Arquivo da categoria: Críticas

Obsessões rodrigueanas

Foto: Bruno Soares
Foto: Bruno Soares

Crítica do espetáculo Flor de obsessão, de Ricardo Guilherme, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

17 de dezembro de 2015

Em Flor de obsessão, o ator e diretor de teatro cearense Ricardo Guilherme trilha um caminho de desejo dual oposto ao mundo de incerteza e extrema insegurança em que vivemos. As fragilidades nas relações sociais de que fala Zygmunt Bauman são substituídas por uma ideia obsessiva de amor, a partir de três contos de Nelson Rodrigues (Morte pela boca, Missa de sangue e Unidos na vida e na morte). O material fez parte da coluna A vida como ela é, publicada pelo escritor em jornais cariocas nos anos 1950.

Na montagem, erguida em 1993, a dramaturgia de Flor de obsessão traz figuras transpassadas pelo trágico, que enxergam como única saída a morte. Além de dois depoimentos, em primeira pessoa, que formam o prólogo e o epílogo.

Largada pelo amante, a personagem de Morte pela boca revela ao marido a prevaricação e ordena que o traído abata o rival com um tiro na boca. Em Missa de sangue, a infidelidade só é constatada pelo homem enganado nos delírios de febre da mulher, que clama pelo amante. O amor também é uma prisão em Unidos na vida e na morte, mas dessa vez nem a morte configura-se como liberdade.

Na encenação, o ator Ricardo Guilherme dramatiza e comenta as ações narradas. Quando o público entra no teatro, o artista já está no palco, deitado em uma bancada que lembra um caixão. Nos informes sobre o espetáculo, o ator (que também é o diretor da peça) diz que são dois movimentos para cada um dos tópicos narrados. Ao todo, oito movimentos matriciais. No prólogo, de pé, Ricardo Guilherme usa as mãos para realizar ações verticais para cima e para baixo no rosto, formando máscaras da comédia e da tragédia. Em Morte pela boca, com os dedos em forma de garras, simula ferir alguém ou a si mesmo. O gesto de Missa de Sangue, apresenta o ator de braços abertos e cruzados, imagens que aludem ao abraço esperado/ desejado e abraço rejeitado. Já em Unidos na vida e na morte, enlaça e desenlaça as mãos. E por fim, no prólogo, levanta-se, fala ao público e sai.

Os traços expressionistas são evidenciados com grande potência pelo intérprete de grandes recursos técnicos, vocais e corporais. Criador do que chama de teatro radical (método em que a figura do ator traça os significados, a partir de imagens do corpo, que permitam ao espectador participar com sua imaginação e projetar sua subjetividade), ele utiliza o conceito de repetição criativa: a ação se reproduz, mas a repetição lhe acrescenta novos significados. Uma luz quase na penumbra valoriza as expressões.

Autor com gosto pelos paradoxos, como afirma o estudioso Eudinyr Fraga, Nelson Rodrigues coloca a mulher – historicamente massacrada pelos crimes provocados por ciúme doentio e mórbido – como as detonadoras das pulsões de vida e morte nos contos escolhidos para a peça. Em Flor de obsessão as mulheres são possessivas, manipuladoras e se não são por suas mãos que os homens matam, ou se suicidam, são elas quem incitam o ato.

O crítico Sábado Magaldi, também estudioso de Nelson Rodrigues, assinala que a obra do autor de Senhora dos Afogados carrega consigo a fórmula cristã: desejo, pecado, punição/redenção. O personagem mata ou se suicida para se redimir do sentimento de culpa.

A frase de Nelson Rodrigues “Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor”, que sustenta a ideia do espetáculo, e é dita no início da peça remete, talvez, a um ideal romântico em que era bonito até morrer por amor. Na primeira vez em que assisti ao espetáculo, lá pelos anos 1990, fiquei absolutamente encantada com as frases do texto em harmonia com o gestual do artista, o que era música para meus olhos cansados de uma desilusão amorosa. Anos depois, tenho outra visão do espetáculo.

Bem, Flor de obsessão não está estruturada no social, mas é palco de revelações de desejos íntimos e inconfessáveis, tablado para lançar luz a deformidades psíquicas. Mas mesmo tendo a mulher como o ser mais algoz, que trai e dissimula (e como já disse o paradoxo rodrigueano não pode ser entendido somente como misoginia; penso no texto com uma tendência para o anedótico), a construção do espetáculo não me parece dialogar com as atuais questões que pulsam na sociedade. E disso sinto falta.

O controle social dos impulsos é estudado por Freud em Totem e Tabu e o pai da psicanálise aponta que o sujeito nunca internaliza completamente a interdição. Daí ocorre o conflito de duas grandes forças: o desejo da violação das normas e o recalque do desejo. Nelson Rodrigues faz emergir nas ações de seus personagens os impulsos mais secretos.

Fazendo uma aproximação com a ideia de Bauman, que está lá no começo do texto, a qualidade das relações diminui vertiginosamente no mundo contemporâneo, ou como ele define, na modernidade líquida. E, para compensar esse dado, a tendência é o aumento no número de parceiros. Bauman chama isso de conexão e a característica é não haver responsabilidade mútua.

O sociólogo polonês trabalha com conceitos de Afinidade e Parentesco para expor sua defesa de que vivemos em uma sociedade de extrema descartabilidade. O parentesco seria o laço irredutível e inquebrável. E a afinidade, eletiva.

Mesmo que o cenário do amor em Nelson Rodrigues seja povoado por prisões emocionais, que escravizam e clamam pela morte, é preciso não esquecer que esse autor genial era um provocador. Para alguns, reacionário, por suas posições conservadoras sobre temas polêmicos à época em que viveu.

Seus personagens se revestem de ambiguidades. No livro A menina sem estrela: memórias, Nelson Rodrigues. Defende: “O amor normal não tem imaginação, nem audácia, nem as grandes abjeções inefáveis. É um sentimento que vive de pequenos escrúpulos, de vergonhas medíocres, de limites covardes”.

Na ótica desse autor, o sofrimento humano é um processo de redenção para redimir a culpa. Nesse contexto de Flor de obsessão, outras camadas de afetos poderiam fazer vibrar outras notas, inclusive as dissonantes, desse universo doentio que o autor pinta nos seus textos com tintas bem carregadas.

Estar só: uma crença anacrônica

Crítica da peça Bravíssimo, espetáculo solo de Ricardo Guilherme

II Bienal de Teatro da USP

 

Não é sem dificuldades que procuro fazer uma aproximação crítica com Bravíssimo, espetáculo solo de Ricardo Guilherme apresentado na SP Escola de Teatro na programação da Bienal de Teatro da USP. Assistindo ao espetáculo, tudo me parecia curiosamente anacrônico, o que me provocou algumas sinceras risadas. A eficácia das frases de Nelson Rodrigues é praticamente um truque da dramaturgia, que provoca um efeito acrítico no espectador. Procurei, ao longo do espetáculo, uma peça-palestra, entender o que o artista queria dizer com aquilo tudo para além do que ele estava dizendo literalmente. Imaginava que deveria haver alguma dobra, que em algum momento aquele repertório de frases feitas iria se revolucionar e revelar algum pensamento sobre aqueles clichês. Ao final, pude constatar apenas que o artista tem de fato uma crença naquelas palavras e que Bravíssimoapresenta uma imagem chapada e conhecida do tal homem brasileiro.

