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PERCEPÇÕES EM DESLOCAMENTO

Crítica de “De Repente Fica Tudo Preto de Gente”, por Soraya Belusi (Horizonte da Cena)

Deslocar-se. Instaurar novos espaços. Desarticular as categorias. Fazer mover os corpos. Mudar de lugar o olhar. Contaminar o outro. Desviar os comportamentos dominantes. Imperativos que se apresentam, independentemente da abordagem crítica, na fruição de De repente fica tudo preto de gente. São noções que parecem ser inerentes à obra de Marcelo Evelin e dos performers da Demolition Inc., e que provocam, entre outras coisas, a desestabilização do espectador, em sua maneira de percepção e de disponibilidade corpórea, e a própria relativização das categorias artísticas, por seu caráter híbrido e pela prioridade em estabelecer a experiência e a amplitude de sentidos.

Além das múltiplas leituras possíveis na relação com a obra – algumas delas apresentadas em conversas com professores-pesquisadores e estudiosos de outras áreas do conhecimento; neste caso, com Nina Caetano e Pedro Cesarino, respectivamente; que ofereceram chaves de aproximação através da investigação dos conceitos e procedimentos de construção da obra, assim como a noção cosmológica colocada em jogo no espetáculo –, parece despontar, no exercício de metacrítica realizado pelo Coletivo de Críticos (*), a ideia de deslocamento, seja da relação passiva com o espectador, seja pela contaminação de procedimentos de disciplinas artísticas distintas, seja, principalmente, pela atitude que demanda daquele que a assiste, tanto na tentativa de convívio quanto na pura contemplação.

Em De repente tudo fica preto de gente, não são apenas os corpos dos performers que se colocam em movimento. Mais que andar pelo espaço, o público é provocado a mover-se de seu estado habitual, a colocar sua própria fisicalidade em jogo e a expor-se também ao olhar do outro. O efeito que a proximidade entre performers e espectadores assume sobre o ato performativo, já ressaltado em teorias e práticas cênicas ao longo da história recente, parece ser também uma das forças de ação que constituem a explosão de percepções e possibilidades que De repente tudo fica preto de gente nos suscita.

Em suas ondas de movimento – da aglutinação à degeneração, da integração à individuação, da estagnação ao deslocamento -, as massas corpóreas dos performers mobilizam também estados distintos no público, do desejo à repulsa, da entrega à negação, da aproximação ao afastamento. A obra demanda que público estabeleça também um comportamento físico, tornando-se, assim como os performers, uma força propulsora das dinâmicas que se estabelecem no espaço e no tempo do acontecimento performático, permitir-se ou não o contato, entregar-se ou não ao contágio, realizar ou não o toque, deixar-se, ou não, perceber a si mesmo e ao mundo através da pele e dos rastros que nela ficam.

Como afirmou o próprio Evelin em conversa com o público, é como se houvesse uma “coreografia do espectador”, cujo fluxo de movimentos, assim como o dos performers, também assume uma característica, um padrão, um procedimento no desenrolar do espetáculo.  Não se trata mais apenas de colocar em crise a cognição do espectador ou de provocar sua transição pelo espaço, mas também de fazer-lhe assumir uma postura diante dos corpos com os quais compartilha a experiência. A ocupação compartilhada entre criadores e espectadores no platô coloca em confronto, como num ringue, as tradicionais convenções de quem age e de quem é apenas o alvo da recepção. O espectador, sua materialidade corpórea, é parte indispensável da visualidade e do movimento da cena, tornando-se parte da experiência do grupo de espectadores presentes. Fica tudo preto de gente mesmo.

Há uma escolha (ou uma recusa) a ser feita pelo espectador. Existe uma tomada de decisão do público que preexiste e ultrapassa o ato de olhar e atribuir sentido ao que se vê. Se o público não quer “empretecer”, é preciso agir. E se não quer agir, é preciso decidir ficar do lado de fora do ringue. Para esses, que se mantêm do lado de fora, caberia apenas a contemplação, a construção de um argumento e a necessidade do sentido. Para os que estão dentro não existe contemplação, mas a exposição de todos que compartilham o ato. De repente tudo fica preto de gente é, em sua relação com o espectador, ao mesmo tempo, exposição e contemplação, experiência e sentido, pensamento e movimento.

Assim como o deslocamento da percepção do espectador (sobre si mesmo e sobre a obra), o espetáculo nos levou a refletir, ainda, sobre a noção de campo expandido das artes, em que as categorizações não são mais capazes de enquadrar todos os desobramentos (éticos-estéticos-técnicos-filosóficos) da obra em questão. Retomando a ideia de convivio entre espectador e obra, espectador e espectador, espectador e performers que De repente tudo fica preto de gente proporciona, os campos do teatro e da dança, assim como da performance e da instalação, nem sempre têm a oportunidade de convívio que aqui se desenha.

A ampliação dos campos nas artes – uma ideia que pode ser vislumbrada com a leitura de A escultura no campo ampliado, de Rosalind Krauss – é também uma questão para a crítica. Se antes, uma categoria se definia por atributos técnicos específicos, hoje, esta se dá menos vertical e mais horizontal, no campo de experiências possíveis. Sendo assim, conceitualmente, temos que intervir sobre a dinâmica da experiência com forma de encontrar nela a possibilidade de sua condição. Aproximar-se de De repente fica tudo preto de gente por um único enquadramento possível seria limitador para a própria experiência relacional com a obra.

