Arquivo da categoria: Críticas

O espectador, um intruso

Crítica da peça Stereo Franz, do grupo [pH2]: estado de teatro

II Bienal de Teatro da USP

A tarefa a cumprir neste breve texto é fazer uma crítica de Stereo Franz, peça do grupo [pH2]: estado de teatro, que está na programação da II Bienal de Teatro da USP. A peça parte de Woyzeck, de Georg Büchner, texto muito usado no teatro por grupos ou encenadores que desejam trabalhar com poéticas da fragmentação e/ou com recursos da encenação contemporânea. A ideia de uma “tarefa a cumprir” aparece aqui porque a prática da crítica nem sempre pode se dar ao luxo de ser exclusivamente espontânea e criativa. Às vezes a crítica tem que tentar dar conta de uma tentativa de diálogo que pode estar condenado a uma conversa de surdos.

Muitas vezes a crítica é um embate ideológico, como quando há um desencontro entre o pensamento sobre teatro da crítica e o pensamento sobre teatro dos artistas cuja obra está em questão. O caso aqui pode não ser o da simples crítica negativa, talvez se trate da exposição de uma divergência com relação a um ponto específico do teatro que é a relação dos artistas com os espectadores – enquanto proposta de elaboração poética, algo que se dá tecnicamente, como parte do trabalho e não como consequência subjetiva do acaso e das afinidades aleatórias.

Os recursos usados no espetáculo compõem praticamente um checklist de elementos das poéticas contemporâneas do final do século XX: a recusa do drama, o uso do audiovisual, a presença de línguas estrangeiras, textos proferidos em microfones, um espaço externo que o espectador só vê em parte, a mistura de linguagens (com a presença da música ao vivo, por exemplo), referências (no caso da música) à cultura pop ou a canções de apelo popular, uma opacidade na lida com os sentidos e, por fim, uma adesão à estranheza como norte para os elementos da cena. Assim, a peça se apresenta como um exercício formal sobre o teatro, mas com um vocabulário poético já estabelecido, que parte do público de teatro já encaixa em poucos minutos em categorias dadas, como teatro experimental, teatro alternativo, teatro contemporâneo, etc.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

O exercício sobre a opacidade da linguagem, reiterada com a sobreposição de elementos, corre o risco de desencadear uma dinâmica de anulação. Por mais que se deseje dar menos atenção à produção de sentido e lidar com o espetáculo por outras vias, a busca pelo sentido não nos abandona – ela é da natureza da sociedade em que vivemos, podemos tentar neutralizá-la, mas é ingênuo acreditar que podemos nos livrar dela. Os vídeos, expostos em televisores com resolução de imagem precária, fica restrito aos que estão mais próximos dos aparelhos. O que acontece no espaço externo também fica distante demais para quem não está de frente para a porta. Assim, em Stereo Franz, buscar o sentido nas palavras e frases que conseguimos, com esforço, discernir é tudo o que nos resta. Com isso, o texto ganha um protagonismo que não combina com os esforços de polifonia e sobreposição de camadas da encenação.

Soma-se a essas condições o fato de que Woyzeck tem um papel canônico na história do teatro – e um papel canônico enquanto texto – mesmo que as formas da dramaturgia não obedeçam a regras prévias nem tenham gerado novas regras. Resulta que o texto – um texto clássico – permanece como núcleo do espetáculo. Aparentemente tentando não fazê-lo, a peça acaba por reiterar uma noção textocêntrica do teatro, na qual o que é importante (o conteúdo) é anterior à cena ou está por trás de uma superfície (o espetáculo) que se precisa desbastar.

Mas o que me parece um problema nuclear é que a peça estabelece uma relação exclusivamente cerebral com o espectador, que deve estar interessado em refletir sobre os problemas formais das artes cênicas, que deve se entreter com a identificação dos recursos técnicos e tentar adivinhar o que as opções estéticas querem dizer sobre o material a partir do qual se está trabalhando. Essa concepção exclusivamente cerebral toma o corpo do espectador como um corpo estranho, que deve ser tratado (reiteradamente) como corpo estranho, que praticamente deve ser expelido do teatro. O corpo do espectador não é bem-vindo. A sensorialidade da peça opera apenas pela via do incômodo, do desconforto, sempre na mesma nota. Isso se percebe especialmente na atitude dos atores para com o público.

A encenação coloca público e atores no mesmo plano espacial, mas os atores são os donos do espaço: os espectadores têm que se encolher para que os artistas se desloquem e façam as suas cenas, para não atrapalhar. A relação ator-espectador é impositiva, vertical. As falas são gritadas, muitas vezes cuspidas nos espectadores. Uma atriz se desloca de maneira atabalhoada, servindo Campari nos copos espalhados pelas mesas, sem se incomodar se está derrubando a bebida em alguém. O espectador, se está no teatro, tem que sofrer as consequências. A proximidade proposta é apenas espacial, não há relação de convívio nem possibilidade de diálogo. Essa foi a impressão que tive da peça, mas o que me intriga é que essa não parece ser a intenção do grupo. Talvez tudo isso seja consequência da falta de uma reflexão mais apurada sobre a condição do espectador no teatro em 2015 e os modos de trabalhar isso na poética da cena.

Teatro historiográfico do presente

Crítica da peça O rumor do incêndio, do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol

A primeira coisa que me chama a atenção em O rumor do incêndio, do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol, que se apresenta neste novembro de 2015 na II Bienal de Teatro da USP, é a ideia de um projeto artístico. Pode parecer uma coisa óbvia, que todo espetáculo teatral é um projeto artístico, mas não é bem assim. E quando falo em projeto artístico nesse caso específico não me refiro a um projeto de investigação formal, de pesquisa de linguagem, das poéticas do teatro, suas especificidades ou as possibilidades de criação interdisciplinar (que não deixa de ser uma especificidade do teatro). Me refiro a uma motivação que não se restringe às formas – embora não as deixe de lado. Não se trata simplesmente de entender o trabalho como uma espécie de teatro político, categoria carregada de diversos preconceitos e formas envelhecidas. Embora o conteúdo seja declaradamente político no sentido mais imediato da palavra (aquele que diz respeito a golpes, partidos, revoluções, guerrilhas, eleições, etc) e as formas do teatro documentário sejam características de um teatro político, me parece que O rumor do incêndio demanda um outro olhar, que ainda não sabemos qual é. O que é o teatro político do nosso tempo?

