Arquivo da categoria: Críticas

O jogo democrático e suas contradições

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Ça Ira, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MIT 2016

O ano é 1789, mas poderia ser 2016. Estamos na França do rei Luis XVI, mas poderia ser em outro contexto, e assistimos a partir de múltiplos ângulos a conflitos de interesses que revelam divergentes visões de mundo, assim como deixam ver as sucessivas contradições que permeiam nosso comportamento político e, de igual modo, o comportamento político daqueles que, idealmente, deveriam nos representar. Em Ça ira, obra realizada pelo autor e diretor francês Jöel Pommerat em colaboração com a Compagnie Louis Brouillard, visitamos ao longo de três atos diferentes instâncias de um emergente sistema democrático no qual o povo, mesmo que ainda submetido à Igreja e eventualmente encantado com a mítica figura do rei, começa a reivindicar direitos e a questionar privilégios.

Iniciada com um pronunciamento formal do primeiro ministro francês sobre a eterna necessidade de se aumentar a receita do Estado, a encenação rapidamente ganha contornos mais complexos, convertendo, por vezes, o teatro – aqui compreendido como ambiente que inclui palco e plateia – em uma grande assembleia onde novas – e velhas – vozes surgem a cada instante. Desse modo, enquanto algumas cenas são vistas “pelo buraco da fechadura”, outras inserem os atores em situações de grande proximidade com o espectador, convertendo-nos em silenciosos integrantes dessa mesma assembleia. Nesse trânsito entre faces públicas, semipúblicas e privadas do sistema democrático, constitui-se, pouco a pouco, uma cena polifônica, difusa e por vezes caótica, marcada por vozes e visões dissonantes que claramente ecoam sobre o momento político e social que, como brasileiros, atualmente experimentamos. “Quais são as prioridades desse país?”, ouve-se, em certo ponto do espetáculo, sem que alguma resposta se ofereça.

Também a visualidade do espetáculo, não por acaso, nos parece bastante familiar. Apropriando-se de estruturas espaciais relacionadas a situações sociais concretas e, ainda que através de mediações, bastante conhecidas pelo espectador, tais como uma reunião oficial, um pronunciamento público e a própria assembleia de deputados, o que se tem em boa parte de Ça ira são ternos que circulam aqui e acolá, quase sempre movidos por homens brancos e discursos que não tardam a revelar suas contradições. Ainda que numerosos personagens e, portanto, o próprio espetáculo transitem por diferentes ambientes e contextos, uma atmosfera de inércia, repetição e esvaziamento por vezes toma conta da cena, dando a ver um claro engessamento das estruturas democráticas, frequentemente sabotadas por aqueles que apenas desejam manter-se no poder, seja na França do século XVIII ou no Brasil atual.

Conduzido por três grupos distintos, ali associados à Igreja, à nobreza e ao povo, os debates a que assistimos em cena colocam em disputa uma visão materialista da realidade, permeada por problemas concretos como a fome, a guerra civil e a fundadora desigualdade, e uma visão católica, segundo a qual tal desigualdade seria um pressuposto a ser respeitado e aceito como fato natural. Apoiado em conceitos subjetivos como o bem, o belo e o sagrado, este segundo grupo, ali representado pela Igreja e a nobreza, recorrentemente desqualifica as questões colocadas pelo primeiro, constituindo declarada recusa ao mundo real e suas questões. Nesse sentido, enquanto uns entendem a justiça como mera execução da lei, outros questionam a lei e associam a mesma justiça a verdades concretas, reconhecíveis por todos.

Imersos neste infindável debate, gradativamente nos reconhecemos, de dentro da plateia, como integrantes de um mesmo grupo social. Desprovidos de privilégios como a voz e também a ocupação dos espaços de voz, participamos passivamente do jogo democrático. Ainda que vez ou outra nos identifiquemos com visões e conflitos postos em cena, somos conduzidos a uma situação em que a atitude silenciosa que nos é reservada se torna cada vez mais angustiante. Silenciosos, assistimos a debates que muito nos interessam, mas dos quais somos frequentemente excluídos, tocando em temas como o monopólio da violência pelo Estado, a dimensão utópica dos direitos humanos e o absurdo dever de respeitar um sistema social que, a partir de estratégias mais ou menos evidentes, nos conduz ao apaziguamento e nos submete aos mandos e desmandos de Deus, do Estado e até mesmo da propriedade privada.

Cúmplices silenciosos de uma atitude cínica e de discursos esvaziados que carregam em si claras contradições em relação às práticas daqueles que os proferem, testemunhamos a exaustão de um sistema cujas instituições inegavelmente vêm se deteriorando ao longo do tempo. Como se voltássemos às origens desse sistema exausto que hoje nos governa, somos convocados a refletir sobre a persistência histórica de estruturas políticas que muito pouco se transformam, convertendo, por exemplo, a antiga nobreza em uma classe de governantes que, para além dos privilégios de outrora, têm, hoje, suposta chancela do povo em relação às decisões que tomam em salas, gabinetes e assembleias. ”Vocês, que nunca subiram aqui, um dia vão se arrepender”, escutamos, mais adiante, em novo apelo para que o silêncio manifestado na sala de teatro não se reproduza nos espaços políticos e sociais que ocupamos do lado de fora.

Publicado no site da MITsp em 5 de março de 2016.

http://mitsp.org/2016/o-jogo-democratico-e-suas-contradicoes/

O afeto que aprisiona

Foto: Estúdio Zut
Foto: Estúdio Zut

Crítica do espetáculo Cinderela, de Joël Pommerat, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2016

4 de março de 2016

Desde criança, quando ouvimos a história da Cinderela, enxergamos a suposta superação como foco da fábula. A garota que era maltratada e humilhada pela madrasta e por suas duas filhas diante da omissão do pai consegue finalmente livrar-se de todo sofrimento quando encontra o seu príncipe no baile. O enredo, mais do que conhecido por todos, ganhou outras possibilidades na versão do dramaturgo e encenador francês Joël Pommerat, apresentada pela Compagnie Louis Brouillard na abertura da 3ª edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) na última quinta-feira (3), no Auditório Ibirapuera. Uma questão que merece ser pontuada inicialmente, no âmbito de um festival internacional, é a importância das legendas, que continham erros de português e uma linguagem que parecia mais coloquial do que a peça propunha.