No caso desse espetáculo, o público não está meramente passivo ao procedimento, é ele parte fundamental ao movimento de construção dos performers. A obra se estabelece como a correlação entre o convívio estético do espaço, obra e observador, uma instauração que parte de processos de entropias possíveis ao entendimento de proximidade ao outro. A criação assinada por Evelin e pelos performers da Demolition Inc., porém, não nos faz mais indagar, como sintoma das poéticas híbridas que se afirmam na contemporaneidade, se o que está diante dos nossos olhos é dança ou não. Esta pergunta parece não responder outra que se impõe de maneira ainda mais potente na fruição do espetáculo, ao voltar o questionamento não somente ao artista acerca dos procedimentos escolhidos por ele, mas, principalmente, a nós mesmos, espectadores, de como nos relacionamos com o que nos é apresentado. Exige, sim, olhar para esses espaços fronteiriços como eles se instauram em suas particularidades, não determinar categorias para eles que de algum modo os limitem.

 

Equilíbrio delicado

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Metacrítica a partir do espetáculo Nós somos semelhantes a esses sapos + Ali, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?

MITsp 2014

26 de março de 2014

Fazer metacrítica de um espetáculo nos coloca numa situação estranha, mas desafiadora. Buscar o sentido ampliado, com o reforço de outras vozes. Encontrar outros caminhos e uma dicção mais original de um trabalho visto há alguns dias. E, no caso de uma obra dentro da programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp (realizada entre 8 e 16 de março na capital paulista), com os acréscimos de camadas sensoriais e interpretativas de outras montagens, conversas com pares e ímpares, palestras, outras visões. Além do fator tempo. Estar distanciado do momento da expectação não significa necessariamente uma vantagem. E sim uma dubiedade. Mas com o olhar é deslocado. “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali foram apresentados na Sala Jardel Filho, do Centro Cultural São Paulo – CCSP, em sessões lotadas e recepção calorosa do público.

Utilizei de vários sentidos de deslocamento como chave de leitura para o espetáculo “Nós somos semelhantes a esses sapos…”, da companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (As Mãos, os Pés e a Cabeça Também), que exibiu em seguida o duo Ali. Das andanças pelo palco – Hedi Thabet, Artemis Stavridi e Mathurin Bolze -, do reposicionamento do eixo gravitacional e das referências aos movimentos migratórios mundiais e suas questões de identidades. Mas o deslocamento mais importante se opera no vocabulário dos movimentos alimentados pelas acrobacias circenses, que se descolam de outras bases da dança contemporânea para criar sua singularidade.

O trabalho também processa uma transformação na percepção do que é apontado como normalidade. “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali, não se resumem a um tratado sobre a deficiência física ou sua “exploração espetacular”. Hedi Thabet (dançarino e artista de circo belga que teve a perna amputada) disse, na conversa com o público após a segunda récita, que a peça “Nós somos…” é  “jogo de situações dramáticas sobre o amor”.

Em “Nós somos…”, a triangulação do desejo começa com movimentos repetidos mecanicamente, do casal que anda em círculos pelo palco. A noiva de camisola, o noivo de camisa branca, calça e paletó pretos. A terceira figura desse trio entra para desestabilizar o idílio amoroso dual, o homem de muletas.

O título do espetáculo é um verso do poeta René Char (1907-1988), “Nous sommes pareils à ces crapauds qui dans l’austère nuit des marais s’appellent et ne se voient pas, ployant à leur cri d’amour toute la fatalité de l’univers” (Nós somos como esses sapos nos pântanos que na noite austera se comunicam e não se veem, dobrando em seus gritos de amor toda fatalidade do universo).

Esses corpos carregam possibilidade erótica, enquanto instância também de poder. E extrapolam fronteiras com subversões poéticas. Estar no mundo é repleto de ironias, em questionamento de ser inteiro, pleno e fragmentado e incompleto. O que falta. Mas a imagem da mutilação não se apresenta como obstáculo, mas sim potência.

É a partir dessa ausência, porém, que se estabelecem os jogos de multiplicação e mutação dos corpos. Nessa reinvenção e reconfiguração corporal, são compostas formas humanas e supra-humanas, mitológicas, animalescas, em que os corpos se reorganizam, se fundem, se redefinem.

Imagens de potência em constante construção – uma rainha gigante com três pernas ou o gozo da noiva lânguida, Artemis Stavridi, erguida sobre o corpo de Hedi Thabet. Com os movimentos acrobáticos exacerbando a dança contemporânea, “Nós somos…” constrói um vocabulário de movimentos que busca confrontar a gravidade e reelaborar a noção de equilíbrio.

A música é executada ao vivo por quatro instrumentistas oriundos da Grécia e da Tunísia. Eles tiram texturas sonoras que aquecem, ganham formas e sabor ou estão carregadas de melancolia. A trilha salienta passagens mais passionais, com canções da tradição rebetiko e o som folclórico do Oriente.

O discurso amoroso também está presente em Ali, mas o registro é da ordem do fraterno.  A falta exposta se apresenta como elemento organizador da coreografia. A amizade articula os jogos, armados e desarmados entre os dois homens. Vai da ludicidade das brincadeiras infantis à disputa pelo poder como energia vital. Em Ali, as muletas se transformam em objetos de ligação entre os dois bailarinos. Cumplicidade, companheirismo, afeto entre Mathurin Bolze e Hedi Thabet. Eles se desafiam e confundem, se desdobram, se encaixam numa plasticidade comovente. O corpo pode ser outro, de outro modo, outro ser vivente.

Atravessando o território do Gólgota

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Metacrítica a partir de Gólgota Picnic, de Rodrigo García, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

26 de março de 2014

O lugar do calvário virou cenário para piquenique. Mas quem seria sacrificado? Jesus Cristo não estava sozinho na crucificação proposta pelo diretor argentino Rodrigo García e sua companhia La Carnicería em Gólgota Picnic, apresentada durante a primeira edição da MITsp. Mesmo com todo distanciamento proposto pela encenação do palco italiano, é o público quem está ali enfrentando “as verdades” de uma sociedade que não deu certo; embotada pelo capitalismo desenfreado, pela sede de poder, pela guerra.