Trata-se de um espetáculo solo em todos os sentidos. O artista é responsável pelo texto, direção e atuação. A ficha técnica do espetáculo não apresenta interlocutores artísticos. A condição de “estar só” também é apresentada textualmente na peça. Em algum momento o artista fala algo sobre o homem inteligente ser um homem que está só. Assim, vemos o artista se apresentando como um homem inteligente que, inadequado a um mundo medíocre, sofre solitário diante da inferioridade dos outros. Por mais que a figura de Ricardo Guilherme seja bem-humorada e simpática, o discurso denuncia uma crença na suposta condição de superioridade do artista, um problema sério do teatro. O humor de Bravíssimoparece estar só na forma. Parece que por trás da irreverência, há uma crença inabalável na verdade das suas palavras. Penso que o teatro não reivindica mais para si esse lugar do qual as verdades são proferidas.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Além disso, identifico outra diferença ideológica que impede a minha adesão ao espetáculo, que talvez seja uma diferença de geração. Arrisco dizer que a geração da qual faço parte não assina embaixo desse lamento da solidão do artista na sua torre de marfim. Não estamos sós, pelo contrário, temos a tendência a procurar o outro, a nos agrupar, a procurar interlocução, a tentar identificar quem são os nossos pares e como fazemos para nos encontrar.

A ideia de ficar atirando bolinhas de papel no público me parece bastante caduca – mesmo que os papeis contenham frases do texto, que o espectador pode ler depois. O fato de que as pessoas não reagiam aos “ataques”, a meu ver, não era inércia, mas um certo tédio desse procedimento inócuo. A fala de cima para baixo, em que o artista acusa o espectador de ser tudo o que “o povo” tem de ruim, dirigindo-se a ele com falas acusatórias, só contribui para que as pessoas antipatizem com o teatro. E então me dou conta de que se trata de um trabalho de 1997.

Enquanto o ator esbravejava sobre a inércia do brasileiro, lá fora, na rua, estudantes secundaristas se manifestavam contra o projeto de sucateamento da educação no estado de São Paulo. A poucos metros dali, enquanto aguardávamos o início da peça, a polícia invadiu o Teatro de Arena para espancar manifestantes que se esconderam na bilheteria. Enquanto Ricardo Guilherme enchia os pulmões para reforçar os clichês rodriguianos sobre a natureza do brasileiro, os artistas que estavam no Teatro de Arena se esforçavam por proteger os manifestantes agredidos, chamaram advogados, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos, e se esforçaram por fazer circular a informação sobre o que estava acontecendo.

Assim, cabe aqui perguntar se ainda há qualquer sentido em ficar reforçando essa imagem velha do brasileiro como um animalzinho dócil cheio de idiossincrasias curiosas. Nos últimos 20 anos, ocorreram mudanças radicais e muito significativas na auto-imagem dos brasileiros. Mas, para além disso me pergunto como é possível manter a fé em um discurso durante quase 20 anos, como é possível concordar consigo mesmo por duas décadas. A convicção da fala do ator é a força que ele tem, mas me parece que esse é justamente o seu calcanhar de Aquiles. É sua fé que denuncia o seu anacronismo.

O humor de um teatro cínico

Crítica da peça Notas de cozinha, do grupo colombiano Teatro Del Embuste

II Bienal de Teatro da USP

Em 1988, circulou no Brasil uma propaganda dos publicitários da conhecida agência W-Brasil (aquela da canção do Jorge Bem) para o jeans Staroup intitulada Passeata. Jovens vestindo calças jeans da referida marca fugiam da polícia que tentava dispersar uma passeata. Em câmara lenta, os policiais tentavam agarrar os jovens – sim, pelas calças. Tudo isso ao som de uma valsa de Strauss, composta logo depois que ele saiu da prisão, onde esteve por conta de suas composições revolucionárias. Era recente a abertura democrática no Brasil e a memória de passeatas remetia imediatamente aos anos de ditadura das últimas décadas. O comercial ganhou o Leão de Ouro em Cannes, entre outros prêmios. Um de seus criadores é Washington Olivetto, marketeiro famoso por campanhas emblemáticas da história da TV brasileira, como o Garoto Bombril e a frase “o primeiro sutiã a gente nunca esquece”. O outro é Nizan Guanaes, diretor de marketing da campanha de reeleição de Fernando Henrique Cardoso em 1998 e sócio do marketeiro da eleição de Lula em 2002, Duda Mendonça. Tinha uma vaga memória dessa propaganda quando me deparo com ela em uma peça de teatro em São Paulo, em um momento em que a polícia está novamente agredindo estudantes pelas ruas – sim, em pleno 2015. A história do Brasil é cínica – e feita de propaganda.

Notas de cozinha, do grupo colombiano Teatro Del Embuste, fez apresentações no Tusp por ocasião da II Bienal de Teatro da USP. A peça, encenação do catalão Marc Caellas a partir de um texto do argentino Rodrigo García, apresenta o percurso de três personagens por diferentes situações que apresentam clichês da vida urbana na atualidade e desejos fúteis de uma sociedade orientada pelo consumo do status. Não há continuidade narrativa entre uma e outra cena, mas a continuidade estabelecida pelos códigos de atuação gera um acúmulo interessante entre as cenas. Primeiro porque geralmente, nesse tipo de peça (em que não há uma narrativa, um cosmo fictício e que tem um desejo de denunciar questões sócio-econômicas do mundo contemporâneo), os atores e atrizes se esforçam por negar a ideia de personagem, enfatizando que eles estão ali com a sua persona de artista, assumindo os discursos na primeira pessoa – mesmo quando o texto é declaradamente de outra pessoa, o autor ou autora de um texto muitas vezes previamente escrito.

A ideia de que temos personagens passando por aquelas situações parece parodiar o gênero drama de estação, que conhecemos por peças de August Strindberg como O Caminho para Damasco e O sonho, ícones de uma ideia de teatro sério, denso, intenso, que pode proporcionar grandes atuações, daquelas que fazem atores ganharem prêmios – situação que é alvo de crítica em uma das cenas da peça. O elenco formado por Hernán Cabiativa, Matías Maldonado e Martha Márquez não se esforça por fazer seus personagens com a carga de seriedade e a demanda de coerência características de formas como o drama, por exemplo. É quase uma paródia da ideia de fazer personagens. Não haveria como questionarmos se eles estão “fazendo bem” ou se nós “acreditamos” neles. Nada disso importa. Mas é interessante quando artistas de teatro misturam as convenções e suas formas. As poéticas contemporâneas também têm as suas convenções, também sofrem ação do tempo da mesma maneira. A paródia também aparece no título. Notas de cozinha é o título de uma publicação dos cadernos de Leonardo da Vinci em que ele anotava receitas para grandes banquetes.