Mas vamos adiante na encenação: se os irmãos Grimm ou até mesmo Walt Disney trataram da morte da mãe de Cinderela de maneira muito episódica, apenas como disparadora da ação, Pommerat consegue traçar outros contextos, deixando a história mais psicológica e atraente não só para crianças e adolescentes, mas para os adultos. Na sua versão, Cinderela é Sandra, uma garota comum, de cabelos desgrenhados e mochila nas costas, que não consegue entender as últimas palavras da mãe no leito de morte. Acredita que a mãe tenha dito para que pensasse nela, a cada cinco minutos, para que ela não morresse de fato. O amor e a devoção de Sandra à mãe, o medo de traí-la, não cumprindo o seu último pedido, fazem com que Sandra caia numa armadilha, enveredando-se por meandros dentro de si mesma, deixando-se aprisionar pelo afeto carregado do peso do medo, da culpa, da dor. Pommerat constrói uma personagem que se abandona; que, por exemplo, aceita as tarefas domésticas sem reclamações não por seu excesso de bondade, mas porque não se importa consigo mesma. Ou não trava um relacionamento com o pai porque não vê possibilidade de superação de uma realidade. Mesmo diante de uma suposta cumplicidade com o pai, quando ele fuma na companhia dela e não da madrasta, só há conformação nessa relação e não interação, diálogo, questionamento, vivência. Esse “autoabandono” se desdobra em diversas situações, como quando a madrasta faz um discurso sobre como Sandra está velha e descuidada.

As primeiras cenas desta Cinderela são sombrias, escuras.Na casa em que vive com a família, Sandra não vai alimentar os pássaros, cantando feliz, enquanto eles a ajudam nas tarefas, como no filme; aqui o cenário é diverso: a “princesa” carrega com as próprias mãos os pássaros que morreram ao se chocarem contra as paredes de vidro da casa. O sofrimento de Sandra é evidenciado na noite em que passa sozinha no quarto do sótão, sem janelas. A cenografia do espetáculo, composta em boa parte através de projeções, transmite essa confusão interior de Sandra, seu estado de espírito, ao mesmo tempo em que noutros momentos constrói realidades paralelas, como a casa de vidro ou as paredes que vão tendo estampas diversas.

Se o contexto psicológico é carregado e o relógio que Sandra tem no pulso toca insistente para lembrá-la de não esquecer a mãe, Pommerat brinca, com sarcasmo, ironia e humor, não se esquecendo de alimentar a identificação da fábula pelo espectador. Há alguns caminhos diretos: por exemplo, a madrasta e as irmãs continuam sendo figuras estranhas, feias e desengonçadas, mas Pommerat não se prende a isso, vai muito além. Nesse sentido, o autor e encenador tem na personagem da madrasta um dos grandes trunfos da montagem, enriquecendo as chaves de discussão abertas pela peça. A madrasta possui uma visão equivocada de si mesma, principalmente no que diz respeito à sua aparência física. Fica lisonjeada com os falsos elogios de que ela parece irmã das próprias filhas e se ilude com a possibilidade de que o príncipe se apaixone por ela e não pelas filhas.

No viés da desconstrução, ou mesmo do embaralhamento de alguns estereótipos tão comuns aos contos de fadas, o príncipe neste caso é feio, inseguro e também sofre com a ausência da própria mãe. No decorrer da montagem, alguns elementos deslocados, que fogem ao estabelecido a priori, vão dando um caráter muito mais instigante à peça, mas sem que ela perca a capacidade de fazer rir ou emocionar. Nesse mesmo âmbito, realidade e sonho, idealização, são dimensões questionadas pela encenação. Não podemos dizer que é exatamente uma experiência radical de reescrita desse texto, já que no espetáculo de Pommerat os elementos conhecidos do público, responsáveis por uma identificação direta com a história, estão todos lá. Ainda é a história da mocinha, mas aqui menos frágil e com nuances que a deixam mais interessante.

Das narrativas no teatro e das narrativas do teatro

Crítica do espetáculo Cinderela, por Daniele Avila Small (Questão de Crítica/DocumentaCena)

MIT 2016

 

Voltar-se sobre si mesmo é procedimento comum ao teatro. Os grandes clássicos, que formam o teatro, são sempre revisitados pelos artistas – dos mais tradicionais aos que trabalham para inventar novas formas. Em certos casos, o que motiva os artistas é a ideia de inserir-se na história do teatro com um desempenho memorável de um grande papel ou com uma encenação eficaz. Nesses casos, o resultado costuma ser o do simples acúmulo. No entanto, em outros casos – mais raros -, a montagem de um clássico se dá porque alguém tem uma hipótese sobre aquela narrativa, um olhar que não apenas continua, mas que reinsere aquele texto no mundo e que faz o teatro encontrar a si mesmo na sua história, costurando uns fios no seu tempo.

Recontar as narrativas é procedimento comum ao ser humano. As grandes histórias, que nos formam, são perpetuadas pelo teatro, pelo cinema e pela literatura. E, no caso dos contos infantis, elas também são repassadas pela transmissão oral, que infiltra nas crianças, com as narrativas, estruturas de pensamento e de sentimento – muitas das quais, a duras penas, mais tarde vamos tentar nos livrar.

Considerando a montagem de Joël Pommerat, recontar Cinderela não é repetir Cinderela. Diante do espetáculo, cabe a nós espectadores nos perguntarmos que hipóteses tem o espetáculo sobre essa narrativa. E que hipóteses podemos formular a partir do que vimos. Podemos nos perguntar, por exemplo, que estruturas profundas identificamos na Cinderela que temos em mente e como estas estruturas são ou não são desconstruídas na peça.

A Cinderela padrão é uma personagem sem complexidade, porque sem foro íntimo, que passa da infelicidade à felicidade por fatores externos e por uma ideia cristã de merecimento, sob a qual quem sofre e é humilde em algum momento vai ser recompensado e feliz. A mensagem para as meninas é: fique em casa, faça o trabalho doméstico, ature a família, mesmo que não tenha por ela qualquer sensação de pertencimento, porque, um dia, um fator externo vai acontecer e a relação com um homem vai trazer felicidade. Além disso, todas as mulheres do mundo (a fada não é do mundo) ou te abandonam ou querem o seu mal.

A Cinderela de Pommerat tem interioridade: um passado e um sentido (mesmo que torto e fruto de um mal-entendido). As provações a que se submete são, em larga medida, autoinfligidas: ela é corresponsável por suas mazelas. O fator externo mágico é uma falácia: a fada não funciona como fada, mas como amiga. Ou seja, o que vem tirar Cinderela da confusão mental e do autoconfinamento é a amizade entre mulheres. O homem que ela vai amar é tão perdido e tem tantas neuroses e traumas quanto ela e, por mais legal que seja a relação que eles vão ter, este não é o telos, a finalidade, das suas vidas.