Movidos pelo pensamento crítico sobre o seu passado histórico, o questionamento, dirigido a si, sobre o presente que parece inerte e acreditando em perspectivas interessantes para o futuro, ou seja, sem idealizações, culpas, nostalgias e, principalmente, sem niilismo, o grupo criou uma peça que narra, com diferentes pontos de vista, um recorte da história do México: os anos 1960 e 1970.

O projeto artístico de que falo é um projeto que inclui o fazer teatral e o estar no mundo – ou melhor, o fazer teatral como um estar no mundo, consciente da sua historicidade. O fato mesmo de que a peça é uma espécie de teatro historiográfico nos faz pensar sobre as formas da história, não apenas sobre as suas narrativas – debate comumente restrito aos historiadores e teóricos da disciplina. Pensando em O rumor do incêndio, bem como em Derretiré con un cerillo la nieve de un volcán, outra peça do mesmo grupo sobre a qual tive oportunidade de escrever em outra ocasião, e espetáculos bem diferentes como Galvarino, do grupo chileno Teatro Kimen, Mi vida después, de Lola Arias, Guerrilheiras, projeto da atriz carioca Gabriela Carneiro da Cunha e Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas, de Joana Craveiro, de Portugal, tenho o palpite de que o teatro documentário contemporâneo está a fim de repensar a escrita da história. E não me parece forçado dizer que há um protagonismo feminino nessas iniciativas. A história oficial, especialmente a história política, a que mais chega ao senso comum, é uma história escrita por homens sobre homens em um mundo dos homens. Até agora.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

O rumor do incêndio coloca duas narrativas em paralelo. Uma delas é a história dos acontecimentos tidos como mais importantes, como os atos das instâncias de governo, as batalhas da luta armada, os números, as datas e as narrativas que podem ser comprovadas com documentos, matérias em jornais e fotos oficias. Esse tipo de narrativa histórica é sempre tomada como fiel à realidade – mesmo que saibamos que a história oficial dos países da América Latina é feita de mentiras, ocultamentos, adulterações. A peça apresenta essas narrativas em diversos momentos a partir de maquetes e soldados de brinquedo, posicionados em uma bancada comprida e filmados ao vivo pelos atores, enquanto as imagens geradas são projetadas em um telão. As imagens de guerra que conhecemos são imagens cinematográficas, extremamente espetacularizadas, ou televisivas, com os enquadramentos dados pelas regras do jornalismo midiático, que seleciona o que podemos e o que não podemos ver e como as imagens devem ser vistas. A peça faz um paralelo entre esses mecanismos e uma ideia comum de historiografia, linear, plana e sem lacunas como a bancada usada como suporte para as encenações com as maquetes.

A outra é da ordem da micro-história e de natureza biográfica: a história de Margarita Urías Hermosillo, guerrilheira que passou alguns anos na prisão e, depois disso, dedicou-se a outros fazeres: a antropologia, os amores, os filhos. As imagens que comprovam a sua existência não são apenas seus documentos, mas fotos cotidianas, além de relatos de quem a conheceu e conviveu com ela. O modo de apresentação da sua história não é como aquela narrativa filmada na bancada linear. Sua história é dramatizada. Os atores Francisco Barreiro e Gabino Rodríguez e a atriz Luisa Pardo encenam momentos da sua vida. Luisa também faz a personagem Margarita falando na primeira pessoa. Vemos então a dimensão de liberdade criativa possível para narrar a vida de uma pessoa real, que não é um personagem histórico, no sentido da história política oficial. Margarita seria uma anônima da história do México. O elemento cenográfico mais usado nessa dramatização da vida de Margarita é uma mesa, que dá a dimensão de uma história vivida em casa. Soma-se a isso o recurso de fazer a personagem falar na primeira pessoa, o que dá uma dimensão humana e ressalta o quanto o processo de ficcionalização é intrínseco à escrita da história, mesmo quando não é evidente.

A cenografia é bem determinante. Todo os elementos usados na cena estão dispostos no cenário. Tudo é, por assim dizer, útil. Mas há também uma artificialidade declarada, evidente no piso de grama sintética e nas plantas artificiais penduradas ao fundo do palco. É como se a cenografia quisesse evidenciar a artificialidade mesma de falar da luta armada no campo de décadas atrás, desde um ponto de vista urbano contemporâneo.

De modo geral, costumamos pensar o drama como forma de discutir os problemas do núcleo familiar, de ordem ética e moral, e o teatro épico como meio de propor questões coletivas, de ordem política. A peça do Lagartijas nos apresenta um épico que também é familiar, bem como uma história familiar que também é política, o que fica ainda mais claro para o espectador nos últimos minutos do espetáculo. A ideia de conferir humanidade à narrativa histórica pode ser um meio de torná-la mais próxima, para podermos olhar para o passado como algo que realmente faz parte do presente – o que todos sabemos, mas às vezes nos esquecemos.

A pergunta central do projeto como um todo é anterior às questões da cena e as ultrapassa, mas é o que finca o espetáculo no chão do presente. Se as gerações que nos sucedem quiserem falar de nós, do que fizemos quando jovens, elas falariam de quê? A pergunta nos interpela, nos chama para a conversa e nos coloca em cheque, mas o faz sem aquela empáfia de teatro político velho em que os artistas acham que têm que despertar os espectadores do seu sono de alienação. Em O rumor do incêndio, estamos todos no mesmo lugar, em uma conversa entre iguais. Nenhum de nós sabe o que deve fazer pelo futuro, nem o que deveria estar fazendo no presente. Mas a peça nos convida a abordar o problema por outros ângulos, fazendo do teatro épico, político, documental e historiográfico um lugar de pensamento com afeto.

De imagens, estados, belezas e vaidades

Crítica da peça Anatomia do fauno do Teatro da Pombagira – Coletivo de Criadores

II Bienal de Teatro da USP

Em cartaz na SP Escola de Teatro e integrando a programação da II Bienal de Teatro da USP, Anatomia do fauno do Teatro da Pombagira – Coletivo de Criadores apresenta uma dramaturgia de estados com imagens da vida sexual homoafetiva na solidão da vida na cidade. Com direção de Marcelo D`Avilla e Marcelo Denny, o elenco formado por 21 homens e uma mulher, Camilla Ferreira, realiza movimentos predominantemente coreográficos e alguns poucos dos quais se pode vislumbrar uma narrativa, uma ideia de cena mais identificada com o teatro. Assim, não temos personagens, mas figuras praticamente despersonalizadas, corpos mais que pessoas. As imagens são por vezes alegóricas, por vezes literais.