No drama de estação, um personagem passa por diferentes quadros, encontrando outros personagens, outras situações, como se essa espécie de jornada pudesse se configurar como uma formação do indivíduo. Ouvindo a conversa entre o elenco, o diretor da peça e o crítico argentino Jorge Dubatti, na Escola de Espectadores que integra a programação da Bienal, soube que a encenação original da peça era itinerante, realizada em um teatro velho ou abandonado, na qual os espectadores faziam um percurso pelas cenas criadas com uma abordagem site-specific. Imagino que a peça poderia ser mais interessante feita dessa maneira que como na adaptação realizada em São Paulo. Essa informação reforçou ainda mais, para mim, o jogo com o drama de estação, mas reiterando que o percurso a fazer não leva necessariamente a lugar nenhum. Imagino a peça percorrendo um teatro antigo como um lugar que é cheio de coisas velhas, mas também um lugar que tem a sua história e a sua ação sobre nós. Em Notas de cozinha, não há possibilidade de aprendizado ou amadurecimento desses personagens. Nem dos espectadores. A peça tem uma atitude crítica, mas não está querendo “iluminar” o espectador, nem mostrar o quanto ele é fútil e manipulado. Ainda bem.

A primeira cena da peça anuncia certa descrença na ideia de impacto. Martha Márquez  diz um texto brilhante na primeira pessoa do singular, contando que foi chamada para uma conversa com a diretora da escola da filha por dar cachaça para a criança aturar as aulas estúpidas e comer bem no almoço. A mãe despreza o ensino regular e lê, para a filha bebê, livros de Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e J. M. Coetzee. Em cena, uma menina linda, de seus três ou quatro anos de idade, sentada à mesa. Ali pelo palco, um dos atores brinca com um cachorro. A criança e o cachorro estão ali sem que nada aconteça com eles. Mas isso não me parece um fracasso. É como se os artistas dissessem: imagina uma criança fofinha como essa, que tem um cachorro fofinho como esse, chegando à escola de porre. E só. É como se a cena fosse uma carta de intenções da peça, escrita com dois ou três monossílabos de indiferença e um sorriso cretino. Ali me parece que não há desejo de ruptura formal ou de impressionar o espectador – a lógica da ruptura se esgotou com as vanguardas do século XX e o que acontece do lado de fora do teatro é tão bizarro, inverossímil e chocante que qualquer coisa que façamos em cena parece brincadeira infantil.

Depois dessa primeira ótima cena, presenciamos outras situações, algumas mais inspiradas, outras menos, variação que deve ter relação direta com a pertinência de cada situação de acordo com o contexto em que a peça se apresenta. O espetáculo conta especialmente com a habilidade de Matías Maldonado, comediante de mão cheia que nos dá a sensação de estar fazendo tudo pela primeira vez. A comicidade é a ferramenta crítica mais eficaz do espetáculo. Arrisco dizer que o espectador que não conseguir rir com a peça provavelmente não vai ser atravessado pela sua potência crítica.

Em determinado momento, na cena em que eles estão em um restaurante caro, a atriz descreve o que ela imagina que seja uma imagem refinada. A descrição que ela faz é bastante sem graça, até que aparece a projeção de um videoclipe do pianista Richard Clayderman. É hilário perceber que fomos culturalmente colonizados por essa classe de imagens midiáticas, com esse grau de cafonice. Soma-se a isso a presença do vídeo mencionado no início do texto, uma propaganda da qual as pessoas sabem o título e que ganhou prêmios – como uma obra. A presença desse vídeo é um achado da dramaturgia do diretor. Ele aponta como a propaganda pode ganhar status de criação em um sentido bem próximo ao artístico – questão abordada por Susan Sontag em relação às fotos feitas para campanhas publicitárias. A propaganda ocupa um lugar de destaque na nossa relação com as imagens. Em vez de fazer um discurso sobre isso, a peça simplesmente insere os vídeos, estabelecendo assim uma lida singular com a economia das imagens. A acidez do espetáculo não é acusatória, não aponta culpados nem heróis, nem soluções.

O fato de que os artistas, na atitude em cena, não se levam muito a sério, que eles não estão fazendo coisas intensas e dramáticas, abre uma possibilidade para que o espectador não se leve tão a sério também. O cinismo no humor tem sido determinante na lida dos brasileiros com as reviravoltas surreais da política nacional. As manchetes do Sensacionalistacirculando pelo Facebook e a coluna do Gregório Duvivier, para citar alguns exemplos, têm uma eficácia que os melhores discursos do Jean Wyllys, esclarecedores e inteligentes, não têm. Com o humor das tirinhas da Laerte, por exemplo, acho possível que aquele cidadão distraído, que está meio boiando nisso tudo, veja com olhos críticos o que está se passando no país. No teatro é a mesma coisa. É mais fácil uma pessoa se achar ridícula por querer jantar na Famiglia Mancini quando uma peça faz com que ela ria de si mesma do que quando o teatro a acusa de ser medíocre pelo simples fato de ser classe média – quando os artistas na verdade pertencem à mesma classe social desses espectadores que desprezam.

Na ideia mais comum de teatro que tem atitude crítica, os artistas de teatro às vezes caem na ingenuidade de achar que estão em um lugar de superioridade. Em Notas de cozinha, estamos todos fritando na mesma panela, o artista não é o messias e o inimigo não é o outro.

Entre projeto e realização

Crítica de Projeto 85 – A dívida em três episódios, espetáculo idealizado pelos grupos [pH2]: estado de teatro,  La Maldita Vanidad, e Lagartijas Tiradas al Sol.

II Bienal de Teatro da USP

Projeto 85 – A dívida em três episódios é o resultado do projeto idealizado pelo grupo [pH2]: estado de teatro, de São Paulo, com a companhia La Maldita Vanidad, da Colômbia, e o Lagartijas Tiradas al Sol, do México. O espetáculo apresentado no Tusp, por ocasião da II Bienal de Teatro da USP, se divide em três partes: um filme e duas peças. O projeto é muito interessante, a apresentação do espetáculo no catálogo da Bienal cria grandes expectativas – para o bem e para o mal. Movidos por uma questão geracional, “o que fazíamos em 1985?”, os grupos deram início a esse projeto que também pretende colocar em jogo o ponto de vista de jovens criadores da América Latina, aproximando os três países com grupos cujos integrantes nasceram nos anos 1980.

Por um lado, sabemos que há um desejo por parte dos artistas de realizar um trabalho significativo, comprometido, que demanda pesquisa, reflexão e esforço de realização. Por outro lado, ficamos esperando que o trabalho resultante dê conta das expectativas que suscita, o que só acontece em parte. É preciso um tempo de adequação dessas expectativas ao que efetivamente se dá cena.

O primeiro episódio é um filme, O rosto da mulher endividada, cuja ficha técnica apresenta apenas nomes do grupo paulista. Tendo visto outro trabalho do grupo no dia anterior à apresentação de Projeto 85, identifiquei no filme o gosto pela opacidade que aparece emStereo Franz. Partindo da abertura do processo democrático no Brasil, o filme começa com imagens jornalísticas do povo nas ruas na eleição de Tancredo Neves, em resolução de VHS, o que dá o tom da visualidade das imagens que se seguem, como dos rostos das mães dos artistas do grupo em fotos de documento, cópias de passaporte, bem como dos vídeos gravados.