As subversões na trama, como o chiste com o sapato, a postura meio blasé da menina, a cena do grande momento entre o casal, em que eles estão dançando sozinhos-juntos e não fundidos no élan de um beijo romântico de novela, cada um desses aspectos poderia ser desdobrado em ótimas discussões. O autoengano da madrasta, por exemplo, que é tão cômico em um primeiro momento, mas tão triste e tão comovente com o desenrolar da situação, mereceria uma análise à parte. O trabalho de cada ator, o engenho dos elementos de cena e as operações dramatúrgicas do autor-encenador também poderiam ser destacadas e desenvolvidas em uma crítica feita com mais tempo e mais espaço. Mas todo o trabalho formal da construção do espetáculo converge para as questões estruturais e temáticas da narrativa e nos faz pensar sobre os seus temas.

O pulo do gato está justamente no fato novo da fábula: o efeito das palavras da mãe em seu leito de morte.

Por um lado, somos todos (meninos e meninas) assombrados pelas palavras de nossos pais. Com isso, a peça desliza do mito feminino que nos persegue para os terrores da infância que sobrevivem na mente adulta. Mas, para além disso, a fábula é toda calcada na falha da escuta, no mal-entendido, no sentido de mal-ouvido. A passagem da infelicidade para a felicidade de Cinderela de Pommerat vai do não saber escutar o outro ao ser capaz de escutar, finalmente, o outro.

O teatro não é simplesmente para se ver, mas também e principalmente para se escutar – é na relação entre fala e escuta que está sua origem mais arcaica. Assim, faz sentido que, por mais que a visualidade espetacular norteie muitas criações contemporâneas, a narrativa sempre bate o pé na porta para encontrar o seu lugar. É sintomático da atualidade da programação da MITsp que essa terceira edição se abra com espetáculo tão exemplar da força mítica, ancestral e telúrica da reinvenção da narrativa no teatro.

 

 

Contra o feminicídio, por todas nós

Foto: Roderick Steel
Foto: Roderick Steel

Crítica da performance Para Aquelas Que Não Mais Estão, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

29 de dezembro de 2015

Há muito pouco tempo, questões cruciais da nossa sociedade, como violência contra a mulher e racismo, estavam colocadas dentro de um espaço de penumbra. A imagem que vem à mente neste momento de escrita é que funcionava mesmo como se um voal, daqueles fininhos e que deixam entrever o outro lado, envolvesse tudo que não poderia ser realmente dito, gritado, urrado. Mas todos, de alguma forma, enxergavam. Sabiam o que se passava, mas não necessariamente precisavam se posicionar. É como se não nos sentíssemos no lugar de corresponsáveis pela construção de um tecido muito mais amplo, estrutural.

Desse modo, a consciência crítica que poderia surgir a partir do debate coletivo sobre temas fundamentais até hoje não conseguiu se instaurar de modo mais amplo. Finalmente, ao custo de muita dor, lágrimas, violência de todos os tipos, as coisas parecem estar mudando. O verdadeiro “monitoramento” social que se instalou principalmente com a internet e, depois, com as mídias sociais, para o bem e para o mal, tem provocado transformações significativas na maneira como nos colocamos diante de situações que, antes, estariam restritas praticamente à vida privada.

Por exemplo: é da minha conta sim quando mais uma mulher é vítima de qualquer tipo de violência. Seja a violência de se privar de fazer alguma coisa – usar uma roupa curta ou justa, sair à noite, sentar no bar para tomar uma cerveja sozinha -, seja o preconceito no ambiente de trabalho, a obrigatoriedade de se encaixar em padrões pré-estabelecidos, ou o feminicídio. Vivemos por muito tempo numa sociedade que culpabilizava as vítimas, como se coubesse às mulheres o papel de evitar estupros, assédios, mortes. Não, não é crime passional. É feminicídio.

O “textão” que poderia se encaixar em algum post no facebook – são muito significativas campanhas que denunciam, por exemplo, o primeiro assédio, ou atitudes que não seriam normalmente enquadradas na categoria de machismo, além de todas as comunidades feministas que surgiram na rede – na realidade é para tratar de arte. A performance Para Aquelas Que Não Mais Estão, vista durante a II Bienal Internacional de Teatro da Universidade de São Paulo, foi fruto de uma parceria entre a atriz, performer e ativista mexicana Violeta Luna e o Coletivo Rubro Obsceno, de São Paulo.

Assim como a performance Espaço de Silêncio, da dramaturga, professora e atriz Nina Caetano, também apresentada durante a Bienal, Para Aquelas que Não Mais Estão tratou do feminicídio sem subterfúgios, de maneira clara e direta. De fato, são posturas que trazem como resultado a ampliação, ou a renovação, do potencial político da arte. Estamos falando de um teatro que não se esquiva de pensar a realidade na qual que vivemos, que consegue manusear os dados concretos de violência e expandir significados através da articulação entre discurso, ação e poética.

No espaço delimitado por faixas de construção, um verdadeiro ringue de horrores, mas também uma arena de libertação, Violeta Luna, Letícia Olivares e Stela Fischer deram a ver histórias de muitas mulheres. Mortas com tiros de revólver, pedra, cabo de vassoura, faca, tesoura. Fica absolutamente claro que, geralmente, o criminoso é alguém com envolvimento afetivo com a vítima, e que a violência em si não carrega preconceitos: todas são vítimas, mulheres de todas as raças, classes sociais, idades.

Uma pilha enorme de roupas colocada no centro da cena traz associações óbvias com a tarefa cotidiana de vestir-se, mas também com a brutalidade com que simplesmente essas mulheres são limadas da existência. Histórias de jovens, adultas e até de crianças vítimas de violência são trazidas à tona. A cenografia foi organizada de forma que em cada pequeno nicho uma ação se desdobra, como quando uma das performers de fato simula ser vítima de um feminicídio e tem seu corpo estendido no chão, coberto por areia.

Durante toda a performance, os espectadores estão em pé ou sentados no chão, se assim desejarem. Não foram disponibilizadas cadeiras no espaço. Mesmo que não fosse objetivo ainda da cena promover uma interação mais direta, quando as três performers estavam sozinhas no ringue, a situação é mesmo de desconforto e também, talvez, de fazer refletir sobre passividade. De maneira mais generalizada, tudo o que se passa ali – ou nas imagens projetadas fora do ringue – deixa claro o quanto somos coniventes como sociedade, o quanto falimos na proteção às nossas mulheres. Essas mulheres ainda estão à margem, ignoradas e invisíveis.