O discurso cênico não se deixa encerrar numa só análise; e isso se dá principalmente por conta da quantidade de estímulos a que a plateia é submetida. Se fosse, aliás, apenas por exercício mental, para resumir leituras e significados, excesso seria uma boa palavra. Excesso de palavras, excesso visual, excesso performático. Sem verticalidades, o texto desfia um rosário de críticas que, em algum momento, de uma maneira ou de outra, irão atingir o espectador. Mesmo aquele que, inicialmente, consegue se distanciar do discurso quase panfletário da montagem, talvez seja capturado quando a função da própria arte e os seus conceitos são questionados. Há espaço para tudo: desde os artistas que retrataram o calvário até críticas sobre o mercado de arte e as suas instituições.

Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García transita pelos limiares do panfletário, dessa construção calcada em clichês e superficialidades. Ao mesmo tempo, no entanto, é esse acúmulo que constrói a potência do discurso que se rebela contra o estabelecido e nos faz questionar as bases da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: estamos todos ali participando do mesmo piquenique, satisfazendo os nossos desejos, nos utilizando da arte para saciar as próprias falências e deficiências.

Ainda que atinja tantos alvos, o enunciador desse discurso se mostra sempre um só. Não há diálogos entre os atores, que não assumem personagens definidos. São todos participantes de um encontro na grama de hambúrgueres de que é composto o cenário. Essas pessoas não têm identidade – podem ser qualquer um de nós em discursos ditos de maneira isolada ou em confabulação e sem contrapontos advindos do embate que qualquer diálogo pode trazer. Não há outra visão, quebras ou rupturas na construção dessa mensagem. Isso se confirma também na maneira como os atores dizem o texto – em tom de conversa, às vezes de confissão, de narração. Essa linearidade entra em choque imediatamente com a profusão visual da montagem.

Rodrigo García constrói uma instalação. As artes visuais estão entranhadas no seu teatro. As projeções em vídeo e também em tempo real em proporções gigantescas que nos levam para dentro da tela; os 25 mil pães dispostos no chão; a maneira como a performance dos atores se desprende da realidade. Eles mesmos reinventam os seus próprios quadros sacros ou profanos. Eles são os personagens – mesmo que ausentes de personas definidas – da simulação da vida. Recebem a tinta no corpo como se fossem as árvores que carregam os frutos e são banhadas com inseticidas.

O pão simboliza o sagrado, o corpo de Cristo, mas também a consagração do consumismo, do fast food. A maneira doentia como a nossa sociedade se relaciona com a comida; a crise de alimentos que assola o mundo enquanto a cultura do desperdício é instaurada. As metáforas podem ser claras assim ou nos levar por caminhos desconhecidos, que chegam quanto mais nos distanciamos da obra. A potência está exatamente na possibilidade de reverberações e imagens que a encenação de Rodrigo García nos permite formatar.

As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real; mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo de maneira muito clara e efetiva.

Mesmo que o lugar de espectador seja preservado, somos provocados e desestabilizados o tempo inteiro. Seja pelo cheiro desconfortável dos pães, pelas minhocas colocadas dentro do sanduíche, pela sujeira da tinta azul e vermelha, pelo bolo da comida mastigada que, projetada na tela, nos causa embrulho no estômago e ânsia de vômito.

Quando, por fim, parece que passamos por tudo isso e a divindade bate à porta, não sabemos lidar com ela. E isso, mais uma vez, nos tira do lugar do conforto. O pianista se despe para executar a obra Sete últimas palavras de Cristo na cruz, de Joseph Haydn, mas a mudança de estado no espectador proposta pela música clássica que, inicialmente, nos conforta, também sufoca. E incomoda pensar que ela nos inquieta. Que à estética do Gólgota estamos bastante habituados, a rapidez desconcertante, uma quantidade incomensurável de estímulos, a poluição, a sujeira, a violência. O choque é tão brutal que não conseguimos absorvê-lo e continuamos nos debatendo como se não conseguíssemos sair do Gólgota para o lugar do sagrado – se é que ele realmente existe.

 

Reflexões da perturbação

Metacrítica a partir de Yo No Soy Bonita, de Angelica Liddell, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2016

26 de março de 2014

Angélica Liddell não se identifica como feminista, embora as questões invocadas em sua obra coincidam com a pauta do movimento. A distinção provavelmente está nos modos como a artista espanhola as problematiza. Causa estranhamento, à primeira vista, a postura da performer em Eu não sou bonita. Isso se deve a um discurso margeado por estereótipos do ser-homem e ser-mulher como dois papéis sociais definitivos e associados, respectivamente, ao binômio agressor-vítima, sem escapatória. Contudo, como se disse na ocasião de Escola, do chileno Guillermo Calderón, é preciso desconfiar dos discursos que aparentem uma integridade. E o de Liddell, por mais que brade uma radicalidade, não é menos poroso.

É preciso desconfiar também da performer e de sua construção cênica autorreferencial. Os elementos (supostamente) reais da narrativa e da materialidade da cena deixam de sê-lo quando tomados como componentes de uma poética, ainda que mantenham um apelo e uma força de realidade. A fabulação de um abuso sexual não reverbera com a mesma contundência de um depoimento de abuso que se entenda como real. Um cavalo vivo em cena ultrapassa o simbólico (sem deixar de sê-lo), é uma força da natureza, domesticada só em parte, posto que não obedece a vontade da performer e sua ação comporta o imprevisível – a ameaça do perigo. É com essa sensação do real e sua capacidade de despertar no espectador uma percepção aguçada, urgente, que Liddell joga.