O segundo episódio, Endividamento privado, criação do grupo brasileiro com o grupo La Maldita Vanidad, é uma peça em que reconhecemos elementos do drama, com a apresentação de uma narrativa com diálogos e personagens. Enquanto a erupção de um vulcão ameaça a vida de todos, três irmãos discutem exaustivamente o destino da casa do pai, sem conseguir aceitar que o legado deixado para eles é feito apenas de dívidas – financeiras e emocionais. A narrativa começa de um modo mais ou menos realista, com os atores do grupo colombiano, mas logo se parte, quando os atores do [pH2] entram fazendo duplos daqueles personagens e as cenas começam a se repetir numa estrutura darmatúrgica espiralada. A relação com o espectador muda quando entra Fernando Arroyave, que faz o papel de um bombeiro que tenta fazer com que a família deixe a casa para salvar suas vidas. Suas falas também são endereçadas a nós, espectadores, embora não haja expectativa de reação concreta da nossa parte. A quebra, feita com delicadeza, sem alarde, anuncia a crescente desconstrução. Em alguns momentos, as atrizes que fazem a filha/enfermeira também olham na direção da plateia, mas isso acontece apenas como uma marcação de movimento, sem estabelecer um contato visual.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Tendo visto outras peças do grupo de Bogotá este ano na MITsp e, como disse antes, a do [pH2] na programação da Bienal, é possível perceber que houve uma tentativa de somar as caracteríticas de ambos. A companhia La Maldita Vanidad entra construindo uma narrativa, conferindo identidade aos personagens, e o [ph2] entra para desconstruir o aparente realismo. As soluções dramatúrgicas são interessantes e o elenco colombiano consegue estruturar as atuações da construção à problematização. Mas o acontecimento fica prejudicado pelas atuações dos integrantes do grupo paulista, que parece não se encaixar bem naquele contexto. As imagens de arquivo da erupção do vulcão em Armero em novembro em 1985, que encerram o episódio através da TV que faz parte do cenário, implodem o impasse familiar com uma catástrofe natural inexorável. A dramaturgia, ponto forte da cena, fica um pouco ofuscada pela falta de uma mão firme da direção com relação ao trabalho dos atores. É possivel identificar o projeto da encenação, a proposta artística por trás da cena, mas a cena em si ainda precisa de trabalho para acontecer com a potência que promete.

Já a terceira parte, Endividamento público, é uma peça com traços épicos e documentais, com recursos de audiovisual, criada pela companhia paulista e pelo Lagartijas Tiradas al Sol. A dramaturgia tece uma relação entre fatos históricos do México e do Brasil, tomando como acontecimentos-chave o terremoto de 1985, as Olimpíadas da Cidade do México em 1968 e a que vai acontecer no Rio de Janeiro em 2016. A combinação de textos e imagens parece mais elaborada no começo da peça. A produção visual dos destroços do terremoto é ótima, mesmo sendo um pouco cansativa. O problema é que depois a peça se esvazia. O final deixa ver certa ingenuidade, que geralmente aparece quando se quer falar do momento político presente em tom de denúncia. A falta de distanciamento crítico e o pathos com que o material é trabalhado acabam boicotando um pouco o rigor de elaboração poética.

O espetáculo fica prejudicado com a falta de uma dedicação sobre as atuações, por conta de limitações técnicas básicas como a atitude do corpo, a elaboração da emissão vocal, a articulação de sentidos na forma da fala de alguns atores e atrizes. As ideias aparecem mais no plano intelectual. As intensidades aparecem do pensamento para a fala – mas é uma fala sem tônus, muitas vezes trabalhada só no volume – com exceções, naturalmente. Gabino Rodriguez e Maria Adelaida Palacio, por exemplo, atuam com o corpo inteiro, integrado ao pensamento e à proposta estética de cada trabalho.

A abordagem da história pela ideia da dívida é bem pertinente à reflexão que essa geração – assim como a minha, dos nascidos nos anos 1970 – faz sobre os acontecimentos políticos e econômicos das últimas décadas na América Latina. Sentimos as perdas em setores muito básicos das nossas vidas, como o acesso à educação e o pensamento mesmo que rege as escolhas políticas feitas de cima para baixo nesse setor. Vem à mente a ideia de dívida no sentido amplo, como da dívida com os mortos – do vulcão na Colômbia, do terremoto no México, ou da construção de Brasília, realizada sobre os cadáveres dos operários mortos em acidentes de trabalho que nunca foram retirados e nomeados, e que não constam na falsa história gloriosa de ordem e progresso sem amor. A dívida com a condição opressora sobre o gênero feminino, com as narrativas dos anônimos, com a necessidade de fazer uma história a contrapelo, aparecem nesse importante projeto artístico.

Empreendedorismo Made in Cuba

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Cubalândia, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Conforme o próprio nome já sugere, o espetáculo Cubalândia, realizado pelo grupo cubano Teatro El Cervo Encantado, apresenta aos espectadores um curioso programa de turismo na terra de Fidel , chamando atenção às contradições de um país que, mesmo apontado por muitos como o último reduto anti-capitalista do mundo, progressivamente se converte em uma atraente mercadoria a ser consumida. Temos acesso, então, por meio da Cubalandia Excursiones, a uma nação gradativamente iniciada ao que se costuma chamar de ideologia liberal, testemunhando, a esse respeito, a disseminação de estratégias e práticas relacionadas ao empreendedorismo e à ampliação de supostos mercados consumidores.

É justamente como potenciais consumidores, aliás, que somos tratados ao longo de todo o espetáculo. Recebidos pela hiperativa e hipermaquiada agente turística Yara La China, conhecemos um amplo programa de turismo que envolve diferentes partes da ilha. Habana, Varadero, Viñales, Trinidad y Santiago de Cuba são alguns dos destinos oferecidos aos espectadores no decorrer de uma encenação bastante despojada, na qual as luzes da platéia estão permanentemente acesas e a cenografia – mínima – é armada diante do público.

Conduzida por uma profissional extremamente liberal que, sem qualquer tipo de pudor, coloca à venda o próprio país, tal qual suas paisagens e sua história peculiar, Cubalândia destaca o caráter predatório que recorrentemente caracteriza o turismo abaixo da linha do Equador. Tal predação, conforme percebemos no decorrer da montagem, estende-se desde o meio ambiente da ilha até a própria tradição cultural cubana, ali condensada em algumas faixas de reggaeton “tipo-exportação” que nossa entusiasmada anfitriã não se cansa de dançar, em breves interlúdios que separam as negociações com o público.

Aos poucos, no entanto, revela-se certa precariedade do programa oferecido ao público, ao mesmo tempo em que se reforça o lema “fazemos qualquer negócio” que parece lhe mover. É aí que Yara dá início a um quadro composto por negociações durante as quais sempre ressalta aos clientes a ideia de recuperar o dinheiro investido na viagem.

Percebemos, então, que, independentemente do destino, na Cubalândia Excursiones o turista é sempre tratado como empreendedor e a viagem, como investimento. E entre as táticas de capitalização recomendadas ao público, vale ressaltar, figuram a extração ilegal de minerais preciosos, corais raros e outros patrimônios do país, instantaneamente submetido, então, a ordem capitalista e exploradora que rege boa parte do mundo.