O espetáculo termina depois de um momento muito significativo. As performers iniciam uma espécie de memorial às vítimas, um velório ritualístico. As velas acessas carregam os nomes e as idades das vítimas, ditas em voz alta. Trata-se de uma construção da nossa memória coletiva, que não registra, por conta de uma lógica perversa fundamentada no machismo, milhares de mulheres mortas todos os dias. Para Aquelas que Não Mais Estão termina com um silêncio ensurdecedor. O tema tratado na performance, e a maneira como foi abordado, não deixam espaço para aplausos, por exemplo. Não temos ainda o que comemorar, mas podemos dizer que a arte, a partir de algumas iniciativas desse tipo, também está fazendo a sua parte nessa luta contra o feminicídio.

A tentativa de cristalizar a memória

Foto: Divulgação TUSP
Foto: Divulgação TUSP

Crítica do espetáculo Família Museu, de Ariel Zagarese, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

28 de dezembro de 2015

Tudo que é presente, logo ali, no próximo instante, já se mostra passado. Assim é mesmo a vida. Já no teatro, pensando especificamente no enredo dramático, presente, passado e futuro estão circunscritos dentro dos limites da sessão de um espetáculo. Talvez por isso, analisando sob esse aspecto, esses tempos tenham a possibilidade de se tornar mais cristalizados, palpáveis. Ainda assim, por outro viés, o teatro é a arte do efêmero, do que foi e já não é, da impossibilidade da repetição. O argentino Ariel Zagarese recorreu não só ao teatro, mas ao conceito de museu, para resgatar a história do seu próprio pai e da sua família, lá pelas décadas de 1980 e 1990, no espetáculo Família Museu, apresentado na II Bienal Internacional de Teatro de São Paulo.

Logo que as portas da sala de espetáculo são abertas, podemos caminhar pelo espaço e observar, contemplar, tal qual um museu tradicional, os objetos de uma coleção: uma máquina de barbear, fotos, caixa de ferramentas, por exemplo. Uma das especificidades, no entanto, é que aquela exposição conta com a presença de um homem, meia-idade, sentado, lendo o jornal. A tensão entre os tempos começa a se estabelecer exatamente ali. Quando os objetos remetem a um passado, mas o corpo se faz presente.

O homem, interpretado por Alejandro Ruaise, é Rubén Carlos Zagarese (1948-1999), pai do diretor e dramaturgo Ariel Zagarese, cujo papel ficou sob a responsabilidade de Manuel Reyes Montes. Há ainda a mãe e a irmã do ator, vividas pelas atrizes Sabrina Loza e Manuela Iseas. Os atores se apresentam e dizem ao público quais serão os seus personagens. A relação entre representação e não-representação, no entanto, não tem outros desdobramentos para além desse momento inicial da peça.

A escritura cênica de Família Museu se propõe pontuada por fricções e pontos de encontro/embate. Nessa história, o público se questiona o tempo inteiro sobre ficção e realidade; principalmente quando as memórias que são levadas à cena são, de fato, a tentativa de reconstrução de um passado visto sob um único olhar, o do dramaturgo/diretor, pontuadas pela atuação de outras pessoas. Na construção da cena, é o passado “museu” que logo vira presente, mas traz lembranças a muitos dos espectadores, o que de fato se materializa como presente em cena, o que há de ficção a partir dessa história.

Nesse caminho permeado por afetos e desencontros, o foco está na relação familiar. No cotidiano que poderia ser o de qualquer família. A briga entre os irmãos, as questões que permeiam o casamento, mas, principalmente, a falta de diálogo. O pai é retratado como alguém distante, endurecido pela vida, que faz pouca questão de construir sentimentos, como na cena em que o garoto tenta ajuda-lo a consertar o carro. São elementos trazidos pela dramaturgia que, em alguma medida, aproximam o público da montagem, embora o espetáculo não consiga superar um estado, digamos, de certa conformidade e apatia.

As relações/fricções que poderiam surgir na aproximação entre teatro e vida real, entre os elementos do real no espaço da ficção, não extrapolam os limites, de maneira que possam, de fato, trazer tensão à relação com o espectador. É uma linha de dramaturgia que se mostra monocórdica, sem pontos de virada ou oposição.

Apesar de tratada de forma sensível, a abordagem fica tão localizada no microuniverso familiar, que as outras dimensões que poderiam surgir a partir da proposta da montagem, da dramaturgia e da própria encenação, não tomam vulto. Aqui, o que acontece de fato é que o particular, o autorreferente, não se torna universal e saímos com a sensação de que a proposição foi mais interessante do que a sua realização em cena.

Formas para a transgressão e a reintegração

Crítica de Notas de Cocina, do grupo Teatro do Embuste, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

28 de dezembro de 2015

No acúmulo das cenas de “Notas da Cocina”, o grupo colombiano Teatro do Embuste segue linhas do texto do dramaturgo argentino Rodrigo García para percorrer alguns dos desvios do desejo numa sociedade de capitalismo tardio, cujo imperativo consumista, em tensão com a extrema desigualdade econômica, produz aspirações de ostentação para distrair do vazio da experiência cotidiana. Ícones mais ou menos decadentes dessa high society, como Eike Batista ou o restaurante Fasano, apontam para um modo de vida reconhecível no imaginário do brasileiro, arrolados num discurso cênico modalizado pelo cinismo.

A atitude de desprezo pelas convenções sociais e morais gera uma sequência desconcertante logo de início: a mãe que, para proteger a filha da mediocridade padronizadora do sistema de ensino, embebeda-a antes de ir à escola. A presença de uma criança como rastro do real em cena tensiona ainda mais uma construção ficcional que, em si, já é conflituosa pelo choque entre a razão crítica e o despautério. Esse impasse abre uma primeira indagação possível de ser formulada a partir do trabalho: qual a potência política do cinismo como crítica social?

Esta pergunta se reforça no contexto em que o espetáculo é apresentado no Brasil, integrando a programação da II Bienal Internacional de Teatro da USP, cuja curadoria propõe um olhar para dramaturgias transgressoras sob o mote “A Esquerda do Sol: poéticas e políticas Latino-Americanas”. E a ela não se pretende, nesta crítica, dar uma resposta conclusiva, senão ensaiar alguns apontamentos.