O espetáculo tem dois momentos, norteados por sentidos opostos. O primeiro, mais longo e mais tenso, mostra os corpos numa perspectiva sexual violenta, solitária, nada romântica, em que líquidos, fluidos corpóreos e externos se misturam e se espalham, muitas vezes respingando o espectador. A ideia da proximidade física do espectador parece condizente com a poética das imagens que talvez perca a dimensão de plasticidade à distância. Algumas imagens são fortes, têm presença e uma estranha beleza, mas outras são apenas explícitas e reiterativas, o que pode provocar uma oscilação de interesse no espectador. A duração de alguns quadros também contribui para certo esvaziamento. O esgarçamento acaba por jogar luz sobre a vaidade do ator por trás do trabalho, enfraquecendo o trabalho em si. No segundo momento, isso se desfaz, mas voltaremos a essa parte mais à frente.

Foto: Hélio Beltrânio.
Foto: Hélio Beltrânio.

É perceptível que o grupo realiza a sua proposta neste espetáculo. No entanto, algumas questões da proposta mesma podem ser brevemente discutidas aqui, também como problemas gerais do teatro, mais que da peça especificamente, embora esses problemas estejam ali. Uma delas é a ideia de entrega – o que estimula o problema da vaidade acima mencionado. Acontece com frequência quando um ator ou uma atriz está fazendo um trabalho que demanda um esforço físico exacerbado ou uma exposição pessoal além do comum, que ele ou ela fiquem envaidecidos da própria entrega. Isso também acontece porque é comum que as pessoas fiquem elogiando esse tipo de desempenho. Por mais que o teatro seja feito de méritos compartilhados, os trabalhos individuais também merecem ser celebrados, certamente. O problema é quando o valor de desempenho da entrega se sobrepõe ao trabalho e fica visível na cena.

A relação com o espectador também pode ser levantada. É uma espécie de recalque do teatro querer incomodar o espectador pela condição mesma de ser espectador. O espetáculos de artes cênicas constituem a única categoria de obras de arte que simplesmente não acontecem sem espectador. Mesmo a performance art pode ser realizada sem espectador, tendo apenas registro audiovisual ou fotográfico e não deixa de ser performance. Peça de teatro sem espectador é ensaio. Por que então querer que o espectador deixe de ser “apenas” espectador, “meramente” um espectador, se essa é uma condição ontológica do teatro? A ideia de sujar o espectador, deixar sua roupa manchada ou com cheiro da mistura de líquidos e fluidos que se espalham pelo chão do espaço cênico é anacrônica nesse sentido. A querela do teatro consigo mesmo continua sendo uma discussão válida? Não superamos isso ainda?

Na segunda parte, acontece uma mudança de estado significativa, que chega como um alívio e consegue atingir uma leveza imprevisível, tendo em vista a tristeza e a agonia da primeira parte da peça. E o que me apareceu muito bonito é que a transição parece se dar justamente com a entrada em cena de uma mulher. Os atores encenam um convite a uma pessoa da plateia que de pronto aceita e se junta à cena. Percebemos em um instante que se trata de uma combinação prévia, até porque eles não ficam tentando nos enganar muito tempo. Logo ela se despe e inicia uma coreografia com eles. Sua presença traz uma alegria contagiante para a cena e toda a movimentação se torna uma grande celebração, da qual alguns espectadores são gentilmente convidados a tomar parte. Nesse ponto, com as vaidades menos evidentes e uma relação mais amigável com o espectador, o espetáculo se encerra com uma virada cheia de esperança para a vida lá fora.

Um autêntico documento ficcional

Crítica da peça Instrucciones para abrazar el aire, do grupo Malayerba, do Equador

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Um dia antes de assistir à peça Instrucciones para abrazar el aire, participei como mediadora de um encontro entre artistas da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, no qual estava o grupo Malayerba, do Equador, com os criadores Arístides Vargas, Charo Francés e Gerson Guerra. No debate, tive a oportunidade de ouvir o grupo falar, com muita clareza e propriedade, sobre o próprio trabalho e sobre a peça que está na programação da mostra. Aqueles que estavam presentes puderam conhecer antes de assistir ao espetáculo os fatos que motivaram a criação. Charo e Arístides nos contaram a história de uma casa em La Plata, que funcionava como imprensa clandestina. Como fachada, ativistas assumiam o papel de cozinheiros que faziam conservas de coelho a escabeche e as conservas eram embaladas com os papéis do jornal que produziam, e que só assim circulava. Em 1976 a casa foi alvejada por fora. Todos os que estavam lá dentro morreram, com exceção de uma criança, ali sequestrada e até hoje não encontrada. A história foi contada para eles por Chicha Mariani, a avó dessa menina desaparecida cujos pais foram assassinados no ataque à casa.

Não por saber previamente da história – que qualquer espectador pode saber procurando informações sobre a peça na Internet, lendo sinopses e críticas do espetáculo – mas por ouvir uma apresentação feita pelos criadores em uma conversa, minha percepção da peça já contava com uma sensação de vínculo, de empatia pelo trabalho. Faço essa observação preliminar porque, como crítica, artista e espectadora, sou defensora das mediações. Vejo a importância da mediação como forma de aproximação entre artistas e público, algo que deveria ser sempre uma prioridade nas iniciativas de teatro – especialmente quando estamos em contato com culturas de teatro que não são aquelas com as quais lidamos no cotidiano de um determinado território cultural.