Quando se apresenta como uma mulher indelevelmente marcada por um abuso sexual sofrido na infância, a artista instaura essa zona imprecisa entre real e ficcional e de indistinção entre seu corpo fenomênico e a figura dramática, de modo que o público tende a identificar a figura que se apresenta como a própria Liddell – cujo sobrenome de batismo é outro; este emprestou da verdadeira Alice (Liddell) que inspirou Lewis Carroll. Tomado como real o ato de abuso, está o público diante de uma vítima real e, portanto, o posicionamento que lhe é demandado não se acomoda numa relação palco/plateia ativo/passiva. Ileana Diéguez (2011) observa que “o retorno ao real faz um apelo ao entrecruzamento entre o social e o artístico, acentuando a implicação ética do artista”. A do espectador também.

A performer-atriz Angélica Liddell ocupa então uma posição liminar, no “entre” do tecido cultural, cujas potencialidades previstas por Turner (1988) comportam a outorgação de poder aos fracos, dentro de experiências arriscadas no interstício entre dois mundos. O corpo de Liddell não é significante, mas produtor de presença e de sentidos, articulados num campo de ações concretas, poéticas e simbólicas que permitem a reelaboração simbólica do trauma e o empoderamento daquele antes assujeitado.

Liddell opera na zona do desconforto. O mal-estar é uma chave dramatúrgica importante em todos os aspectos da encenação. Ao público, oferece-o, entre outras formas, na narrativa imagética com que descreve o desejo sexual por crianças, sugerindo à imaginação daqueles que a ouvem imagens geradoras de intenso mal-estar por sexualizar o corpo infantil e deslocar o espectador para a posição do desejante e, portanto, potencial opressor.

A artista transita por territórios tabus também na complexa cena de insinuação sexual ao cavalo. Esse momento deixa latentes ao menos três leituras contraditórias. Há uma relação de poder exercida por Liddell ao portar um corpo que deseja (justamente o que é impedido às mulheres na construção cultural que ela denuncia). Uma relação de impotência diante do agressor (a pequenez da artista-criança-vítima diante cavalo-soldado-agressor). E uma relação de mal-estar que invade a sexualidade feminina na nossa cultura. A impossibilidade de síntese – a coexistência dessas (e outras possíveis) leituras concomitantemente – está na base da força maior que a obra tem: a de plantar angústias e incômodos que a mantenham fermentando na mente e no corpo do espectador dias além.

A domesticação exercida pela cultura sobre o corpo feminino e que o coloca à mercê do desejo doentio de posse e subjugação por parte do macho é alvo de críticas diretas no campo discursivo que expõem as entranhas do funcionamento sociocultural determinante do universo limitado de possibilidades do masculino e do feminino em uma sociedade patriarcal e dicotômica.

Liddell sintetiza essas carapuças da divisão binária das identidades de gênero em dois extremos: à mulher cabe somente ser boa ou má chupadora (a legitimação está no prazer masculino, nunca no feminino); ao homem, ser o mal. Esse discurso extremista se constrói pelo recurso a símbolos que acenem para realidades mais amplas. Dois deles: a fotografia de uma mulher de beleza “padrão” praticando sexo oral remete às imagens publicitárias e pornográficas e provoca em parte do público feminino risos desencaixados, que entram em fricção com o discurso (e Liddell parece buscar essas arestas), apontando para a manutenção da crueldade machista também no comportamento feminino; e a cruz florida, em referência às mais de mil mortes e desaparecimentos (e outros incontáveis casos de estupro) de mulheres em Ciudad Juárez, no México, cenário-símbolo do ódio à mulher. Liddell se volta contra uma sociedade patriarcal que perpetua a violência de gênero e trata os espectadores como cúmplices e agressores – culpados.

A violência autoinfligida pela artista por meio de cortes novamente faz irromper o real em cena. Ao mesmo tempo, a ação pesa como símbolo da imolação praticada contra a mulher historicamente. Há ainda uma possibilidade de leitura psicanalítica (Liddell tem formação em psicologia) que a remeta à atitude masoquista, pela qual a posição de gozo coincide com a posição de submissão na articulação entre erotismo, dor e subjetividade, além de um ato de multiplicação da dor para exercer controle sobre ela. Liddell se aproxima de uma teatralização do excesso, dando extravasamento à violência e exibindo os martírios da carne, para colocar diante do espectador a “evidência espetacular do sofrimento”, como diz Diéguez, oferecendo-lhe a escuridão do trauma.

Na forma hiperbolizada de representação do sofrimento por meio da restauração da violência contra si a cada apresentação de Eu não sou bonita e do discurso extremista sobre o binômio homem-mulher, cabendo ao primeiro palavras de ódio, vê-se que Liddell se afasta do exercício da alteridade rumo à exacerbação do eu: não lhe interessa a voz do “outro” (homem) quando o outro por definição é a mulher. Não há dois sujeitos quando um é assujeitado. A artista busca a confusão entre essas categorias de sujeito e objeto, sugerindo a partir de si a identificação com toda história da violência de gênero. A denúncia do horror imposto à mulher é tensionada até o insuportável à medida que Liddell encena o limite no qual não há saída para o homem além do papel de opressor, nem para mulher além do de oprimida. O mecanismo terapêutico não se direciona à artista, mas ao público, uma vez constituído por Liddell o espelho dessa limitação à qual cabe ao público – não à artista – reagir.

A caracterização com longos cabelos e vestes pretas, a afirmação da feiura e o ódio ao masculino aproximam Liddell ainda da imagem estereotipada da bruxa – aquela ilustrada em livros infantis e perseguida pela Inquisição. Categoria na qual a mulher que não se encaixasse aos padrões culturais vigentes poderia ser aprisionada. Eu não sou bonita é uma tomada de posição: a escolha não pelo imaginário da princesa, destituída de erotismo e de poder, mas pelo da bruxa, portadora de um poder acima dos domínios dos homens. Essa leitura, como observou a crítica Daniele Ávila, permite tomar “as manifestações de ódio e as acusações proferidas na cena como parte das invocações de um gesto de bruxaria”, que “também se dão em um plano simbólico-performático”. Liddell agencia outros saberes além dos discursivos e terapêuticos, dominados num contexto cultural logocêntrico e patriarcal. Sua explosão das paredes que limitam o ser mulher e o ser homem (dois componentes do mesmo binômio, afinal) passa pelo recurso às forças do corpo. Simultaneamente, uma presença imanente e uma presença transcendente.