Considerando especificamente a sessão que gerou essa crítica, vale ressalvar que a intermediação das legendas durante as interações entre atriz e público parece consistir um desafio à apresentação da obra em países de língua não-espanhola, como o Brasil. Por conta dessa intermediação quase sempre necessária, comprometeu-se, em alguns momentos, a acelerada dinâmica imprimida em cena pela atriz, provocando certo desgaste em relação à repetição que caracteriza a estrutura dramatúrgica da peça.

Elemento central de uma obra na qual a convivialidade entre a personagem e o público constitui-se como um dos pilares da encenação, a personagem se mostra, logo de início, como uma carismática e confiante vendedora. Capaz de cativar a plateia ainda na entrada do teatro, ela rapidamente deixa ver o despojamento, a irreverência e a ironia que, entre outras qualidades, permeiam o trabalho. Como numa típica obra de Brecht, é ao público que Yara se dirige durante boa parte da peça, sendo brevemente interrompida, em algumas ocasiões, por chamadas telefônicas vindas de supostos colaboradores.

É durante uma dessas ligações, aliás, que o público toma consciência de que os pacotes turísticos oferecidos podem se mostrar não somente nocivo ao país, mas também aos próprios turistas, e a festiva fachada inicialmente criada pela personagem finalmente se esvai. Anunciada aos espectadores desde o início da obra, as contraditórias ofertas da Cubalandia Excursiones precisam, então, ser reconhecidas pela própria vendedora, gerando um saudável desvio em relação ao tom leve, cúmplice e bem-humorado que permeia o trabalho.

Desejos sem direção

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Crítica a partir do espetáculo Anatomia do Fauno, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Parece importante despir-se de eventuais preconceitos e julgamentos morais para assistir ao espetáculo Anatomia do Fauno, trabalho realizado pelo coletivo Teatro da Pomba Gira, de São Paulo, que traz como importante elemento inspirador o desregramento que permeia a vida e a obra do “mal-comportado” poeta francês Artur Rimbaud (1854-1891). Dedicada a reunir e converter em cena diferentes fisionomias do homoerotismo, a montagem praticamente dispensa a palavra e encontra na linguagem visual da performance o seu esteio, constituindo-se a partir de uma série de quadros ao mesmo tempo independentes e articulados, sobretudo quando consideramos o universo temático que igualmente os envolve.

Conduzida por mais de uma dezena de atores, a peça se insere em um amplo conjunto de espetáculos recentes que recusam moralismos sobre corpo e sexualidade, articulando-se em certo sentido, como uma resposta artística ao crescimento do conservadorismo no cenário sócio-político brasileiro. Em Anatomia do Fauno, no entanto, o que se experimenta é uma improvável combinação entre atmosferas míticas, sem tempo ou lugar, das quais o fauno mencionado no título rapidamente se apresenta como símbolo central e um dos eixos da peça, e contornos bastante concretos e essencialmente contemporâneos, reforçados, por exemplo, pelo uso de aparelhos e aplicativos eletrônicos em determinados momentos da encenação.

Imersos, logo de início, em uma espécie de “açougue-underground”, assistimos à chegada do fauno – meio homem, meio bicho – a uma cidade povoada por numerosos corpos masculinos. Somos convocados, então, a reconhecer em nós mesmos certa curiosidade sobre o corpo do outro, assim como sobre as possibilidades de encontro e troca entre esses corpos. Testemunhamos, então, a sucessivos embates que de um modo geral remetem a paixões intensas, violentas e fugazes, traduzidas em vigorosas relações de atração e repulsa estabelecidas entre os corpos que se movem diante de nós.

Desprovidos de personagens ou ainda de uma narrativa a ser contada, tais corpos se alinham em um estado performático e pouco humanizado, aparentemente mais propício a tensões do que propriamente a afetos – ainda que as fronteiras entre tais noções muitas vezes se borrem, claro. E mesmo que boa parte dessas acontecimentos culminem em encontros entre dois ou mais performers, o que se tem ali, ao menos num primeiro momento, são corpos autocentrados e guiados sobretudo pelos próprios desejos, mostrando-se pouco interessados na verticalização das relações estabelecidas com os outros corpos que encontram em cena.

Seja, portanto, a partir de metáforas ou situações bastante concretas, tais quais as que remetem aos aplicativos já mencionados, mas também a encontros fortuitos em banheiros públicos, por exemplo, o espetáculo não raro nos apresenta vestígios de um sistema social que impele à competição, à comparação e ao individualismo, deslocando, em certo sentido, a vigorosa ideia de obsolescência programada também ao campo dos desejos.

Se as relações entre os performers são quase sempre fugazes, o mesmo não acontece com boa parte dos quadros que estruturam o espetáculo, os quais frequentemente se estendem até o ponto de se esgotarem. Enquanto algumas vezes esse recurso denota justamente a perda – ou a falta – de sentido das ações trazidas à cena, em outros momentos, o que se verifica é um certo desgaste do recurso, provocando uma sensação de repetição ou permanência em um mesmo estado de coisas.

Desse modo, apesar da liberdade e da libertinagem que desde o início dão o tom do espetáculo, o caminho construído pela sucessão de quadros que integram Anatomia do Fauno talvez não encontre – e nem procure – a atmosfera de plenitude e esplendor um dia almejada por Rimbaud. Pelo contrário: mesmo quando se organizam em um grande grupo, substituindo os iniciais embates por composições coletivas situadas entre a festa, a orgia e o ritual, os múltiplos corpos que habitam a cena parecem ser colocados, ali, como equivalentes. Com isso, mesmo após a impactante entrada de um corpo feminino em cena, parece haver pouco espaço para a emergência de singularidades ou perspectivas que atribuam nuances mais complexas ao coletivo de corpos então formado.

Criação repleta de significados abertos, na qual mais se apresenta um contexto do que se entrega crítica ou reflexões sobre ele, Anatomia do Fauno deixa ao público o papel de experimentar, testemunhar ou julgar o que vê em cena. Enquanto alguns espectadores podem torcer o nariz para o excesso de “imoralidade” trazida ao palco, outros decerto saem ressentidos pelos raros momentos de efetiva presentificação do público, sobretudo quando consideramos a recorrente tensão estabelecida entre palco e plateia.

Sendo assim, àqueles minimamente familiarizados a práticas e imagens homoeróticas, o espetáculo termina por oferecer uma justaposição de acontecimentos visuais bastante potentes, mas pouco propícios a gerar deslocamentos de perspectiva em relação ao universo investigado. Àqueles menos familiarizados ao mesmo universo, o espetáculo pode, de fato, impressionar, mas corre o risco de apenas reiterar, sem acusar, defender ou adensar, características e comportamentos estereotípicos associados ao já bastante mal-compreendido e simplificado “universo gay”.

