Crítica do espetáculo Flor de obsessão, de Ricardo Guilherme, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)
II Bienal Internacional de Teatro da USP
17 de dezembro de 2015
Em Flor de obsessão, o ator e diretor de teatro cearense Ricardo Guilherme trilha um caminho de desejo dual oposto ao mundo de incerteza e extrema insegurança em que vivemos. As fragilidades nas relações sociais de que fala Zygmunt Bauman são substituídas por uma ideia obsessiva de amor, a partir de três contos de Nelson Rodrigues (Morte pela boca, Missa de sangue e Unidos na vida e na morte). O material fez parte da coluna A vida como ela é, publicada pelo escritor em jornais cariocas nos anos 1950.
Na montagem, erguida em 1993, a dramaturgia de Flor de obsessão traz figuras transpassadas pelo trágico, que enxergam como única saída a morte. Além de dois depoimentos, em primeira pessoa, que formam o prólogo e o epílogo.
Largada pelo amante, a personagem de Morte pela boca revela ao marido a prevaricação e ordena que o traído abata o rival com um tiro na boca. Em Missa de sangue, a infidelidade só é constatada pelo homem enganado nos delírios de febre da mulher, que clama pelo amante. O amor também é uma prisão em Unidos na vida e na morte, mas dessa vez nem a morte configura-se como liberdade.
Na encenação, o ator Ricardo Guilherme dramatiza e comenta as ações narradas. Quando o público entra no teatro, o artista já está no palco, deitado em uma bancada que lembra um caixão. Nos informes sobre o espetáculo, o ator (que também é o diretor da peça) diz que são dois movimentos para cada um dos tópicos narrados. Ao todo, oito movimentos matriciais. No prólogo, de pé, Ricardo Guilherme usa as mãos para realizar ações verticais para cima e para baixo no rosto, formando máscaras da comédia e da tragédia. Em Morte pela boca, com os dedos em forma de garras, simula ferir alguém ou a si mesmo. O gesto de Missa de Sangue, apresenta o ator de braços abertos e cruzados, imagens que aludem ao abraço esperado/ desejado e abraço rejeitado. Já em Unidos na vida e na morte, enlaça e desenlaça as mãos. E por fim, no prólogo, levanta-se, fala ao público e sai.
Os traços expressionistas são evidenciados com grande potência pelo intérprete de grandes recursos técnicos, vocais e corporais. Criador do que chama de teatro radical (método em que a figura do ator traça os significados, a partir de imagens do corpo, que permitam ao espectador participar com sua imaginação e projetar sua subjetividade), ele utiliza o conceito de repetição criativa: a ação se reproduz, mas a repetição lhe acrescenta novos significados. Uma luz quase na penumbra valoriza as expressões.
Autor com gosto pelos paradoxos, como afirma o estudioso Eudinyr Fraga, Nelson Rodrigues coloca a mulher – historicamente massacrada pelos crimes provocados por ciúme doentio e mórbido – como as detonadoras das pulsões de vida e morte nos contos escolhidos para a peça. Em Flor de obsessão as mulheres são possessivas, manipuladoras e se não são por suas mãos que os homens matam, ou se suicidam, são elas quem incitam o ato.
O crítico Sábado Magaldi, também estudioso de Nelson Rodrigues, assinala que a obra do autor de Senhora dos Afogados carrega consigo a fórmula cristã: desejo, pecado, punição/redenção. O personagem mata ou se suicida para se redimir do sentimento de culpa.
A frase de Nelson Rodrigues “Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor”, que sustenta a ideia do espetáculo, e é dita no início da peça remete, talvez, a um ideal romântico em que era bonito até morrer por amor. Na primeira vez em que assisti ao espetáculo, lá pelos anos 1990, fiquei absolutamente encantada com as frases do texto em harmonia com o gestual do artista, o que era música para meus olhos cansados de uma desilusão amorosa. Anos depois, tenho outra visão do espetáculo.
Bem, Flor de obsessão não está estruturada no social, mas é palco de revelações de desejos íntimos e inconfessáveis, tablado para lançar luz a deformidades psíquicas. Mas mesmo tendo a mulher como o ser mais algoz, que trai e dissimula (e como já disse o paradoxo rodrigueano não pode ser entendido somente como misoginia; penso no texto com uma tendência para o anedótico), a construção do espetáculo não me parece dialogar com as atuais questões que pulsam na sociedade. E disso sinto falta.
O controle social dos impulsos é estudado por Freud em Totem e Tabu e o pai da psicanálise aponta que o sujeito nunca internaliza completamente a interdição. Daí ocorre o conflito de duas grandes forças: o desejo da violação das normas e o recalque do desejo. Nelson Rodrigues faz emergir nas ações de seus personagens os impulsos mais secretos.
Fazendo uma aproximação com a ideia de Bauman, que está lá no começo do texto, a qualidade das relações diminui vertiginosamente no mundo contemporâneo, ou como ele define, na modernidade líquida. E, para compensar esse dado, a tendência é o aumento no número de parceiros. Bauman chama isso de conexão e a característica é não haver responsabilidade mútua.
O sociólogo polonês trabalha com conceitos de Afinidade e Parentesco para expor sua defesa de que vivemos em uma sociedade de extrema descartabilidade. O parentesco seria o laço irredutível e inquebrável. E a afinidade, eletiva.
Mesmo que o cenário do amor em Nelson Rodrigues seja povoado por prisões emocionais, que escravizam e clamam pela morte, é preciso não esquecer que esse autor genial era um provocador. Para alguns, reacionário, por suas posições conservadoras sobre temas polêmicos à época em que viveu.
Seus personagens se revestem de ambiguidades. No livro A menina sem estrela: memórias, Nelson Rodrigues. Defende: “O amor normal não tem imaginação, nem audácia, nem as grandes abjeções inefáveis. É um sentimento que vive de pequenos escrúpulos, de vergonhas medíocres, de limites covardes”.
Na ótica desse autor, o sofrimento humano é um processo de redenção para redimir a culpa. Nesse contexto de Flor de obsessão, outras camadas de afetos poderiam fazer vibrar outras notas, inclusive as dissonantes, desse universo doentio que o autor pinta nos seus textos com tintas bem carregadas.