Ps. A MITsp trouxe, entre outras reflexões tantas, a experiência redescoberta do teatro como acontecimento. Enquanto o crítico Luiz Fernando Ramos reafirmou a importância de que a crítica veja além dos “acidentes” da apresentação, lançando um olhar sobre o espetáculo que constitua uma história do teatro, há de se considerar que é justamente no acidente que o teatro se faz, ou seja, não existe na idealização prévia ou posterior do que o espetáculo deveria ser, mas somente em seu acontecer num tempo-espaço de encontro com o espectador.

Assistir ao episódio dois de Bem-vindo a casa num grupo de 15 pessoas das quais a maioria não viu o primeiro episódio transforma o convívio e, consequentemente, a experiência. Assistir ao espetáculo Eu não sou bonita com uma interrupção em seu decurso altera também a experiência, portanto, o espetáculo. Pode-se, quiçá, projetar o que seria o mesmo espetáculo no campo das ideias. Mas a percepção se dá no mundo físico. A irrupção do real pela intervenção dos manifestantes pró-animais, que, por minutos, coabitaram o palco com Liddell, sendo inicialmente aceitos sem surpresa pela artista, reforçaram o caráter de realidade do que acontecia sobre o palco e a impressão de que era a própria Angélica quem agia, ressaltando o corpo fenomênico sobre o corpo representacional. Outro efeito, provavelmente mais grave do ponto de vista da expectação, foi a quebra de um desenho de forças seguido pela artista, que afeta justamente a dimensão não-semiotizável da experiência teatral, fundamental em um trabalho como Eu não sou bonita.

Tragédia da Imaginação

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Hamlet, da companhia lituana OKT, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

19 de março de 2014

Hamlet, da companhia lituana OKT, principia com uma pergunta: “Quem é você?”, variação do encenador Oskaras Koršunovas para a frase da peça de William Shakespeare “Who’s there?”. O questionamento é feito pelos nove atores da trupe que, de costas para a plateia, se miram no espelho. Vão do sussurro ao grito, num crescendo. O público também está refletido. O cenário é um camarim com bancadas móveis que se transfigura no reino da Dinamarca. O sistema de espelhos compõe ângulos reveladores, como o do pai de Hamlet fantasma (Dainius Gavenonis) que se olha e vê Claudius (que ele matou) dentro de si, numa alusão ao fratricídio Caim e Abel.

O diretor não inventa Elsinore no palco. Desvia do espaço vazio e compõe um local onde são sobrepostas as máscaras (ou maquiagem) como tradução do presente. Nesse metateatro, Elsinore é criado na imaginação do espectador. Hamlet traça esse enfrentamento com os meios teatrais a partir de sua consciência. Nesse jogo, busca se apossar da consciência do rei, o fantasma, o Old Hamlet, para fazer justiça e do tio Claudio para executar sua vingança. Mas como manter-se humano neste mundo desumano de Elsinore? Essa pergunta ecoa nos jogos de palavras e nas redes de intrigas.

Hamlet de Koršunovas é uma tragédia da imaginação. Isso é reforçado pela expressão Mind’s eye utilizada por Hamlet, quando diz que parece que está vendo seu pai e acrescenta: “com os olhos da alma, Horácio” (in my mind’s eye, Horatio). O protagonista opera uma memória visual ou imaginação. O encenador seduz o público para a “ratoeira” da imaginação de Hamlet, imprimindo camadas ou apagando fronteiras do teatro, o espaço da ação, atores e papéis. A música de Antanas Jasenka tem um desempenho fundamental.

Há algo de podre no Reino da Dinamarca e um enorme rato branco que mostra a cabeça e pousa a cauda nas mesas de maquiagem. O roedor volta a aparecer em vários momentos da montagem. O mundo é um teatro em que se finge e mente e essa encenação de Koršunovas não chega a iluminar possíveis lugares ainda obscuros de Hamlet. Mas traz em si acertos de conta com o passado e muitas dúvidas com relação ao futuro. Tem as referências da cultura pop e as potentes interpretações dos atores. E chama para um debate sobre camadas de representação em fogo brando.

O famoso “Ser ou não ser” é dito duas vezes pelo ator Darius Meškauskas. Na primeira vez ele joga e mente como “ser” melancólico. Na segunda vez, furioso, diante do “não ser”. Oskaras Koršunovas insiste com seus conjuntos de imagens sobre o tema do artifício que a realidade não existe mais. Apenas fragmentos dela estão espalhados e refletidos em vários espelhos.

 

Cinematografia da realidade teatral

Foto: MITsp/divulgação
Foto: MITsp/divulgação

Crítica  do espetáculo Cineastas, de Mariano Pensotti, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

15 de março de 2014

A certa altura do espetáculo Cineastas, a declaração de um dos personagens saltou aos ouvidos: “o cinema é o ser humano fazendo o tempo parar”. Enquanto no cinema o instante se deixa capturar e reproduzir pelo aparato tecnológico, no teatro há mais coerência em dizer que ele é experimentado em conjunto. Por isso mesmo, a característica da efemeridade mostra-se, como sabemos, uma das mais intrínsecas à atividade teatral. Atores e espectadores estão em busca de uma vivência compartilhada, da fruição de pulsões e desejos, que não se dão numa via de mão única: acontecem tanto do palco para a plateia quanto vice-versa, mas significam efetivamente tempo, acontecimento e, geralmente, espaço divididos.

