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Doutor em Literatura Comparada pela UFF (RJ) e Professor Adjunto do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp UERJ). É crítico de teatro na revista Questão de Crítica

Voar e saber cair

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Texto sobre o espetáculo Para Que o Céu Não Caia, da Lia Rodrigues Companhia de Dança, escrito por Renan Ji (Questão de Crítica / DocumentaCena )

*OBSERVAÇÃO DO AUTOR: Este texto contém passagens que antecipam certos procedimentos fundamentais do espetáculo. Recomenda-se lê-lo, se possível, depois da apresentação.

MITsp 2017

O espaço é uma sala negra, câmara escura. O céu, portanto, descortina horizontes indefinidos, fechados, foscos. O título do trabalho de Lia Rodrigues e companhia nos adverte: o céu arrisca desabar sobre nossas cabeças. Alguém talvez dissesse: protejamo-nos. No entanto, essa não é a direção de Para Que o Céu Não Caia. O movimento do espetáculo é de expansão, de ocupação do espaço, de infiltração e porosidade entre dançarinos e plateia. A energia circula entre esses agentes para formar um bloco convivial que volte a inflar a cúpula do céu sufocante, enfrentando-a.

Em outras palavras, um pouco menos metafóricas: laços são estabelecidos entre nós e os bailarinos, numa relação energética que resiste ao enclausuramento. Para tanto, é necessário quebrar as barreiras civilizacionais entre os respectivos primitivismos (nosso e deles): os performers nos encaram e devolvem nosso olhar de estranhamento, demovendo nossa postura poluída, tóxica e ambientalmente tosca de bípedes racionalizados. Fazem-no contemplando a nós com o aroma telúrico do café, revestidos da farinha/poeira dos tempos. Eles nos confrontam e revelam nossa inadaptação ao primordial.

Em seguida, gritos e lamentos, balbucios chorosos, apontam para o caos no seio das coisas. Há algo que precisa ser esconjurado, posto para fora, expandido. Com os dançarinos abrindo um grande círculo entre os participantes, o espetáculo fornece uma única diretriz clara e verbal (em meio a uma dramaturgia que busca o contato entre corpos sempre de maneira muito sutil): devemos nos sentar. Creio que estar em contato com o chão, nesse momento, é indispensável: sentimos mais forte o cheiro do café; acompanhamos os rasantes dos bailarinos sobre nossas cabeças; sentimos na base da coluna o ritmo das passadas fortes no solo.

É notável como a coreografia ritual é menos um código de gestos e mais uma pulsação coletiva. A batida dos pés no chão dita o ritmo das sequências de movimento e une corpos numa mesma vibração hipnótica. Mas nem por isso o espetáculo se torna menos dança devido à forte influência ritual. Na ondulação do corpo, há um misto insondável de transe, sensualidade e técnica. Os bailarinos de Lia Rodrigues batem firmemente os pés no chão, jogam com os quadris e geram espaço com braçadas rápidas e precisas. O dionisismo dos gritos, contorções e arcos histéricos são entremeados por saltos e quedas calculados, rodopios finamente delineados de torso e braços, mãos e gestos conduzidos com leveza efêmera, renovando o vocabulário da dança contemporânea.

Além disso, é interessante perceber como a orientação desses movimentos revela menos uma ascensão e mais uma entrega ao solo. A expansão a que me referi anteriormente diz respeito mais a uma horizontalidade, a um preenchimento simbólico e energético da base física das coisas: paradoxalmente, ao céu que periga cair responde-se com pisadas fortes e mãos no chão, com o fortalecimento do corpo junto à terra, com saltos aéreos que sempre terminam no reencontro com a materialidade. Há movimentos súbitos que parecem clamar por uma verticalização espiritual, na direção dos céus. Porém, voar antes de tudo significa saber cair, reencontrar e fortalecer as raízes terrenas, que suportarão a abóboda do céu.

Suportar o céu, assim, é menos um esforço de ascensão (tão típico da metafísica ocidental) e mais um pouso na superfície, revelando a sabedoria da alma selvagem que todos esquecemos: curvar-se em direção à terra, fundá-la e torná-la densa para impedir a queda do cosmo. De forma análoga, é necessário então sair e retornar ao corpo, projetá-lo para os ares, mas trabalhá-lo na musculatura. É disso que se trata a última etapa do rito-dança: a cor amarela da cúrcuma é semeada no assoalho, substituindo o obscuro do café. Pequenos pontos de sol são semeados na terra e nos corpos, refletindo e alimentando a luminosidade celeste. É o solo rico que garante um céu aberto; o corpo aberto e deitado – enraizado – ao chão é aquele que mais se volta para o céu e se dedica a ele.

Por fim, caberia dizer mais uma coisa sobre a horizontalidade do universo de Para Que o Céu Não Caia. A expansão horizontal é um dado que se revela uma necessidade social e afetiva, pertinente à maneira como nos relacionamos com o outro, com o mundo e com o espaço. Verticalizados, olhamos com inveja para os mais altos e com desdém para os mais baixos. Horizontalizados, podemos desfazer essas dicotomias e nos deslocarmos em fricção e solidariedade com o outro. O espetáculo da Lia Rodrigues Companhia de Dança parece nos fazer um convite: olhe nos olhos, perceba, sente-se e se suje. Cheire e espirre por causa dos pós – o espirro não deixa de ser uma forma de esconjuro do corpo. Deitados e estendidos, resistiremos. É necessário voltar ao solo, ao enraizamento, à prática concreta, para salvarmos um céu carregado de maus agouros.