A dívida como horizonte, herança e história

Foto: Ana Laura Leardini
Foto: Ana Laura Leardini

Crítica a partir do espetáculo O que fazíamos em 1985?, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Há, decerto, uma lógica perversa que permeia a prática de empréstimos e a contração de dívidas, recurso tão familiar ao Estado quanto ao cidadão brasileiro e, quiçá, latino-americano. Filhos de nações que já nascem endividadas por um passado-presente de intensa exploração, há muito naturalizamos também a subordinação a modos de vida vindos de fora. Contraímos, então, por vias bastante distintas, dívidas que se referem tanto àquilo que éramos e tentamos deixar de ser, quanto aos modelos externos que tomamos como objetivos que jamais alcançaremos. E, enquanto permanece esse imperativo, parece não haver, de fato, muitos caminhos para que tais dívidas sejam superadas.

Pois é justamente a temática da dívida que serve como eixo do espetáculo O que fazíamos em 1985?, trabalho que se organiza em três episódios caracterizados por recursos e linguagens artísticas bastante distintos, ligados a pesquisas dos grupos [pH2| Estado de Teatro (Brasil), La Maldita Vanidad (Colômbia) e Lagartijas Tiradas al Sol (México). Formados, em sua maioria, por artistas nascidos ao longo dos anos 1980, os grupos não por acaso tomam as trajetórias de seus pais, mães e governantes – ou seja, quase sempre de integrantes de uma geração anterior – como universo de análise sobre a perpetuação de dívidas recentes que claramente ainda pairam sobre nós.

Somos apresentados, ao longo do espetáculo, a pais, mães e governantes, constantemente desafiados por economias em crise, Estados enfraquecidos e a permanente sombra do imperialismo estadunidense – ou, como é comum aos nossos dias, de um imperialismo internacional. Testemunhamos, assim, a momentos históricos e contextos sociais cujos complexos sentidos, se é que existem, até hoje nos demandam grandes esforços de reconstrução.

Atravessados por histórias que remetem a desastres políticos, econômicos e também naturais, os três episódios nos põem diante de desafios e soluções encontradas por esses países e seus povos no decorrer de caminhos marcados pelo desejo de galgar alguns degraus no que se costumava chamar de “ordem mundial”. Desafiados por processos tardios de industrialização e urbanização, assim como pela abertura econômica a produtos, mercados e eventos “internacionais”, os contextos apresentados pelos quadros de O que fazíamos em 1985? parecem trazer como traço comum, seja nos níveis pessoal ou nacional, constantes processos de readequação a relações de subordinação e colonização que se estendem às esferas econômica, cultural e comportamental.

Intitulado O Retrato da Mulher Endividada, o primeiro episódio é composto por um filme no qual imagens ficcionais ganham tratamento documental, reunindo mulheres que foram mães nos anos 1980 e que constroem, juntas, a história da personagem Helena Fracasso, uma espécie de síntese da experiência da dita classe média brasileira ante o contexto que sucedeu a redemocratização do país. Chama bastante atenção, nesse caso, a escolha de um ponto de vista feminino para tratar do tema, a partir de cômicas provocações sobre a tardia inserção da mulher no precário mercado de trabalho brasileiro, concomitantemente à aceleração do consumismo no país – tudo isso sob a onipresença da televisão e da publicidade entre os meios de (des)informação da população.

No segundo episódio, O Retrato do Homem Endividado, passamos da linguagem audiovisual a moldes bastante tradicionais do teatro, a partir de uma narrativa conduzida por três irmãos que se encontram após a morte do pai, o qual deixa-lhes como herança uma casa em ruínas e uma dívida difícil de se pagar. Aos poucos, no entanto, o contexto familiar é perturbado pela presença de uma vizinha rica, “americanizada” e bastante ambígua, responsável por cobrar dos irmãos certa dívida que não contraíram, mas, sim, lhes pertence. Também contribuem para a desestabilização da encenação recorrentes e impactantes aparições de um bombeiro que alerta tanto os atores quanto o público sobre uma iminente catástrofe de amplo significado.

Ainda que atravessadas por aviões, táxis e até mesmo uma curiosa e resistente tartaruga de estimação, a direção e a dramaturgia deste episódio parece apostar na imobilidade dos personagens – e da própria situação –  como questão a ser problematizada. Pressionados pelas catástrofes anunciadas por seus visitantes, assim como pela entrada de “duplos” que lhes servem como canais mais brutos de expressão, os três irmãos gradativamente deixam escapar traumas e revelam, entre outras coisas, certo complexo de inferioridade em relação a vizinhos de dentro e fora do país.

Deixando de lado a linguagem ficcional e as múltiplas metáforas presentes no quadro anterior, a sequência que encerra o espetáculo, intitulada O Retrato do País Endividado, recorre a uma linguagem bastante direta para estabelecer um interessante paralelo entre experiências de endividamento compartilhadas por Brasil e México durante os anos que precederam grandes eventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Frequentemente defendidos pela mídia e pelo Estado como signos de certa ascensão internacional, tais eventos são associados, em cena, a desastres naturais de incontestáveis consequências sociais.

Ao combinar elementos do teatro documentário e da performance, o quadro que encerra O que fazíamos em 1985? ganha força nas imagens e ações construídas diante do espectador. A construção textual, por outro lado, ainda parece carecer de um tratamento mais aprofundado em relação à questão do endividamento no contexto latino-americano. Organizada como uma sucessão de depoimentos, notícias e comentários sobre a história recente de Brasil e México, tal construção apoia-se – sobretudo no caso brasileiro – em informações e reflexões já conhecidas por boa parte do público, assim como parece perder contundência ao simplesmente citar recentes acontecimentos do noticiário nacional, sem indicar ou problematizar, de fato, suas relações com a relevante reflexão que serve como eixo ao ambicioso projeto artístico que constitui este trabalho.

Em defesa da desordem

stereo_franz_-_por_isa_kaufamnn_3

Crítica a partir do espetáculo Stereo Franz, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Logo de início, já se percebe que há algo de estranho na banda que recebe o público do espetáculo Stereo Franz, realizado pela companhia [pH2] Estado de Teatro, de São Paulo. Sob o comando de um virtuoso vocalista com trajes de açougueiro, a banda assume o palco do improvisado bar onde se organizam os espectadores, criando uma atmosfera de tensa empatia que contamina os primeiros momentos do espetáculo. Enquanto isso, Franz e Maria, personagens aos quais ainda seremos apresentados, cruzam por várias vezes o espaço, dançando e beijando-se como se fossem pessoas comuns, como se fossem apenas mais dois freqüentadores daquele bar. Mas eles não são.

Inspirada em Woyzeck, obra mais reverenciada do dramaturgo alemão George Buchner, a montagem recria à própria maneira a história de seu personagem-título – aqui Franz – e sua esposa, chamando atenção à loucura e à violência que surgem a partir de quadros sociais marcados por degradação, precariedade e subordinação aos mandos e desmandos do outro. Ainda que tal situação de subordinação fique clara pelos constantes chamados – prontamente atendidos – que ambos recebem de seus “superiores”, rapidamente se vê Franz quanto Marie, sua esposa, apresentam alguns desvios.

Enquanto ele enxerga e fala demais, por vezes tomando para si o sofrimento causado por boa parte das opressões da história e do mundo, Marie não consegue parar de se mexer, como se de fato já não coubesse no estreito lugar social que lhe parece reservado. Em permanente trânsito entre o bar onde estamos e o espaço externo ao teatro, o qual acessamos pela porta de entrada, quase sempre aberta, e também por imagens geradas por câmeras instaladas na área externa e exibidas em televisores instalados dentro do bar, como parte da cenografia da montagem.