Em Cineastas, o dramaturgo e diretor argentino Mariano Pensotti traça paralelos e similitudes entre o teatro e o cinema e problematiza os limites entre realidade e ficção, só que utilizando, de fato, sempre a chave da ficção. A trama apresenta as vidas “reais” de quatro diretores de cinema e, concomitantemente, os filmes nos quais eles estão envolvidos. A dicotomia entre criação e realidade se estabelece a partir das representações dos filmes postos como obras de ficção quando, na realidade, tudo é simulacro do real.

As histórias se desenrolam simultaneamente e com a agilidade da linguagem audiovisual. As ações são apresentadas em planos distintos. A cena, aliás, propõe o mesmo recorte imagético do cinema nos enquadramentos bem definidos. Tudo está restrito ao que cabe naquele retângulo e, com isso, a questão: quais são os recortes que fazemos da realidade priorizando este ou aquele viés?

Nas duas telas, as narrativas exibidas se influenciam e são postas em fricção o tempo inteiro – até que ponto “realidade” e ficção podem se misturar e relacionar? De que forma esses conceitos podem ser intercambiáveis? Um dos cineastas, por exemplo, decide mudar o roteiro do filme depois que descobre uma doença terminal. Outra é afetada porque está filmando um roteiro em que um desaparecido surge anos depois desestabilizando a família; e ela enxerga ali a própria história, já que o pai dela também sumiu.

A dramaturgia está apoiada ainda nas contradições desveladas no cotidiano, entre os papéis assumidos diariamente nas diferentes situações e o que realmente somos ou gostaríamos de ser. Um dos diretores trabalha no McDonald´s, mas se dedica a rodar um filme em que teoricamente destruiria a imagem da multinacional.

Cineastas solicita o tempo inteiro que o espectador esteja acompanhando as sequências e os cortes propostos pelo diretor, retomando a narrativa de onde ela foi interrompida, como as diversas tramas em que nós mesmos, plateia, estamos envolvidos. A história de Pensotti normalmente tem um narrador, onisciente, que assume a condução da trama quando dispõe do microfone, e aí nos revela o que se passa, mesmo que os outros dois atores, por exemplo, estejam conversando. Não interessa o que dizem; aquele narrador já é capaz de traduzir não só o que está acontecendo “de fato”, como de nos contar em tom confessional o que os personagens estão pensando, os dilemas enfrentados, como se sentem. Logo depois o diálogo entre os dois pode ser retomado e virar novamente o foco principal da cena.

As possibilidades de espelhamento e construção de interferências entre realidade e ficção representadas dentro da peça nos inquietam também acerca do quanto nos resignamos diante das condições dadas pela efetividade do cotidiano.  E, ao mesmo tempo, nessa perspectiva, do quanto podemos ser afetados e influenciados pela arte e, especificamente, pela experiência partilhada do teatro. Como se, sendo ou não capazes de lidar com a realidade ou suas reconstruções do dia a dia, o teatro sempre fosse um refúgio possível.

Pão e tinta

Crítica da peça Gólgota Picnic, de Rodrigo García

MITsp 2014

 

Gólgota Picnic, de Rodrigo García, oferece ao espectador um banquete, uma cornucópia de imagens e ideias, cuja abundância solapa qualquer possibilidade de síntese já nos primeiros vinte minutos de espetáculo. Tentar descrevê-lo ou resumi-lo em poucas palavras é correr um sério risco de chafurdar em platitudes, mas o esforço de tentar falar de algo de que não podemos dar conta é inevitável quando se pretende o exercício crítico.

Tomando o título como ponto de partida, podemos apontar duas questões centrais do discurso da peça. A propósito, valeria analisar, em um texto mais longo, os diferentes regimes da fala monológica, que transita tanto pelo discurso proferido à plateia quanto por momentos que remetem à confissão ou à narração. As duas questões centrais me parecem ser, por um lado, a narrativa bíblica com suas imagens de terror, sendo o episódio da crucificação no Gólgota a epítome disso, e, por outro, a relação doentia que a nossa sociedade tem com a comida. As duas ideologias, que são alvo das críticas explicitadas com refinado humor e perspicácia no texto falado, são aproximadas por sua força de propaganda, tendo o pão como imagem de encontro dos dois universos – o pão que é a base da fast food e um ícone da propaganda nas imagens de hambúrgueres; o pão multiplicado pelo milagre de Jesus Cristo. A cenografia dá a ver essa ideia de uma maneira surpreendentemente literal: o chão do palco é coberto por uma quantidade imensa de pães de hambúrguer, que desenham o chão do Gólgota como numa imagem pontilhista.

Foto: Ligia Jardim.
Foto: Ligia Jardim.

A arte também é alvo de questionamentos por suas contradições, pelo fato de a linguagem também ser usada na arte para embelezar o terror ou para entreter e nos distrair do que nos falta. Anish Kapoor, que é textualmente mencionado, é acusado de colorir a dor. Instituições como o Louvre e diversos museus da Europa também são trazidas à tona. “Devem ser queimadas”, diz o texto, em uma daquelas frases divertidamente cretinas que revoltam os que não têm humor. O espetáculo menciona artistas e obras do Renascimento assim como mestres primitivos flamengos, que representaram o calvário com sua crueldade sanguinolenta, ao mesmo tempo em que faz referências ao cinema de terror norte-americano, inserindo a dicotomia arte/entretenimento no seu banquete discursivo.

Como numa tentativa de sacudir a nossa já assimilada apatia diante das atrocidades que vemos todos os dias, Gólgota Picnic apresenta algumas imagens de grande impacto. Da exposição asquerosa do bolo alimentar na sua incômoda semelhança ao vômito até a belíssima imagem da atriz flutuando nas nuvens com o corpo revestido da imagem de Cristo, com seus cinco estigmas gritando vermelho sobre o fundo azul do céu e do mar. A sensualidade de peles e pigmentos também é de grande apelo visual e tátil. E o santo sudário de um corpo inteiro de tinta me fez pensar na relação de fé e devoção que podemos ter com as obras de arte.