A história é apresentada por três casas, com três casais: os avós que procuram a neta, os ativistas cozinheiros de coelhos e os vizinhos que observam a casa clandestina. Em cada casa, uma ideia de teatro diferente onde a dupla trabalha com linguagens diversas. A alternância de gêneros é uma premissa da dramaturgia. Passamos rapidamente de cenas cômicas com chistes descompromissados para cenas em que é impossível rir do que está sendo dito e para outras em que o lirismo nos faz ver a beleza apesar do horror. O espetáculo se constrói com diferentes registros de interpretação, que se intercalam e se alimentam uns dos outros. Cada casal assume um tom, uma temperatura, um tempo diferente. Escutamos as histórias por diferentes pontos de vista, que nos demandam que estejamos prontos para mudar de expectativa a cada cena. E parece que a atividade constante de mudança na recepção vai aos poucos derrubando os muros, abrindo brechas para chegar na sensibilidade do espectador. É como acompanhar um festival: a cada espetáculo, as premissas são diferentes, cada um tem as suas regras, temos que adaptar as nossas expectativas, abandonar saberes e adquirir outros a cada vez que começa um novo espetáculo. Nossas noções de teatro são abaladas (felizmente) e aprendemos a ver cada peça de acordo com as suas questões, não só com as nossas.

Foto: Jenniffer Glass.
Foto: Jenniffer Glass.

Mas, no que diz repeito a verdades e realidades, me parece interessante e perfeitamente adequada a ideia de documento ficcional, um aparente paradoxo, com o qual a peça é apresentada. Quantos documentos produzidos durante os períodos ditatoriais na América Latina não são de certo modo “ficcionais”, ou melhor, mentirosos? Quantas confissões proferidas ou assinadas por coerção da tortura não são uma “ficção” construída pelo medo? E o que dizer dos documentos dos filhos e filhas, netos e netas, cuja identidade foi roubada e alterada nos inúmeros casos de sequestros? A questão é que entre mentira e ficção a diferença é grande. A mentira é a antítese da verdade, mas a relação da verdade com a ficção é mais complexa. Os procedimentos de criação ficcional estão presentes em todas as formas de escrita historiográfica, a elaboração das narrativas que são comprometidas com a verdade conta necessariamente com a imaginação, com a ficcionalização, como método para criar coerência. Daí que toda historiografia é criativa e, em alguma medida, ficcional.

O aparente paradoxo da ideia de documento ficcional é que a primeira palavra afirma uma verdade e a segunda a desmente, mas não anula sua proposição. O documento ficcional aqui não deixa de ser um documento, mas sua verdade é de outra natureza. A ficção é um meio para orbitar em torno da verdade, essa abstração que nunca poderemos conhecer de fato. Com a confecção deste documento ficcional, o Malayerba está encenando historiografia, colocando verdades em jogo a partir de elaborações poéticas, narrando fatos para que possamos escutar essas narrativas de outra maneira – porque não podemos esquecê-las mas também não conseguimos simplesmente repeti-las.

Neste encenar historiografia, há um fator determinante, uma camada de produção de sentido que é também produção de presença: os corpos de Charo e Arístides como documentos de uma história recente, em que a autenticação das verdades está carimbada na carne da experiência de suas histórias de vida. São corpos historiadores, expressão que tenho usado para falar do trabalho de atores que são narradores e testemunhas, rastros e evidências de acontecimentos dos quais precisam falar. A condição mesma de migrantes, o conhecimento profundo das narrativas de violências das ditaduras, a solidez da trajetória de mais de 30 anos de teatro, tudo isso inscreve nos seus corpos a habilidade para escrever suas histórias no espaço tridimensional do teatro, com a elaboração poética necessária, através da oralidade, da potência da palavra falada no teatro.

Sabemos que a experiência não é passível de compartilhamento, que não somos capazes de sentir a experiência do outro. Mas também não conseguimos deixar de tentar. No teatro, com a generosidade dos corpos que se dão a falar, parece que a escuta dá um passo adiante nesse sentido, impossível como abraçar o ar.

Não permitam que a voz de Juana Borrero se perca

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo La Virgen Triste, da Compañia Galiano 108, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo

16 de novembro de 2015

A cubana Juana Borrero (1877-1896) foi uma artista precoce. Aos cinco anos começou a pintar de forma autodidata; dois anos mais tarde, iniciou aulas de pintura e escreveu seu primeiro poema. Considerada um dos nomes mais importantes na pintura e na poesia modernista cubana, Juana teve dois envolvimentos amorosos que marcaram profundamente a sua obra. Tanto Julián del Casal (1863-1893) quanto Carlos Pío Uhrbach (1872-1897), esse último considerado o grande amor de Juana, eram poetas. Juana Borrero morreu dois meses antes de completar 19 anos, vítima de uma tuberculose. A acadêmica cubana Susana Montero (1952-2004), que era especialista em estudos de gênero, escreveu que a obra de Juana “comporta uma novidade e uma rebeldia contra os princípios estabelecidos da educação da mulher, que se mostram coerentes com as outras manifestações de modernidade em sua obra: literária, pictórica, ética, filosófica e política, essa última entendida como uma manifestação precoce de suas ideias emancipatórias” (tradução própria).

O espetáculo La Virgen Triste, monólogo apresentado durante a X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, assinado pela Compañia Galiano 108, criada em Cuba, explica logo no início de sua sinopse que não é um texto biográfico sobre Juana Borrero, mas uma peça inspirada em sua poesia. Apesar disso, deixa claro a importância de saber quem é a personagem. As próximas linhas da sinopse são gastas justamente explicando quem foi Juana: “uma menina prodígio e, por direito, uma das figuras mais fascinantes do modernismo americano”. A contradição da sinopse, infelizmente, não se mostra no palco: realmente, a montagem é baseada na obra de Juana, nas suas cartas, nos seus poemas; mas o resultado prático disso é que, quem não conhecia Juana previamente, entra e sai do teatro sem poder falar muito sobre a artista. Parece uma incoerência; mas, de fato, a obra revela pouco da artista e essa é uma das fragilidades do espetáculo.

No palco, a atriz Vivian Acosta tem a responsabilidade de encenar o monólogo – defende a montagem, de acordo com algumas pesquisas rápidas na internet, há duas décadas. Vivian encarna duas personagens: Juana e uma velha – o texto não deixa muito claro se é a própria mãe da poeta ou uma babá, uma dama de companhia. Mesmo que as duas personagens se diferenciem pela voz e pelo corpo de Vivian, ambas são baseadas numa composição exagerada, que beira o caminho da caricatura. É a dor levada ao extremo, em vozes e gestos de figuras fantasmagóricas, de mortalha e rosto branco. Ainda que o texto seja inspirado pela obra de Juana, o que poderia gerar um lirismo em cena, a encenação não conseguiu transmitir poesia, nem sustentar a atenção do público do Centro Cultural São Paulo.
As personagens caem na monotonia do exagero continuado e as palavras de Juana ficam como que pairando, não alcançam efetivamente a plateia. No mesmo sentido, não há um tratamento dramatúrgico que demonstre quem foi Juana, quais eram as suas dores, o que a levou a morte e, mesmo que essas não fossem questões para a direção, que obra é essa, construída por essa “menina prodígio”. O ponto não é ser autobiográfico, mas conseguir estabelecer razões, pertinências, conexões, pertencimentos.