O cinismo seria uma distorção estilística correspondente, na linguagem, ao diagnóstico de uma distorção na forma de vida contemporânea em relação às expectativas sustentadas pelas normas sociais. Entre as muitas reflexões apresentadas por Vladmir Safatle no livro “Cinismo e Falência da Crítica”, consta a ideia de que o padrão de racionalidade de nossa sociedade, no atual estágio do capitalismo, seria o do cinismo. O modo cínico de operação estaria relacionado a uma sociedade em processo de “crise de legitimação”. “Para o cínico, não é apenas racional ser cínico, só é possível ser racional sendo cínico”, diz. Um ponto interessante da argumentação do autor é que, na chave cínica, não só o sistema de lei, mas também a própria transgressão, são anunciados como normativos.

Pensando isso em relação a “Notas de Cocina”, interessa observar as transgressões àquilo que se estaria criticando à primeira vista. Tal como o disparatado embebedar da criança contra o sistema de ensino, há o casal que desafia os salamaleques gastronômicos de um restaurante de luxo comendo, enquanto bebe a champagne mais cara da casa, uma porção de batatas fritas trazidas de algum boteco. Está clara a provocação contra ambições sociais que são como balões de ar, invólucros de pouco ou nada.

Então as transgressões recaem em outro extremo da estupidez (pelo vazio) da conduta humana. O cinismo seria esse lugar da falência da crítica? O espetáculo aponta para o insustentável desses desejos fúteis, debocha deles; ao mesmo tempo em que os absorve na ironia sobre a indignação, talvez ela mesma um modo de satisfação das angústias derivadas da falta de autenticidade, significado ou experiência que legitime nossos modos de viver.

O comercial da marca de jeans que se apropria de imagens e discursos de protesto para vender seu produto vem atestar que nada sobra como potência crítica. É uma posição indubitavelmente defensável, embora atinja o solo brasileiro justo no momento em que, ante uma hipocrisia generalizada, a potência crítica apareça rediviva pela força da mobilização política estudantil. Tempo e geografia estão sempre a interferir nos sentidos e afetos produzidos por um acontecimento teatral.

Há outro desdobramento para essa discussão, que surge da reflexão à luz da obra de Rodrigo García. Longe de querer atar um espetáculo ao texto do qual partiu, cabe pensar o que distintas escolhas no modo de apropriação geram em termos de efeito.

Em peças como “Gólgota Picnic”, apresentada no Brasil em ocasião do FIT-BH 2012 e da MITsp 2014, García concebe dramaturgias transgressoras dispostas a deslocar o espectador de sua zona de conforto e criar rupturas na percepção, desestabilizando sentidos, provocando reações físicas, sensoriais, emocionais, intelectuais. Isso se constrói numa intrincada rede de imagens e discursos que não convergem para um ponto pacífico, antes criam nódoas, furos, abalos na experiência de quem está na plateia e precisa redescobrir os modos de se relacionar com o que o palco lhe oferece. Determinante, para isso, tanto quanto essa forma polissêmica de tensão entre linguagens, é a postura dos performers, numa espécie de distância crítica em relação aos conteúdos expressos e ao público.

A criação do Teatro do Embuste dispensa o maior investimento em uma camada imagética e recorta o texto, concentrando a dramaturgia em cenas que apresentam situações de conflito. Estas são representadas pelos atores com um reforço na composição de personagens, o que se vê pelos figurinos, registros vocais e virtudes de interpretação distintas da fluidez performativa de encenações de García.

A opção do grupo colombiano é por um tratamento mais dramático, ainda que em sua forma expandida e fraturada, afinal, estão em cena elementos de uma gramática teatral contemporânea, como o vídeo e o skype, a irrupção do real nas participações da criança e de um cachorro (notadamente bem adestrado) e o trânsito dos espectadores por lugares de figurante ou testemunha. Disso resulta, talvez, uma postura menos transgressora, que, se não fura o tecido social do qual debocha, a seu modo esgarça-o, cria dobras, enquanto busca a adesão do público por meio da identificação, do gesto relacional e do humor.

 

Memória encharcada de sangue

Foto: Frederico Chigança e equipe
Foto: Frederico Chigança e equipe

Crítica do espetáculo Villa, de Guillermo Calderón, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

26 de dezembro de 2015

Que destino dar a nossa memória traumática particular?! Pergunta difícil. Imagina quando esse sótão carregado de lembranças individuais compõe uma dolorosa história coletiva! Tudo ganha contornos ainda mais lancinantes quando reviramos os porões da ditadura latino-americana. Os momentos de horror da humanidade, em todas as épocas, ganham uma fisionomia de ignomínia a partir dos discursos que os humilhados e ofendidos conseguem erguer e propagar. É sempre uma luta. Uma negociação. Tentativas de convencimento.

Desde a tradição de Heródoto, busca-se na narrativa histórica uma verdade. Mas até que ponto confiar na fragilidade da memória de testemunhas e dos envolvidos, já que nessa reconstrução a subjetividade atua de forma decisiva, trazendo variações de relatos para o mesmo fato? Esse objeto recuperável é cognoscível, e pode ser alterado a partir da linguagem.

As obras teatrais do diretor chileno Guillermo Calderón exploram de forma potente a memória política do seu país e a representação teatral desse legado. Uma dobra entre as escavações íntimas e a construção poética da cena. Complexidades do discurso público. Em Villa, três mulheres se reúnem para discutir o futuro da Villa Grimaldi, maior dos 1.200 centros de detenção criados pela ditadura militar de Pinochet, um lugar onde foram torturadas milhares de pessoas e outras centenas foram “desaparecidas”.

Concebida como um díptico, em alguns festivais Villa foi apresentada junto com Discurso, em que o papel da presidente do Chile Michelle Bachelet é dividido por três atrizes. A personagem faz um balanço para acentuar as projeções, as possibilidades e falhas de um líder político. Mas na II Bienal Internacional de Teatro da USP, Villa foi exibida isoladamente.

As recordações das ações do regime autoritário são caras as três Alejandras, interpretadas por Francisca Lewin, Macarena Zamudio e Maria Paz Gonzalez. Mas elas não sabem os motivos das outras. Isso será revelado gradualmente. Elas estão reunidas, em volta de uma mesa que abriga uma maquete, para decidir o que deve ser feito do que foi o Villa Grimaldi. Transformar num memorial? Mas com que conceito?