A mudança da primeira para a segunda parte desconcerta o corpo. Depois de um bombardeio de referências, de imagens de forte apelo visual e de textos que ativam o pensamento e a reflexão a respeito de temas concretos, o corpo e a mente precisam se afinar para a lida com um regime de fruição absolutamente distinto. A peça de Haydn, nas mãos de Marino Formenti, incrustada naquele cenário desolado, ganha uma carga emotiva de tirar o fôlego. É como se o espetáculo nos convidasse a catar a aura da música no lodaçal de pão de hambúrguer da vida urbana contemporânea.

 

As sete primeiras palavras pós-calvário de Gólgota

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Gólgota Picnic, de Rodrigo García, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

14 de março de 2014

Introdução.

É de tirar o fôlego, embrulhar o estômago, aflorar os nossos instintos de manifestante em tempos de passeatas midiáticas, quando juntamos tudo no mesmo bolo – gritamos contra a corrupção, pedimos por melhorias nos transportes e aproveitamos para falar de saúde, educação, sem nos esquecer de emitir opiniões pelo Facebook e postar a foto com filtro no Instagram. Enquanto um protesto fechava o trânsito na Avenida Paulista e ativistas subiam ao palco por conta do cavalo utilizado na performance Eu não sou bonita, de Angélica Liddell, a companhia La Carnicería Teatro apresentava Gólgota Picnic no Sesc Vila Mariana, dentro da programação da MITsp.

Público caído.
O lugar de espectador contemplativo é desestabilizado. Seja pelo cheiro dos 25 mil pães de hambúrguer que compõem a instalação cênica, pelas minhocas colocadas no sanduíche, pela tinta azul e vermelha aplicada como veneno nos corpos dos atores. Mas esse espaço não chega a ser deslocado. Mesmo com uma obra que desperta tanta polêmica, a opção de atingir só até determinado limite estabelece uma falsa ilusão de segurança, de barreiras não rompidas. Por que, afinal de contas, quem somos nós, os espectadores? Que lugar ocupamos no rosário de críticas desfiadas à sociedade de consumo?

Sobre McDonald’s e cadeiras de piquenique.
Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García não se estabelece, mas transita pelos limiares do panfletário, da construção calcada em clichês e superficialidades. Mas, ao mesmo tempo, numa linguagem virulenta, o acúmulo de signos constrói a potência do discurso cênico que se rebela contra o estabelecido da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: o que queremos é participar do piquenique e satisfazer os nossos próprios desejos.

Toma que o calvário é teu.
As diversas referências às artes plásticas, Rubens, Giotto ou Antonello da Messina, nos fazem compor os nossos próprios quadros sacros e profanos a partir da fruição da performance dos atores, do texto, das imagens projetadas no palco, da música. A desconstrução do símbolo de Jesus é a nossa própria demolição como sociedade que deu errado. O calvário de Jesus agora é compartilhado com o público.

O pão espetacularizado.
É da sociedade de espetáculo, termo criado e problematizado por Guy Debord, que fala sobre relações sociais mediadas por imagens, da produção e do consumo de mercadorias, que a encenação de Rodrigo García, argentino radicado na Espanha desde o fim da década de 1980, se alimenta para criar desdobramentos que transbordem o palco. O pão, alimento símbolo do corpo de Jesus para os cristãos, é dessacralizado, perde o seu valor e mostra a fragilidade do próprio corpo.

O corpo coberto por tintas e significados.
As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real, mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo.

A calmaria da redenção?
Uma última e rápida consideração sobre Gólgota Picnic diz respeito à mudança de estado no palco e na plateia que é proposta pela música de Joseph Haydn. Depois de tantos estímulos, da rapidez midiática, a música nos consola no primeiro momento. Refúgio pós-trauma do calvário performático da companhia espanhola. Mas, depois, é como se o tempo de respiro fosse longo demais para um público que voltará ao Gólgota assim que cruzar a porta do teatr

Uma mulher (não) é uma mulher

Crítica de Eu Não Sou Bonita, de Angélica Liddell, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2014

14 de março de 2014

A performer espanhola Angélica Liddell habita o palco carregada de memórias e simbologias em Eu não sou bonita. O espetáculo foi criado sobre material autobiográfico, a partir do qual ela elabora uma poética da agressão. Desde uma perspectiva íntima compartilhada, a artista cria um espaço extracotidiano de expressão verbal e corporal contra a violência de gênero. Assume uma postura de enfrentamento da construção cultural do ser mulher, que limita a experiência do feminino, denunciando violências simbólicas e físicas castradoras do desejo e da liberdade.

A afirmação-título de recusa à beleza surge como negação ao imperativo da submissão ao olhar masculino como legitimador. Angélica coloca o público diante da escuridão do trauma. Em sua poética, o erotismo é um elemento essencialmente gerador de mal-estar, tanto quanto a violência autoinfligida e a direcionada ao homem, discursivamente.

É justamente no campo discursivo que Liddell mais abertamente depõe sobre uma condição feminina enfraquecida. A corporeidade é desempoderada seguindo uma concepção binária de mente/corpo, associada ao macho/fêmea, com desprestígio para os segundos termos constituidores dos pares. Os corpos femininos, nesse tecido cultural, carregam distintos tipos de controle – a anulação da presença física; a reificação; a repressão disciplinadora; e a escravidão ao padrão estético dominante são alguns dos apontados pela pesquisadora Elódia Xavier, em Que Corpo É Esse?.