A partir desse jogo de entrar e sair, de ocupar o campo e o extracampo, constituem-se dois universos ao mesmo tempo conectados e bastante distintos, marcados, respectivamente, por sucessivos monólogos dirigidos ao público e ações performáticas cuja potência se apóia, sobretudo, em aspectos visuais e composições entre os corpos dos atores e os diferentes espaços que integram a área externa. De um lado, o bar surge como uma arena delirante, na qual somos constantemente atravessados por relatos e reflexões em que ciência, misticismo e invenção se misturam de modo perturbador. De outro, a área externa serve como mecanismo de inserção das personagens em um contexto mais concreto de existência, reforçado pela presença de um lixeiro que, em meio às próprias atividades, vez ou outra faz companhia a Franz e Marie.

Trazendo os olhos e a língua como recorrentes órgãos-metáforas que remetem às capacidades de enxergar a realidade e de se expressar sobre ela, Stereo Franz parece defender a consciência e a voz como importantes ferramentas de transformação, ainda que, no fim das contas, o desenrolar dos acontecimentos parece deixar pouca esperança em relação à possibilidade de mudança.

Gradativamente, Franz, Marie e também o lixeiro rebelam-se, cada um ao próprio modo, em relação a uma realidade cujo horizonte de aspirações lhes parece bastante restrito. Os esvaziados – e por vezes cômicos – discursos conduzidos pelo vocalista-cientista-açougueiro e a tecladista-vidente-astróloga passam, então, a conviver com recorrentes questionamentos e reflexões de Franz acerca de vidas que, tal qual sua própria existência, parecem valer muito pouco.

“Por que Deus não apaga o Sol com um sopro, para que tudo gire na desordem?”, pergunta Franz, à certa altura, convertendo em voz a recém-tomada consciência sobre uma ordem social que pouco o favorece. “Rodem, girem, rodem”, repete insistentemente, na sequência, lançando ao público um apelo sobre a importância de se mudar a ordem das coisas, de se movimentar (como Marie?), de não se acomodar em um sistema social tão injusto quanto cruel, do qual a fuga parece sempre mais possível do que a luta pela transformação.

Por vezes trazendo à cena gritos e gestos transbordantes, a montagem parece trazer o direito à voz como uma de suas reivindicações centrais. Ao explorar de modo quase permanente a tênue fronteira entre a consciência e o delírio, entre a subordinação e a proposição de novas ordens, Stereo Franz nos convoca a pensar a institucionalização de privilégios, a naturalização da desigualdade e, em momento pertinente, a eleição de corpos e vidas que valem menos do que outros – “muertos que no hacen ruído”.

É preciso estar atento e forte

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo El Rumor del Incendio, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

A concentração do poder em poucas mãos e as variadas táticas desenvolvidas, ao longo da história, para redistribuí-lo servem como eixo ao espetáculo El Rumor do Incêndio, realizado pelo grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol e apresentado na II Bienal Internacional de Teatro da USP. Tomando alguns movimentos armados do México dos anos 1960 e 1970 como contexto a ser compartilhado e examinado diante do público, a montagem passa pelo Brasil em momento oportuno, quando, já há algum tempo, ruas e – mais recentemente – escolas se tornaram arenas de contestação em relação aos abusos de poder que marcam nossa realidade política. Ao longo dessa revisão por aproximadamente duas décadas de história mexicana, El Rumor del Incêndio problematiza questões como a participação da juventude na luta por mudanças e o uso de violência em ações anti-Estado, assim como as correntes noções de democracia e luta de classes.

“A soberania nacional reside essencial e originalmente no povo. Todo poder público emana do povo e se institui para benefício dele. O povo tem, a qualquer momento, o direito inalienável de alterar ou modificar a forma de seu governo”. Declamado logo nos primeiros instantes do espetáculo, o – utópico? – Artigo 39 da Constituição mexicana é apresentado como uma espécie de estopim da montagem, deixando ver, logo de cara, algumas das numerosas contradições que permeiam a tradução de instrumentos legislativos em efetiva prática social.

Para tanto, o grupo desenvolveu uma dramaturgia ao mesmo tempo fragmentada e claramente guiada por uma personagem central: a antropóloga e guerrilheira Margarita Urias Hermosillo, nascida em 1944. Integrante da geração anterior à dos três atores que conduzem a cena, Margarita viveu intensamente os conturbados anos 1960 e 1970 e nos apresenta, a partir de uma trajetória que combina pesquisa, ativismo e sucessivos afetos, facetas de uma realidade política que, não por acaso, também nos revela muito sobre outros contextos latino-americanos. A essa trajetória, vez ou outra permeada por acontecimentos íntimos que ultrapassam o dito campo político, são combinados importantes capítulos e personagens da história mexicana, criando eficientes contrapontos que humanizam experiências vividas somente a distância, e, quase sempre, a partir de mediações, por atores e espectadores.

Faz bastante sentido, então, que vários desses fatos históricos sejam trazidos ao público a partir de cenas nas quais os atores manipulam numerosos brinquedos e miniaturas, projetando suas imagens em tempo real sobre uma tela instalada no fundo do palco. Se tal estratégia, por um lado, reforça a distância entre as histórias ali contadas e a experiência daqueles que as levam à cena, por outro, também remetem a governantes que tratam seus povos e territórios como se, em um permanente exercício de manipulação, apenas praticassem um violento jogo de tabuleiro cujas injustas regras há muito já se conhece.

Tal escolha também se articula à importância que a juventude ganha em El Rumor do Incêndio. Presa pelo Estado mexicano antes de completar 25 anos, Margarita é apenas uma entre os vários jovens que, em diversas partes do mundo, afirmam a possibilidade de mudança ao dedicar parte considerável de suas existências à luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Não é de se estranhar, portanto, que as máscaras utilizadas pelos atores em outros momentos do espetáculo remetam a rostos masculinos e envelhecidos, como aqueles que há anos habitam o Congresso brasileiro. Seja no México ou no Brasil, afinal, a falta de representatividade parece apresentar-se como raiz da falsa democracia que experimentamos, constituindo-se como recorrente empecilho à construção de sistemas políticos nos quais o povo, de fato, tenha o poder nas próprias mãos. “Quem são esses homens que nos governam? Por que deixamos que nos governem?”, pergunta a atriz e diretora Luisa Pardo, em um dos momentos mais contundentes do trabalho.

Enquanto brinquedos, miniaturas e risíveis máscaras de plástico emprestam certo aspecto lúdico à encenação, numerosos documentos e depoimentos que ocupam, em outros instantes, a mesma tela de projeção afirmam o peso da tradição documental dentro da montagem e do próprio trabalho realizado pelo grupo, que somente neste ano trouxe também ao Brasil os espetáculos Monserrat e Derretiré con un Cerillo la Nieve de un Volcán – ambos relacionados ao que se chama de teatro documentário.