Numa discussão acalorada, cada uma defende os pros e contras de cada proposta. Desde a demolição do edifício até um museu em que os visitantes possam sentir o que os torturados sentiram, ou mesmo uma projeção de futuro para sobreviventes e seus parentes.

Na primeira votação estabelece-se um impasse. Uma delas escolhe a opção A – reconstruir a Villa como era; outra decide-se pela opção B – construir um museu; e o terceiro voto é nulo – pois está escrito marichiweu, palavra mapuche que significa “dez vezes venceremos”. A crise se instala, mas traz consigo senhas.

Essas cicatrizes do passado não aceitam o consenso. Mas como fazer justiça às vítimas – mulheres que foram estupradas até por cachorros? Como punir os algozes com suas imagens já descolados do passado?

A fertilidade de logos na montagem de Villa mostra que pessoas que passam por situações muito semelhantes podem desenvolver uma visão de mundo bem distinta, que se apresenta como um exercício dialético vigoroso. Nessas discussões, as contradições e as tensões remetem para o caleidoscópio na produção dos afetos e as marcas cravadas em cada uma dessas mulheres.

E como reagir ao destino duro de quem precisa encarar a sombra do seu carrasco na face da criança gerada por abuso sexual? Horror materializado numa gangorra de sentimentos que desliza do amor ao ódio. As “receitas” para esquecer uma grande dor parecem todas inválidas. A vingança beira uma outra barbárie.

E é com maestria que Guillermo Calderón traça as dores desses destroços sem fluidificar suas consequências em frases de efeito sensacionalista. E sem maniqueísmo. Lembrar é um ato político. E para salientar isso, a cena é erguida com simplicidade.

A dificuldade de lidar com essa memória é também posta na alternância de técnicas de identificação e de distanciamento. As narrações estão carregadas de imagens fortes, de brutalidade, de violência, de violação aos direitos humanos. E a discussão expõe as marcas das atrocidades, em defesas apaixonadas.

A opção reconstruir a Villa é defendida para impedir a extinção das provas e um consequente esquecimento; a opção B visa erguer um museu branco, como a neve, “um museo del recuerdo doloroso, pero lindo”:

O final apresentado pelo grupo Teatro Playa – de um abalo sísmico em que a mesa e os copos de vidros começam a tremer até quedar em fragmentos no chão – abre para variadas interpretações. E que indicam que junto com o sofrimento individual de quem sentiu na carne as ações criminosas, esses atos ainda fazem sangrar o coração, os olhos, os pulmões e os ossos do país.

Esse silêncio grita por humanidade

Foto: Ivana Moura
Foto: Ivana Moura

Crítica a partir da performance Espaço de Silêncio, de Nina Caetano, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

21 de dezembro de 2015

Em média, 13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil. Uma a cada duas horas, segundo o Mapa da Violência Contra a Mulher. Os dados são alarmantes, mas essa realidade pode ser ainda pior. As políticas públicas são insuficientes para barrar a cultura machista, apesar de alguns avanços, como a lei do feminicídio. A indiferença da maioria da população é um grave problema. Como em outros quesitos da vida contemporânea, o entorpecimento da sensibilidade chega a patamares tão elevados que cada um só se preocupa com os seus problemas. Mas violência que fere ou abate as mulheres não distingue classe social, nem idade. Todas podem ser vítimas. E isso é assustador.

Mas as estatísticas revelam que as mais atingidas são as pobres e negras. A elite brasileira, que poderia contribuir mais, aparenta se importar pouco, de verdade, com isso. Parece que as figuras encasteladas, sob as vigilâncias de todas as ordens,  – e principalmente que ocupam posições de poder – só são tocadas quando lhes rasgam a carne: matam seu filho, sequestram seu neto, estupram sua filha. Quando uma infelicidade dessa acontece, atinge os nervos, os ossos, os músculos e o coração dessa gente.

Talvez esse não seja o principal público da performance Espaço de Silêncio, da dramaturga, professora e atriz mineira Nina Caetano, que se insurge contra esse quadro aterrador. Mas outra plateia, subjugada pelo capitalismo e desatenta ao poder submerso dentro de si, que em dinâmica coletiva seria (será) capaz de provocar mudanças. Espaço de Silêncio é uma atuação política, de denúncia e repulsa pelas mulheres mortas. Mostra-se necessária e comovente. Normalmente é apresentada em lugares de intenso fluxo de pedestres.

Na sexta-feira em que parte do país saiu às ruas em manifestação contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, Nina Caetano estava na Praça da República, no centro de São Paulo. Sua performance integrou a programação da II Bienal Internacional de Teatro da USP. Era um dia especial. As pessoas passavam apressadas. Umas para correr da passeata, outras para engrossar a mobilização.

Os transeuntes pareciam em dúvida se era um protesto, uma dessas pegadinhas da TV ou até mesmo teatro. Uma ação de poucos gestos, nenhuma fala, vários textos escritos, como listagem de mulheres mortas, micro obituários e manifesto poético. Vestida de vermelho, com um turbante também vermelho na cabeça, a atriz e cofundadora do agrupamento mineiro Obscena traçava seu ritual pagão.

Durante quase uma hora, um lençol branco é seu palco. A atriz aparece com uma fita vermelha em cruz afixada na boca. Desprende a fita adesiva dos lábios. Corta com os dentes outros pedaços de fita para formar cruzes sobre o tecido branco. Um cemitério simbólico, com suas histórias de massacres que a omissão covarde quer fazer parecer banal, uma consequência “natural” da postura da mulher vítima da violência de pessoas que deveriam cuidar delas, como maridos, noivos e namorados.

Esse ritual silencioso vocifera de historicidade e traça seu legado de injustiças. O gestual é suave e decidido. O olhar duro carrega uma revolta contida. Quem cruzou o olhar com a atriz sente que ela cobra a parcela que cabe a cada um da responsabilidade de estar no mundo. Essa performance atesta que essa brutalidade não pode ficar por isso mesmo. Perturbadora.

É artivismo vigoroso e contundente. Chega a ser lancinante. A cada nova cruz posta no chão amplifica a potência desse grito. Aquelas mulheres simbolizadas ali insuflam os pedidos de socorro. Com os sentidos débeis, fala-se em demasia. Vivemos saturados pela superprodução mercantil de signos, de informações descartáveis. Espaço do Silêncio vem interromper o falatório vazio das coisas. Nesse espaço-gesto que ressalta a omissão adotada em torno dessa violência, a intervenção explode de indignação na paisagem urbana. A performance foi criada a partir da Ideia-Situação do artista visual Artur Barrio, uma proposta feita para a Documenta 11.