E que corpo é esse que Liddell performa? Ela faz-se presente como um corpo violento, que urra, berra, corta-se, queima-se. Seu corpo é palco da contestação sociocultural. Feito objeto pelo gesto violento do outro, responde como sujeito e objeto de sua própria violência, desfazendo a dicotomia. A presença de um cavalo em cena, mais do que um elemento biográfico e de irrupção do real, traz o contraponto de uma natureza supostamente ingênua e alheia a condicionamentos culturais.  Natureza e cultura: outro binômio a explodir.

O mal-estar maior gerado pelo espetáculo, contudo, está no aprisionamento do corpo feminino à incessante restauração do trauma vivido. O lugar de onde Liddell fala é o da vitimização masoquista (portadora de uma camada de prazer) e do ódio (que implica um bloqueio da alteridade). Um lugar de impotência. Mas qual outro lugar de empoderamento seria possível? Se no campo discursivo a vitimização e o ódio impõem um limite, na dimensão da produção de presença outras afetações se instalam. Há, sem dúvida, uma potência sensível na presença de Liddell que produz um desenho de forças de intensidades variáveis. Contudo, a intervenção de ativistas pró-animais na sessão de estreia na MITsp interrompeu o fluxo dessas forças.

Ainda assim, ao resistir a uma apreensão totalizadora (cuja força continua atuando sobre o espectador tempos depois da fruição, como um cavalo indomado), a experiência do paroxismo da vitimização e do discurso do ódio, em tensão com a materialidade daquele corpo, proporcionada pelo espetáculo, lega ao espectador um saturamento radical do imaginário, que acena para a impossibilidade da manutenção desse status quo. Este é um mal-estar que o espectador pode abafar, restaurando o conforto, ou deixar que lhe tome o corpo de modo que se lance ao enfrentamento da falta de saídas com que a própria Liddell aprisiona seu discurso, para a criação de outros possíveis ao ser feminino.

E ao ser masculino. O aprisionamento cultural do ser homem é algo ao qual o discurso de Liddell não alude. Mas, justamente por sua cegueira, apela ao espectador que reaja. O ato performático, por sua característica de restauração do comportamento, serve ao trauma. Mas também é saber privilegiado da explosão das dicotomias. E só na explosão da dicotomia há liberdade.

Sem fígado e sem fogo

Crítica da peça Anti-Prometeu, de Şahika Tekand

MITsp 2014

 

Em Anti-Prometeu, espetáculo da encenadora Şahika Tekand, da Turquia, os atores se movimentam e falam alternada e simultaneamente, obedecendo a uma gramática regida pelos comandos de som e pela dinâmica do dispositivo cenográfico, uma espécie de tabuleiro de luz. Dividida em três partes, a dramaturgia apresenta diferentes momentos da lida destes jogadores-peões com as demandas impostas por estímulos externos. Em um ritmo vertiginoso, o jogo ganha cada vez mais intensidade, desafiando a prontidão dos corpos na cena e das mentes na plateia.

Como em qualquer jogo, as metas e regras fazem parte de um pacto estabelecido entre as partes. O que há de trágico no homem contemporâneo, como apresentado no espetáculo, é a impossibilidade de rever os termos do pacto: a cada jogada, ele faz o que pode. O ritmo da vida urbana atual não abre espaço para o questionamento das regras, muito menos para uma revisão das metas.

Foto: Marlon Marinho.
Foto: Marlon Marinho.

Uma questão interessante a ser pensada do ponto de vista da poética da cena é que o estatuto do texto também é parte do jogo. Na segunda parte, os atores começam a responder com movimentos combinados a estímulos sonoros específicos. Por exemplo: quando os participantes que ficam na mesa de som ao fundo do palco dizem “um”, o ator que está em um quadrado iluminado fica de pé; quando o comando é “dois”, ele se vira para a direita; quando é “três”, ele apoia um joelho no chão. São cerca de dez comandos sonoros que fazem cada ator deitar, ajoelhar, levantar e virar freneticamente. (O fato de estes participantes que emitem comandos estarem em um patamar mais elevado evidencia a verticalidade da relação hierárquica.) Quando se acende o quadrado de luz sobre o qual o ator está, ele deve começar a falar, ao mesmo tempo em que obedece à movimentação. Assim a fala é articulada como movimento, como uma tarefa física, não apenas como instrumento para a expressão de um discurso. A verbalização é um esforço a mais no virtuosismo das atuações.

No entanto, o conteúdo da fala não é aleatório nem vazio; talvez seja até ilustrativo, na medida em que os atores comentam sua condição. Se não me engano, há em algum momento uma referência a Io (personagem da mitologia grega que enfrentou uma longa jornada de esforços e provações para reaver sua condição humana). Diante desse ponto, faz-se necessário pensar a legenda, um elemento que não faz parte do espetáculo na sua criação original, mas que passa a ser uma questão estética na situação de apresentação em um país de outra língua. A relação com o texto legendado é completamente diferente, porque exige do espectador um movimento que pode ser cansativo a ponto de levar a desistência. Se ele desiste da legenda, o texto passa a ser apenas uma consequência do movimento da fala, formando uma paisagem sonora abstrata – que não deixa de ter a sua graça.

A presença da legenda também exclui a possibilidade do espectador acreditar que, em alguma medida, o jogo acontece ao vivo, que os atores estão respondendo a comandos no calor da hora. A fala também poderia parecer fragmentada pelo jogo físico, mas a legenda revela que sua intermitência é prevista e ensaiada. Enfim, a legenda evidencia o fato de que se trata da representação de um jogo, não do acontecimento de um jogo performativo de fato.

Do ponto de vista temático, a peça nos lembra o quanto nossa vida cotidiana pode ser parecida com a situação daqueles corpos que apenas respondem a estímulos, agarrados às suas cadeiras-rochas. Como Prometeu, oferecemos nosso fígado aos abutres todos os dias. Mas sem ter feito nada parecido com apresentar o fogo à humanidade.