messina, nos fazem compor os nossos próprios quadros sacros e profanos a partir da fruição da performance dos atores, do texto, das imagens projetadas no palco, da música. A desconstrução do símbolo de Jesus é a nossa própria demolição como sociedade que deu errado. O calvário de Jesus agora é compartilhado com o público.

O pão espetacularizado.
É da sociedade de espetáculo, termo criado e problematizado por Guy Debord, que fala sobre relações sociais mediadas por imagens, da produção e do consumo de mercadorias, que a encenação de Rodrigo García, argentino radicado na Espanha desde o fim da década de 1980, se alimenta para criar desdobramentos que transbordem o palco. O pão, alimento símbolo do corpo de Jesus para os cristãos, é dessacralizado, perde o seu valor e mostra a fragilidade do próprio corpo.

O corpo coberto por tintas e significados.
As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real, mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo.

A calmaria da redenção?
Uma última e rápida consideração sobre Gólgota Picnic diz respeito à mudança de estado no palco e na plateia que é proposta pela música de Joseph Haydn. Depois de tantos estímulos, da rapidez midiática, a música nos consola no primeiro momento. Refúgio pós-trauma do calvário performático da companhia espanhola. Mas, depois, é como se o tempo de respiro fosse longo demais para um público que voltará ao Gólgota assim que cruzar a porta do teatr