Nessa atuação performativa e micropolítica prevalece a arte do inacabado. A poesia que se instaura a cada nova ação. Temporária e nômade. Na Praça da República, a artista encarou e desafiou os presentes. Um homem tentava fazer um discurso inócuo sobre como ele valoriza a mulher. Nina Caetano pegou o cabra pela mão e “ordenou” que ele lesse o manifesto. O rapaz não suportou. Uma mulher apareceu e queria explicações sobre o trabalho. Outros paravam um minutinho, eram tocados e partiam. E Espaço do Silêncio segue afrontando as estruturas de controle. Investe na provocação para despertar os desejos de que somos todos humanos.

Do maracatu às Torres Gêmas

Foto: Reprodução Facebook Tusp
Foto: Reprodução Facebook Tusp

Crítica do espetáculo Ramadança, de Ricardo Guilherme, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

20 de dezembro de 2015

O vestido ricamente bordado brilha enquanto o corpo gira muito lentamente. Na cabeça uma coroa completa a indumentária de uma rainha do maracatu nação ou maracatu de baque solto. A principal referência trazida pelo ator, diretor e dramaturgo Ricardo Guilherme no figurino do espetáculo Ramadança, exibido durante a II Bienal Internacional de Teatro da USP, está carregada de significados. Vamos apontar alguns deles mas, para isso, é necessário fazer um recuo na história da humanidade. Lá atrás, quando a expansão do islamismo na África converteu líderes africanos à religião de Alá e escravizou os “infiéis”. Os escravos negros se transformaram em mercadoria de valor do mundo árabe.

Nessas “guerras santas” com objetivo de islamizar populações, muita gente foi capturada em vários locais, mas principalmente na África negra, para se tornaram escravos do mundo muçulmano. O tráfico se transformou um negócio lucrativo e os portugueses entraram nessa disputa.

Sabemos em linhas gerais o que aconteceu no Brasil após a diáspora forçada dos africanos. Rebeliões, violências e muitas estratégias para manter a tradição religiosa e cultural. Chegamos então ao maracatu, que teve terreno fértil em Pernambuco, e se expandiu pelo Nordeste, e depois pelo Brasil. A coroação e os cortejos dos maracatus ganharam permissão do governo e da igreja, como forma de controle social, num determinado momento, mas depois foram proibidos e perseguidos por seu poder de articulação. E, por fim, o maracatu foi inserido no mercado cultural.

Quando o ator escolhe a figura da rainha do maracatu, não é apenas um vestido. Essa indumentária da rainha do maracatu nação carrega consigo um histórico de tensões e reivindicação de espaço e visibilidade. O maracatu traz consigo a substância árabe. Esse é um dado importante para vincular o islamismo à cultura negra, o que o ator faz.

É muito importante e significativa a calunga ou boneca – de madeira, de cera de cor negra, que representam ancestrais -, mas que já apareceu de plástico e branca. Fiquemos, porém, na tradição. Se a boneca é negra e o ator apresenta a boneca branca para despedaçá-la, há um sentido de revolta, de resistência aos valores imposto pela cultura branca, pelo imperialismo. Que se cruza com os governantes do século 20 e 21 citados na fala em off.

A referência ao maracatu é apenas o ponto de partida para uma performance que se mostra múltipla, no sentido de que carrega em si uma quantidade sem fim de chaves interpretativas. Cabe então ao espectador enveredar por algumas delas, ou por várias, e montar a sua própria colcha de retalhos. O performer abarca a intenção de disparador de provocações. A partir, claro, do próprio nome do espetáculo: Ramadança, um neologismo que engloba a palavra Ramadã, nono mês do calendário islâmico, quando os muçulmanos celebram a revelação do livro sagrado, o Alcorão, ao profeta Maomé, com preces e jejum.

O texto dito em off, em alguns momentos notadamente rimado, soa como uma liturgia, uma prece, que coloca em questão, por exemplo, as guerras surgidas por conta da religião. Ricardo Guilherme fala nos negros e na sua cultura, mas também cita o papa, além dos metodistas e luteranos. Os conflitos no Oriente Médio, George Bush, Saddam Hussein e Osama Bin Laden, misturando tempos e espaços narrativos, para compor um caleidoscópio auditivo que desafia a compreensão em sua amplitude.

Enquanto o texto é dito, Ricardo Guilherme, como dito, move-se muito lentamente. Parece mesmo a tentativa de instaurar na sala de espetáculo um tempo paralelo: do exercício do ouvir, sem que seja necessário que o ator esteja dizendo o texto, interpretando-o da maneira convencional, de perceber as variações dos movimentos e se permitir caminhar pelo que ouvimos e fazer os cruzamentos possíveis a partir do texto.

Apesar de mergulhar na performance, executada como uma espécie de ritual, o trabalho tem no texto um dos seus pilares mais fortes. A musicalidade e a poesia são qualidades evidentes do texto, que nos leva aos mais diversos caminhos, embora tenha algumas chaves mais definidas, os conflitos religiosos, as ditaduras, os imperialismos. Para se ter uma ideia, Ricardo Guilherme mistura Hamlet, Torres Gêmeas, Hitler, cultura africana.

Ao rodar com aquela roupa pesada, em movimentos que vão se multiplicando com a repetição acrescida, e apontar para o risoma, a obra também se abre para uma discussão de territorialidades. Desde as erguidas nas sedes dos maracatus de ontem e hoje para delimitar a essência do sagrado e seus vínculos ancestrais até a expansão para as ruas, guerreando para a conquistas de outros espaços, como ocorre também nas guerras ditas santas do Oriente.

Ainda assim, a potência do trabalho, que se estabelece principalmente a partir da visualidade, da sonoridade e da atuação do performer, vai diminuindo com o decorrer do espetáculo. O despedaçamento da boneca branca por um ator com o rosto pintado de preto remete para dicotomias, de imperialismos, que neste século 21 ganha múltiplas facetas, e essa bifurcação enfraquece a pretendida dialética de Ramadança.

Ricardo Guilherme apresentou outros dois trabalhos na II Bienal da USP: Bravíssimo e Flor de Obsessão, ambos baseados na dramaturgia de Nelson Rodrigues. A técnica do ator, que defende o que ele chama de teatro radical, baseado principalmente na atuação, já se mostrava vigorosa nesses espetáculos, embora outras questões possam ser levantadas e questionadas a partir das peças. Mas em Ramadança, o cearense que possui 45 anos de carreira se mostra muito mais inventivo e aberto às possibilidades de um teatro performativo.