Referindo-se a contextos de franca desigualdade política, geralmente marcados pelo monopólio do uso da força pelo Estado, o espetáculo problematiza ainda o papel da violência durante ações revolucionárias. Mesmo que ofereça mais questionamentos do que respostas a esse respeito, El Rumor do Incêndio nos provoca a pensar sobre certo senso comum que aceita e muitas vezes justifica a violência do Estado, ao mesmo tempo em que demoniza qualquer ação “não pacífica” organizada por aqueles que não detêm o poder.

Aparentemente acalmadas ao longo das décadas que marcaram a falaciosa transição entre regimes ditatoriais e democráticos, dada a violência estrutural da qual todos somos vítimas, cúmplices e testemunhas, tais reivindicações têm ganhado, nos últimos anos, um fôlego novo, frequentemente embalado por jovens que já não se acomodam sob estruturas e arranjos sociais cada vez mais arcaicos. Se as histórias de luta dos anos 1960 e 1970 muitas vezes nos conduzem à imagem de uma juventude que falhou por não concluir a revolução almejada e alcançar suas reivindicações, resta-nos saber que histórias serão contadas sobre aqueles que, sobretudo desde 2011, devolveram ao debate público uma luta contínua e multifocal pelo respeito aos direitos humanos e civis reservados a cada um de nós.

Cubalândia traça imagens da decadência

Foto: Divulgação Tusp
Foto: Divulgação Tusp

Crítica do espetáculo Cubalândia, do grupo El Ciervo Encantado de Cuba, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

5 de dezembro de 2015

As dimensões territoriais de Cuba são inversamente proporcionais às paixões que essa ilha já despertou em gente de todo mundo. O cromatismo afetivo compõe um paradoxo de julgamentos, o que inclui sua própria população. Da revolução socialista à abertura ao capitalismo, cabe todo tipo de interpretação dos que estão de fora aos que estão lá dentro. O solo Cubalândia, do grupo El Ciervo Encantado de Cuba, com a atriz Mariela Brito e direção geral de Nelda Castillo, – exibido dentro da programação II Bienal Internacional de Teatro da USP – aplica a chave do grotesco para criticar a política dos irmãos Castro e seus companheiros e expor uma visão de decadência cultural, daquele país que já foi apontado como o utópico laboratório do socialismo.

A figura que surge nessa reorganização da economia cubana, apresentada no espetáculo, é a “cuenta-propista” – a empresária por conta própria, a empreendedora. Yara, a Chinesa, tem três licenças para trabalhar e oferece excursões pelos lugares paradisíacos da ilha. Ela salienta o tempo todo que viajar, com ela, para Varadero, Viñales, Trinidad ou Santiago de Cuba é um investimento e, consequentemente, terá retorno.

Seus clientes potenciais são os próprios cubanos, os que recebem seus salários em CUP (moeda nacional). A outra é o peso cubano conversível (chamado de CUC), usada para comprar alimentos, pagar viagens e hotéis. Então, correm duas moedas no país, uma com mais valor que outra. Talvez aí resida uma crítica severa à simulação de igualdade a partir dos dois dinheiros: dois pesos e duas medidas. Mas se a ideia era realmente essa em Cubalândia, de detonar com a economia subterrânea, essa sutileza parece que não acertou o alvo para a plateia brasileira.

Não é possível conferir o desempenho de Mariela Brito descolado da realidade da ilha, que já foi o ideal refúgio socialista. Nem deixar de pensar na mundialização da cultura, com todos os prejuízos que isso acarreta.

A protagonista vende a ilha para turistas e nativos. Além das belezas edênicas, ela propõe uma restituição financeira a partir de alguma atividade escusa: contrabandear charutos ou coisas parecidas. Yara China é uma cubana que acumulou bens baratos e é capaz de quase tudo para sobreviver. Ela é uma figura festiva, otimista, que fala o tempo todo de maneira apressada e nem dá para entender o que ela está dizendo direito (tem as legendas, que ajudam). A protagonista se apresenta vestida de forma espalhafatosa. Peruca, unhas excessivamente longas, lábios pintados com cores brilhantes, as roupas apertadas e curtas (short e mini blusa), sapatos plataforma e um conjunto de pulseiras e brincos dourado formam sua indumentária. A maquiagem pesada e um contorno preto, que lembra a pintura do palhaço, e dois dentes de ouro completam o layout desse rosto que termina ganhando ar de pouca confiabilidade.

Para armar sua tenda e estabelecer o seu negócio, Yara, a Chinesa, carrega consigo um mapa fragmentado da ilha, chamado de “Doble Moneda”, criado pelo artista Lázaro Saavedra. Instala um cartaz de Fidel e Raul Castro e uma pequena estátua de um índio contra mau olhado.

Nesse jogo ela procura desmitificar ícones. Se a montagem de sua figura já compõe o exagero, os códigos gestuais clamam pela vulgaridade. O riso é disparado pelo mau gosto da cena, do grotesco, do ridículo. Em sua atuação como marqueteira para vender a ilha, a personagem dança, com requebros que lembram o funk ou pagode em que a linguagem chula predomina e isso é acompanhado pelos movimentos do corpo. Yara, a Chinesa parece uma mistura de personagens popularescas de Zorra Total, Gretchen, falsa cigana e as novas celebridades da música apelativa.

O discurso é cínico e exagerado. Sua sátira aos encantos da Cuba que tenta vender desperta um desconforto. Parece-me que há um fundo ético e estético nessas escolhas. De denúncia de algo podre dentro do arquipélago. Mas muitas questões me vieram à mente durante a apresentação carregada de zombaria e escárnio, piadas e ridicularização da realidade atual, que remete à história cubana, seus mais de 50 anos de revolução e do embargo econômico à Cuba socialista provocado pelos Estados Unidos.

Espero que minha percepção não seja muito idealista de uma Cuba que visitei há mais de 15 anos, que se abria aos poucos e, mesmo com as controversas opiniões do povo cubano, ainda guardava uma aura de resistência. A Revolução Cubana sempre defendeu seu estado de perfeição, com as conquistas revolucionárias. A pressão externa (e interna) para desestabilizar o governo já passou por muitas etapas. Fica a sensação de uma construção inacabada. Diante de um possível fracasso, o espetáculo grita em alto e bom som que a alienação se instalou também na sociedade de José Martí.

Talvez a “elegância” de decadência seja uma forma de mostrar a precariedade de um povo, projetada na figura patética da agente de turismo de uma Cuba temática. Talvez fale alto de uma miséria espiritual que chegou depois de tantos anos de adversidades. Quem sabe uma crítica mordaz ou um espelho a alertar dos erros e excessos sem precedentes.

Se o cubano sabe zombar assim de seus infortúnios; o ridículo, o infame, o kitsch de Cubalândia que aciona seu arsenal contra a política interna de reposicionamento do país conduzida por Raul Castro leva a crer que as novas estratégias de dominação dos Estados Unidos são esquecidas ou sublimadas no espetáculo.

De todo modo, para uma plateia como a brasileira, que está exausta com os personagens caricatos da indústria cultural, que visam o riso fácil e sem grandes reflexões, a figura de Yara, a Chinesa parece mais uma dessa galeria bizarra e descartável.