Pelas poesias e textos escolhidos, Juana é uma menina que sofria de amor, sofria com a perda dos seus amantes, não uma artista efetivamente; nada se vê da mulher que, como aponta o texto de Susana Montero, trazia em sua obra muita rebeldia. Ao contrário, o espetáculo não empodera a voz de Juana, inclusive seguindo uma tendência que parece ser a mesma da literatura, dar muita importância à influência dos amantes na obra de Juana. É sintomático, por exemplo, que o título do espetáculo seja o mesmo de um poema que Julián del Casal escreveu, dizem os estudiosos, inspirado em Juana.

Se a atuação se mostra exagerada e baseada em cacoetes interpretativos, o cenário e a iluminação vão na mesma direção. Muitas velas espalhadas no palco, um candelabro e uma mala com uma foto de Juana e papeis amarelados, esmaecidos pelo tempo, para simular as cartas de Juana. De tempos em tempos, gelo seco; e a construção de uma cena pouco criativa. Logo depois de citar a lua, em determinado momento, lá vem a luz azul; ou quando fala-se em enterro, mais gelo seco e música de sofrimento. O texto segue a mesma trilha… “ouço vozes”, diz em determinado momento a personagem.

Para quem está na plateia, fica a impressão de que a atriz e o diretor, Rogério Tarifa, se agarraram a uma forma ultrapassada de encenação, que pouco consegue estabelecer conexão com o público. Soa falso, forçado, cansativo. Ainda assim, quando conhecemos um pouco mais de Juana Borrero, logo percebemos os motivos que levaram a companhia a se dedicar tanto tempo a essa empreitada. Há muita potência e muito ainda por dizer a partir da obra dessa cubana tão pouco conhecida no Brasil. Fica a expectativa de que a montagem tenha conseguido despertado a curiosidade do público.

“Santa” Tryo Teatro Banda: pela glória da ironia

Foto:  Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo La Expulsión de Los Jesuitas, da Tryo Teatro Banda, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo

16 de novembro de 2015

As escolhas da companhia chilena Tryo Teatro Banda no processo de montagem de La Expulsión de Los Jesuitas, impulsionadas pela competência da direção e do elenco, garantiram como resultado uma peça que consegue estabelecer uma empatia direta com o público. O espetáculo está na programação da X Mostra Latinoamericana de Teatro de Grupo, realizada em São Paulo até o dia 8 de novembro. Decididos a enveredar pela história da Companhia de Jesus no Chile, um capítulo, ao que se consta, pouco contado na história do país, a Tryo Teatro Banda, companhia criada no ano 2000 em Santiago do Chile, optou pelo caminho da bufonaria e da música. O bufão traz em si a comicidade, a paródia, a crítica, a ironia e o sarcasmo, elementos incorporados perfeitamente aos cinco personagens principais desse enredo: um jesuíta, um espanhol, um criolo, um mapuche e uma mulher.

Acontecia a Guerra de Arauco, em 1593, quando os jesuítas chegaram ao Chile na tentativa de ajudar a minimizar os conflitos entre os colonizadores espanhóis, os criolos e os índios. Os criolos sofriam com a dominação dos espanhóis, mas eram os índios que terminavam escravizados pelos europeus. Os jesuítas aprenderam a língua dos mapuches e realmente conseguiram fazer uma mediação que acarretou mudanças efetivas, como o reconhecimento de uma fronteira entre o território do Chile e dos índios. Cada momento dessa intervenção dos jesuítas é contado a partir da veia cômica, histriônica. O corpo desses atores está impregnado pelos gestos largos, caras e bocas, trejeitos e estratégias da técnica do bufão, além do ritmo rápido, quase eletrizante no qual se desenrolam os fatos.

Para completar, como menestréis, uma referência da Idade Média aos trovadores que cantavam e contavam histórias, os atores tocam instrumentos os mais diversos em cena. Há, por exemplo, lira, arpa, flauta, cavaquinho, mas também uma guitarra e um acordeon. Os instrumentos servem ainda como amostra do quanto a montagem mistura referências e consegue com isso realizar uma cena que foge completamente ao esperado, como a cena da “Santa Clorofila”, um ritual de devoção a uma santa vestida com malha de palhaça, que toca e canta em inglês; ou a cena de uma reunião com o rei da Espanha, com personagens que utilizam chapéus de animais e remetem praticamente ao cenário de estábulo.

A montagem dirigida por Andrés del Bosque, com dramaturgia de Francisco Sánchez e Neda Brikic, e tendo no elenco Daniela Ropert, Alfredo Becerra, Eduardo Irrazábal, José Araya e Francisco Sánchez, vai até 1767, quando depois de conspirações e diante de uma crise financeira que havia quebrado a Espanha, o rei decidiu prender e expulsar todos os jesuítas que estavam no Chile, levando-os exilados para a Espanha. A questão é que os jesuítas eram fundamentais para a estabilidade da paz – numa das cenas, por exemplo, o padre consegue mediar o conflito entre o espanhol, que havia trazido de volta a mulher que estava cativa no território indígena e, com ela, outras duas índias -; e o resultado dessa expulsão é somente sugerido ao final da montagem.

Abordando um momento histórico através da comicidade, A Tryo Teatro Banda aproxima o público de um episódio fundamental para a formação da identidade do povo chileno de maneira muito mais fluida e eficaz. Se a montagem não traz uma crítica direta à atuação dos jesuítas, reafirmando muito mais as benfeitorias, a tentativa dos padres de acabar com a escravidão dos mapuches, de estabelecer seus territórios e incentivar a educação, há espaços e lacunas para que o público se pergunte se as coisas aconteceram mesmo daquela forma e quais os outros pontos de vista dessa história. Até que ponto tudo foi em nome da glória de Deus? Essa parece ser também uma das intenções da montagem, que mesmo baseada em documentos e acontecimentos históricos ocorridos entre os anos de 1593 a 1767, consegue ultrapassar limites temporais, colocando possibilidades e levantando faíscas de questões que servem muito bem aos dias de hoje.