Pela livre circulação de identidades complexas

Foto: Reprodução Facebook Tusp
Foto: Reprodução Facebook Tusp

Crítica da performance Spiritus Mundi VX Aztec Ouroborus, do coletivo La Pocha Nostra, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

17 de dezembro de 2015

No recém-inaugurado Centro Compartilhado de Criação, na Barra Funda, em São Paulo, as pessoas tomam um café, bebem uma cerveja, se reúnem em pequenos grupos de conversas animadas. Nada muito diferente dos minutos que antecedem qualquer espetáculo; mas esse não era o caso. Pouco antes do horário marcado, performers começaram a circular pelo espaço. Uma garota vestia calcinha de algodão e, por cima, outra com renda vermelha, além de um corpete na mesma cor. Cordas amarravam seu corpo. Nos braços, pernas e no bumbum, palavras ou frases sobre exploração sexual. Uma delas, por exemplo, relacionava a Fifa e o turismo sexual. Outra performer, de vestido preto elegante, tinha a cabeça presa por uma gaiola. E assim outros também andavam por ali, chegavam perto das pessoas, iniciavam um contato.

Quando o espaço para apresentações, um galpão bem grande, foi aberto, o público pode ter uma noção mais exata de como seriam os próximos minutos compartilhados com o coletivo La Pocha Nostra, criado no México, que começava a performance Spiritus Mundi VX Aztec Ouroborus. Isso foi no último dia 12 de dezembro, dentro da programação II Bienal Internacional de Teatro da USP.

A profusão de ações e imagens que se estabeleceu por todos os cantos, simultaneamente, faz com que, acreditem, seja difícil tentar descrever o que se passou ali, embora isso talvez seja bem importante para que quem não acompanhou a performance, possa tentar reproduzir mentalmente o que estou falando. Um homem deitado, com o corpo coberto por alguma coisa comestível, e o pênis encalacrado por um adereço prata; uma mulher que mostra os seios, mas, ao mesmo tempo, também tem pau. Figuras de índias, bailarinas, comunistas, “macho power”. A música alta variou muito – teve muita eletrônica, rock, samba e até Chico Sciense, além da projeção de imagens diversas, inclusive performances antigas do coletivo.

O público circulava livremente no espaço, podendo entrar e sair do galpão, pegar uma bebida, voltar; e, em certa medida, foi até convidado a interagir, mas de uma forma muito soft, sem nenhuma pressão ou agressividade – a não ser quando, já no final, os espectadores foram estimulados a atirar garrafas na parede, que estilhaçavam ao baterem em figuras de políticos, por exemplo, ou em números de homicídios de mulheres ou índios.

O Coletivo La Pocha Nostra, que tem integrantes espalhados por vários lugares do mundo, trabalhou alguns dias com performers em São Paulo. Essas pessoas ajudaram a compor as ações principais, fazendo uma certa “assistência” aos membros do coletivo. O que presenciamos, ou melhor, construímos juntos, performers e espectadores, aquela noite, foi uma performance diversa, rica, ampla em possibilidades de aproximação reflexiva. Uma espécie de instalação performática de corpos inteiramente presentes e disponíveis. Prontos para questionarem todos os padrões estabelecidos, desde aqueles que podem ser mais pessoais, que passam pela discussão de gênero, até os econômicos e sociais.

Embora a questão de gênero tenha sido uma das vertentes que permeou praticamente todas as performances, é interessante notar como, de fato, a discussão não é se alguém é homem, mulher, transgênero, travesti. A mulher de seios, moicano, cabelo no sovaco e pau está ali para levantar outras problematizações, que vão além do seu direito de existir. O seu direito de existir é inalienável e a personificação dele de forma tão natural mostra o quanto a nossa sociedade está atrasada no que se refere ao respeito, à garantia de liberdades e igualdades.

A colonização, o capitalismo, as migrações, o consumo, a corrupção, todas essas questões estão intrinsecamente ligadas às performances dos artistas que se colocam na cena como ativistas. Um lugar onde é impossível dissociar a arte e o político no sentido mais amplo do termo. Recentemente, durante o 1º Encontro sobre Curadoria em Artes Cênicas, realizado pela Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), em parceria com o Goethe Institut e o Observatório dos Festivais, discutiu-se um texto do curador independente e dramaturgo Florian Malzacher, no qual ele retomava a ideia do teatro político na Europa nos anos 1970 e 1980, afirmando que à época, embora o teatro fosse capaz de propor uma compreensão das questões que estavam sendo discutidas, geralmente essa representação se tornava muito mais uma representação das misérias e das realidades que desejava combater.

As possibilidades hoje estão muito mais amplas e complexas quando pensamos no que significa teatro político. E o trabalho do coletivo La Pocha Nostra amplia nossas percepções com relação a uma arte capaz de trazer à tona questões da realidade, ligadas ao consumo, ao capital, às opressões, mas subvertendo o caminho, sem linearidades e enxergando o espectador como suficientemente preparado para lidar com as idiossincrasias que possam surgir a partir do trabalho. Embora alguns textos lidos durante a performance ofereçam caminhos (muito bem-vindos, inclusive), chaves interpretativas para que o público possa perceber todas aquelas ações e signos, há uma compreensão por parte do grupo, atuando de uma maneira não-autoritária, da emancipação do espectador, para lembrar um conceito de Jacques Rancière.

Caminhando por esses trilhos e ainda seguindo o texto de Malzacher (que faz parte do livro Not just a mirror, looking for the political theater of today), podemos pensar exatamente na situação do público dentro do universo das performances, da arte política, do ativismo. O autor diz que o teatro político contemporâneo precisa evitar uma falsa participação do espectador, mas ao mesmo tempo reivindicar a sua participação. Pensando na performance do La Pocha Nostra, percebemos de fato como os caminhos são múltiplos. Não é preciso que o público suba no palco para participar de uma ação, nem ao menos que seja tocado fisicamente (não que isso não possa acontecer e ser bastante interessante), para que aquele trabalho possa reverberar e se mostrar extremamente potente em significados e simbologias e o público esteja de fato numa situação ativa. Precisamos somente de espectadores disponíveis para enveredar por espaços de trânsito, especialmente transgressores e capazes de despertar novos sentidos. Assim como dizia uma placa que circulou com a ajuda do público, um local de “livre circulação de identidades complexas”, como a arte e o teatro.