Entre o ceticismo e a vertigem

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Crítica do espetáculo Revolução em Pixels, de Rabih Mroué, por Renan Ji (Questão de Crítica/ Documentacena)

MITsp 2017
Imagens de um mundo em guerra povoam os recônditos da internet. O real está ali, inquestionável, não tanto por ser algo factual, mas porque corpos são alvejados e comunidades dizimadas. Acredito que a morte não nos permite a leviandade do ceticismo: o elo de humanidade, a sensibilidade diante de uma cena de morte, pressupõe que a encaremos como verdade, mesmo que somente a princípio, mesmo que por um breve momento. Passado o choque, contudo, nada impede que surja a questão de como se chega à representação da morte. De fato, vídeos e fotos possibilitam a construção de narrativas diversas sobre o real. Mortes podem ser justificadas, repudiadas e simuladas, distorcidas pela manipulação da imagem e pela condução da narrativa. Rabih Mroué nos mostra como as montagens do governo sírio, as cenas de violência crua e ritual dos grupos terroristas islâmicos e os vídeos amadores de rebeldes civis possuem certos códigos de representação. Se cada qual revela uma maneira diferente de narrar o conflito, estamos inevitavelmente em meio a uma disputa de narrativas. E se estas são veiculadas na internet, nos recônditos da dark web, da deep web ou simplesmente do Google, o conflito é ainda maior: imagens de guerra são disseminadas na zona de guerrilha em que a internet se tornou, disputando pela primazia de dizer a verdade que nos choca.

Sobre a guerra na Síria, Rabih Mroué deseja saber o que realmente aconteceu ali. Não importa que o ceticismo nos alerte da impossibilidade de recuperar uma reprodução do real. A intenção e a forma de olhar é o que conta. Mroué parece entender que as narrativas disponíveis nos afetam de maneiras diferenciadas, e que, portanto, não são todas equivalentes. A mise-en-scène dos jornais institucionais pró-Bashar al-Assad postulam uma estabilidade política que se traduz em enquadramentos nítidos, filmagens panorâmicas e ângulos calculados; já os vídeos de rebeldes civis partem da precariedade pixelada do equipamento amador, arma pessoal de captura do real em oposição ao arsenal técnico das grandes narrativas. Entre essas duas visões de mundo, Mroué adere decididamente à perspectiva do rebelde, submetendo-se ao fascínio pelos rastros digitais que ele imortaliza depois de um upload.

Ainda que podendo ser pensada esteticamente, em comparação, por exemplo, ao movimento Dogma 95, é a partir da técnica simplória da representação de um rebelde sírio que Mroué acessa um outro lado do conflito civil. O tripé mecânico que sustenta as grandes narrativas cinematográficas dos meios de comunicação encobre uma verdade que somente aparece no olhar daquele que sustenta o seu equipamento com duas pernas. Há algo de inequivocamente verdadeiro, orgânico, na imagem captada por um celular suportado por pernas hesitantes, braços trêmulos, junto ao olho injetado que contempla o olho do algoz atirador. Double shooting: gravar aquele que nos “grava” com o cano da arma. E gravar de forma a que o olhar do espectador se sobreponha àquele da câmera, colocando-se na mira do disparo.

A possibilidade de double shooting redobra nossa consternação diante da imagem da morte, porque, de forma inaudita, aproxima o espectador da fenda indizível que se instaura entre o viver e o morrer, a partir da experiência do cinegrafista. De forma paradoxal, essa aproximação se torna tão aterradora por se estabelecer em via negativa, por meio de uma ausência: não há possibilidade de captar esse pequeno e fatal momento entre estar vivo e morto. O que resta são fragmentos sonoros de agonia; a tela preta após a queda do pequeno equipamento de vídeo no instante em que o corpo é alvejado. Prova dessa impossibilidade talvez seja a vertigem nauseante diante da possibilidade de encarar o rosto do algoz, quando Rabih Mroué, buscando a identidade do atirador de um dos vídeos, aumenta em zoom o frame que o enquadra. Mroué aproxima a imagem até a desfiguração; porém, a mancha matizada desperta a profunda inquietude com a possibilidade de olhar aquele que nos mira com o fuzil. Nada mais que a vertigem diante do possível rosto da morte.

A revolução do título da palestra-performance de Rabih Mroué talvez esteja precisamente no atravessamento afetivo que os vídeos de double shooting dos rebeldes sírios proporcionam ao espectador. Esses vídeos revolucionariam porque, de acordo com o artista, gritam em meio ao tiroteio propagado por um Estado antes bélico que social. A partir desses pequenos filmes, há a esperança de que seus autores tenham sobrevivido, pois é inegável que eles foram jogados na rede por alguém. Se não, ao menos, a cada repetição deles, pode-se reencenar constantemente seus atos de resistência fatal. Reviver e morrer, resistir. Cabe lembrar que afirmei anteriormente que essas imagens eram dotadas de “verdade orgânica”. Mas o certo é que nossa atenção e sensibilidade se voltam a esses vídeos por causa da narrativa e dos enquadramentos possibilitados pela técnica e pelo olhar proposto em Revolução em Pixels. É o olhar de Rabih Mroué que nos ajuda a refigurar tais rastros digitais e recuperá-los de sua obscuridade. A importância do artista nesse processo, portanto, é cabal. Nesse sentido, a revolução em pixels passa pelo crivo da arte. A arte ganha guerras? Com a arte, não há somente um rever cenas; nos vídeos de que fala Rabih Mroué, revivemos e morremos. O artista nos ensina novamente a viver e a morrer. E a não esquecer. A revolução passa por aí.