Construção de sentidos e verdades

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa, do grupo El Bachín, por Ivana Moura? (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

16 de novembro de 2015

O grupo El Bachín abraça o “fidelismo”. E é desse lugar que a trupe portenha arquiteta os enunciados para discutir a construção da subjetividade, tendo como ponto de ancoragem as articulações da mídia e suas versões de fatos em progressão descolada de veracidade. “Que é a verdade?, disse zombando Pilatos e não esperou pela resposta”, registrou Sir Francis Bacon em seu Ensaio sobre a Verdade. Séculos depois, Jean Baudrillard (entre outros teóricos), aplica outra voltagem à representação de realidades expostas e embaralhadas pelos meios de comunicação.

No espetáculo Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa o grupo argentino, que participou da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, investiga como o senso comum é erigido, produzido como fator da classe dominante. Então, averigua a relação do jornalismo, ou os mass mídia no sentido mais amplo, com a política, a verdade, o poder, e o simulacro de “giro linguístico”. Mas a peça também sinaliza que corre subterrâneo uma outra peleja cultural, em chave dialética, que busca construir outros sentidos.

A ação de Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa se passa na véspera do dia 1º de janeiro de 1959, na redação de um jornal argentino. Naquela noite, entre máquinas de escrever e notícias captadas em ondas curtas, telefonemas sobre questões pessoais e coletivas, cinco indivíduos convivem com a expectativa e a previsão do futuro. O dia irá amanhecer com o triunfo da Revolução Cubana.

As informações a conta-gotas que chegam ao jornal estabelecem uma crise na redação. Esse tal de Fidel Castro é o detonador de uma mudança que ocorrerá no mundo e uma metáfora. Manuel Santos Iñurrieta assina a direção e o texto. O grupo percorre um caminho de ideias não convencionais, argumentos com engajamento ético e militância política, mirando o “vale tudo” pós-moderno.

Os personagens adotam posições divergentes quanto ao que ocorre naquela desconhecida ilha do Caribe e exacerbam suas posições políticas, desde a manutenção do colonialismo às utopias de libertação. É um dia histórico, a noite anterior da tomada de poder, no Palácio de Moncada. O grupo de jornalistas espera com ansiedade por notícias; um deles faz aniversário, uma entra em trabalho de parto, outro busca prever o futuro com sua bola de cristal.

Esse procedimento de adivinhar o amanhã também faz um paralelo com os fenômenos como os “simulacros” – que se tornam mais sedutores ao espectador do que o próprio objeto reproduzido – e uma mutação que conduz o real ao hiper-real. E principalmente a manipulação dos meios de comunicação.

A redação se torna também a toca de resistência peronista. Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa exalta o jornalismo “militante” contra o cinismo dos que defendem o simulacro vazio de realidade. Eles advogam o lema “Jornalistas recusam a mentir”. No jogo dramático a obra adota uma postura um pouco extremista. Os personagens proferem a frase “periodista que miente que se quite la vida”. Verdades e mentiras se misturam nos jogos teatrais. A peça cita as figuras Rodolfo Walsh e Jorge Masetti, dois jornalistas argentinos que se envolveram diretamente no espírito revolucionário, fundaram a agência de notícias Prensa Latina e se tornaram referências para seus pares.

O tom farsesco adota a política como algo indissociável da atuação humana. Nos quinze anos de trajetória (2001-2015), o bando sofreu e lutou contra os processos sociais e culturais do pós-neoliberalismo na Argentina. Os atores da El Bachin – Manuel Santos, Carolina Guevara, Jerome Garcia, Julieta Grinspan, Marcos Peruyero e Federico Ramón fazem da política a poética do palco, apontando para as contradições do capitalismo.

A companhia trabalha a partir do dramaturgo alemão Berltod Brecht e seu teatro político. E em Fidel Fidel. Conflicto en la prensa hibrida com a pop teatralidade, realismo crítico, o expressionismo, o hiper-realismo, o absurdo, a história e a metateatralidade. Humor e ironia escorrem entre gestos e falas.

Os personagens elaborados a partir da caricatura, do grotesco, dos velhos cômicos, formam seres absurdos, acelerados, que parecem manipuláveis em seus gestos como os bonecos do teatro de mamulengo, figuras atravessadas pela teatralidade máxima. Com suas perucas pretas diferentes de cabelo, seus figurinos de tonalidade cinza, inclusive para o Papai Noel. A iluminação joga com o contraste, com a semiescuridão, promovendo recortes como ocorrem nas edições no jornalismo.

Entre diálogos disparatados, o grupo refaz as dobras da história e utiliza fontes de áudios conhecidos, fotos e gravações e vídeos, traçando ligações também com mundo em que vivemos. Nesses tempos chamados pós-utópico, a El Bachín revê as utopias. Se algumas falharam, como a utopia socialista de gerar sociedades justas e sem classes, parece que o grupo aponta para o que Paulo Freire chamou de utopias minimalistas, aquelas que realizam o “possível viável”.

Humor crítico sobre processo civilizatório

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo La expulsión de los Jesuitas, da Tryo Teatro Banda, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

16 de novembro de 2015

Os efeitos lúdicos inscritos no jogo teatral do espetáculo La expulsión de los Jesuitas, percorrem, por meio do riso, uma crítica cáustica ao processo civilizatório no Chile – e em paralelo a outros países latino-americanos. O cômico, como sabemos, perturba e atiça reflexões. A galhofa de circunstâncias sinistras consente a crítica e, posteriormente, a ponderação. A companhia Tryo Teatro Banda, do Chile, opera um novo olhar sobre o próprio país e sua história em espetáculos que combinam música ao vivo, atuação, e arte dos menestréis, apelando para o humor com perspectiva satírica em relação a quem ocupa o poder. Uma poética perseguida pelo grupo em suas investigações. Com seus corpos e vozes, os integrantes buscam a expressão extrema, com habilidade nos truques e principalmente na execução de vários instrumentos musicais ao vivo.

Em La expulsión de los Jesuitas, com texto de Francisco Sánchez e Neda Brikic e direção de Andrés del Bosque, a chave bufonesca alcança a escala delirante. Na peça, os religiosos da Companhia de Jesus chegam ao Chile (1593) para catequisar índios, espanhóis e chilenos e acabar com a Guerra de Arauco. Mas o Rei da Espanha, a quem eles defendiam, expulsa os jesuítas em 1767. A peça é inspirada em várias fontes, inclusive o Tratado de Artes Cênicas (1727) do jesuíta alemão Franz Lang, considerado um verdadeiro tesouro. No elenco estão os atores Daniela Ropert, Alfredo Becerra, Eduardo Irrazábal, José Araya e Francisco Sánchez. Eles se multiplicam em alguns papeis e também tocam vários instrumentos com maestria.

O espetáculo perpassa por uma temática religiosa e explora, com seus personagens alegóricos, a doutrinação. A carnavalização, a partir dos pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin, expõe os conflitos e interesse de vários segmentos que chegaram ao Chile para se aproveitar de suas riquezas. Com a carnavalização na cena, a trupe dá voz ao grotesco e ao obsceno, num tempo que não é trágico, nem épico, nem histórico. E provoca um riso profundamente ambivalente. O sério-cômico carrega a crítica da formação de povo. Os traços dos personagens também estão impregnados da ausência de enobrecimento em suas ações. A comicidade é explorada nos vícios de todos os personagens. A ética cristã é desmontada. Os representantes da Igreja Católica também estão em disputa por poder e a cena em que o jesuíta se arrasta aos pés do rei para exigir exclusividade perante outras congregações é emblemática.

La expulsión de los Jesuitas imprime um tratamento humorístico às questões mais cruciais desse processo colonizador, em tom vivo e alegre. Traz a excentricidade carnavalesca e explora o mundo com um grande teatro em que os personagens, sem psicologia aprofundada, resvalam para a caricatura. Mas esses tipos provocam atinada crítica não apenas dos episódios do passado, mas nas questões do presente, como advertências ferinas sobre o mundo contemporâneo. E conjugam idioma indígenas, com espanhol, e passagens em latim e inglês para promover uma vitalidade de linguagem. Todos são satirizados. Suas tiranias e pequenas desonestidades, a ambição, os desvios e as luxúria. Os desmandos da fé e de outros poderes.

A companhia trabalha de forma alucinante, eletrizante, a equação entre jogo e riso. As figuras da peça remetem ao trickster, herói cômico de mitos indígenas norte-americanos, transgressor que usa de trapaças para abiscoitar seus alvos. A noção trickster aponta atualmente, na antropologia, para uma pluralidade de personagens localizados em várias culturas. Segundo Renato da Silva Queiroz, em O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster[1]: “Em geral, o trickster é o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, protagonista de façanhas que se situam, dependendo da narrativa, num passado mítico ou no tempo presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão de boas e más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os, despertando-lhes, por consequência, sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de indignação e temor, por outro.”

Os personagens da montagem guardam o caráter irreverente, apresentam laços estreitos com o trickster, com seus desvios e o ridículo como dispositivo, que detona o riso crítico. Isso fica mais evidente no papel do Padre, mas se contamina nos outros personagens de forma mais densa ou diluída. Os artifícios do jogo começam pelo texto, ganham forma e força na interpretação do elenco que se vale de truques performáticos, gestuais e mímicas que remetem à licenciosidade como danças vulgares, de aproximações com santos da Igreja Católica. E principalmente porque deixam espaços par o exercício imaginativo do espectador.

[1] QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster. In: Tempo Social; Revista Social, USP, São Paulo, Volume 1.

Em busca de um novo homem

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

16 de novembro de 2015

O peso da masculinidade imposta historicamente pode despedaçar os órgãos de um cabra. Diante de tanta pressão, o cara pode perder, junto com o paradigma tradicional de virilidade, seus pedaços pelo caminho. O prejuízo finde a identidade. Extravio ou privação de pernas, fígado, braços, pênis, olhos que foram arrebatados com força (ou astúcia). É de forma radical e poética que o grupo A motosserra perfumada trata dessas questões. O coletivo arrisca uma pesquisa nos limites entre o teatro a e performance. Na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, a trupe estreou o primeiro espetáculo. A montagem Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou é um experimento híbrido, à beira da exaustão física e spoken word, essa palavra falada que ganhou força na cultura Hip Hop nos últimos tempos.

Depois da apresentação no Centro Cultural São Paulo, a peça começa nesta semana uma temporada no Subterrâneo Theatro Municipal, espaço underground paulistano e a moçada garante que lá o espetáculo vai proporcionar uma experiência mais radical, com a inserção de conteúdos mais fortes. A produção recomenda que o público use calçados fechados. Os personagens quebram coisas como vidros e tijolos.

Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou tem texto e direção de Biagio Pecorelli, que está no elenco do programa e é autor do livro de poemas Vários Ovários, publicado pela editora independente Edith. A peça é de uma verborragia apaixonante e questionadora dos desejos e explora as contradições dessa crise do masculino.

As performances são exibidas num longo corredor formado por espectadores dos dois lados. No centro, nesse tapete imaginário, os atores atuam. Uma banda, de um dos lados desse corredor toca rock, derrama poesia, fantasias, fragmentos de vidas.

Matheus, um homem despedaçado que persegue o que perdeu na vida, é defendido por vários atores. Ele quer recuperar seus olhos, entre outras partes do corpo, para conseguir chorar. Nesse percurso imaginário ele bate à porta de ex-namoradas, de garotos (de ou sem programa) que encontrou pelo caminho para matar o tédio.

Entre fios de recordações, estilhaços de mágoas, um quebra-cabeças é erigido nessa cidade “onde os fracos não têm vez”. A cena traz as sujeiras de cacos, de restos de consumo, a fragilidade de um homem frente a virilidade solicitada do vale-tudo do capitalismo da selva de pedra. Seus personagens caminham com suas incertezas desafiando os discursos de verdade e de opressão.

Uma mulher com uma preleção fascista encarna em sua fala aspectos retrógados que ameaçam a democracia. Seu discurso se posiciona contra mulheres libertárias, contra o aborto, as relações homoafetivas, as várias etnias, e defende uma arte absolutamente mercantil. Ela parece ter surgido do nada, como as vozes que ecoam pelo país em suas posições atrasadas.

Esse corpo masculino que padece é exposto em suas partes em ganchos de frigoríficos dispostos no cenário. As demandas contemporâneas produzem fragilidades no campo subjetivo. As relações efêmeras, a situação caótica, essa vida fragmentada produz instabilidade em todos. Mas esse masculino abalado em sua identidade viril abre espaço para essa investigação em Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou. Os atributos de coragem e valentia, do super-herói provedor, cede lugar a um mundo de sentimentos na peça, onde a fragilidade permite reflexões sobre guerras e violações, acidentes, condutas e sociais, atitudes sexuais.

O espetáculo reforça que feminilidade e masculinidade são construções culturais que sobrevivem em um determinado contexto. As tensões e conflitos podem gerar o desamparo. Como diz um trecho do texto, essas figuras correm sem cinto de segurança, usam aditivos para dar mais sentido à vida, procuram o amor com poesia, mas sem uma suposta caretice. Depois de tudo isso, alguém pode botar o pé no freio e chamar para a real.

A Motosserra Perfumada é formada por Alex Bartelli (ator e produtor), Biagio Pecorelli (poeta e ator), Camilla Rios (atriz), Felipe Vasconcelos (artista visual e performer), Hugo Cabral (pesquisador, cenógrafo e figurista), Jonnata Doll (ator e músico), Júlio Castilho – “Feiticeiro Julião” (músico) e Paula Micchi (atriz). Em outubro de 2014 o grupo foi contemplado pelo edita “PROAC – Primeiras Obras”, promovido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, para a montagem do texto inédito de Biagio Pecorelli.

ATUALIZAÇÃO:
Infelizmente, a temporada do espetáculo foi cancelada. No último domingo (15), o local onde aconteceriam as apresentações, a passagem subterrânea da Rua Xavier de Toledo, no Anhangabaú, foi invadido por integrantes de um movimento de ocupação intitulado Coletivo Laboratório Compartilhado TM13. De acordo com o grupo A Motosserra Perfumada, que prestou queixa na delegacia, os cadeados do local foram arrombados, os camarins foram revirados, sumiram objetos cênicos, figurinos, dinheiro, além da bebida que estava estocada para ser vendida durante a temporada. O dinheiro da bilheteria e da venda da bebida serviria para manter as apresentações, já que o grupo não teve apoio para temporada.

Confira aqui a carta aberta do grupo A Motosserra Perfumada.

Rios de carne, osso e poesia

Foto: Jennifer Glass.
Foto: Jennifer Glass.

Crítica a partir do espetáculo A cidade dos rios invisíveis, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

Por baixo do cimento que reveste boa parte das grandes cidades brasileiras, rios invisíveis correm, como podem, em direção ao mar. Muitas vezes deslocados de seus leitos naturais, tais rios ganham, sob a superfície da cidade, fisionomias que em muito se diferem das nascentes que, perto ou longe dali, lhes dão origem. E quanto menor é o leito, quanto maior é a impermeabilização, mais forte se torna a correnteza desses rios, que sobrevivem contra tudo e contra todos, em busca de um mar que, no meio ou no fim da história, lhes possa acolher.

Sobre o mesmo cimento que endurece e impermeabiliza as grandes cidades, correm outros rios. Às vezes feitos de metal, correndo sobre trilhos que conectam os centros às periferias. Às vezes feitos de carne e osso, correndo fortes, ainda que cansados, em longos trajetos que ligam a casa e o trabalho, deixando pouco tempo para aspectos da existência que ultrapassem a mera e árdua luta pela sobrevivência. É sobre todos esses rios, ao que parece, que se constitui o espetáculo “A cidade dos rios invisíveis”, realizado pelo coletivo Estopô Balaio (de) Criação, Memória e Narrativa, com sede no bairro Jardim Romano, na Zona Leste São Paulo.

Construído a partir de um longo diálogo entre moradores do bairro e artistas que há cinco anos o escolheram como território de trabalho e inspiração, o espetáculo começa em uma estação de trem situada no centro da capital paulista. Nessa estação, somos convidados a embarcar numa viagem em direção à periferia da cidade, onde se concentram muitos daqueles que apostam nos centros urbanos como destino após deixarem para trás suas nascentes. Damos início, então, a uma clara operação de deslocamento, tanto em relação às protegidas salas geralmente associadas ao acontecimento teatral, quanto à própria vivência da cidade.

Ao longo de mais ou menos 40 minutos, somos estimulados a experimentar a viagem como uma experiência estética, sensorial e repleta de sentidos, embalada por uma contínua peça sonora a que temos acesso por meio de fones de ouvido distribuídos no início do espetáculo. Estruturada a partir de uma complexa composição entre canções, narrações poéticas, sons de rio e depoimentos de moradores do bairro Jardim Romano, a peça se vale de simultaneidades e justaposições para estimular no espectador uma atitude ao mesmo tempo atenta e relaxada, capaz de converter em experiência e vida o tempo geralmente “perdido” no transporte público.

Como um dos eixos dessa peça sonora, figura a saga dos “pequenos deuses” que habitam as periferias das cidades, continuamente criando e recriando seus espaços de vida. Enquanto parte dessas narrativas chama atenção pelo lirismo com que trata a vivência da periferia, outra parcela apresenta de modo direto os desafios enfrentados pelos moradores dessas comunidades, dentre os quais ganham destaque a difícil convivência com chuvas e enchentes.

Estimulados pelo que ouvimos e também pelo que vemos através das janelas do trem, lembramos que as cidades estão em permanente construção. Seguindo o curso do rio de metal, percebemos ao redor tanto pequenas casas de alvenaria construídas com as próprias mãos quanto conjuntos habitacionais que, sob o ritmo acelerado do trem, por vezes se assemelham a complexos penitenciários. Ao longo do caminho, também há espaço para alguns respiros verdes na paisagem, assim como para estruturas industriais abandonadas cujas dimensões criam um potente contraste em relação às habitáveis “caixas de fósforo” que vemos em diversos pontos do trajeto.

Ao chegar na estação Jardim Romano, no entanto, deixamos de ver a cidade à distância e passamos a fazer parte dela. Atores e espectadores formam, então, um mesmo rio do qual, no qual pouco a pouco desembocam outros cursos d’água. Resultado de uma colaboração entre atores “estrangeiros” que conduzem a viagem de trem e atores “nativos” que nos recebem no bairro, o espetáculo propõe, daí em diante, uma espécie de cortejo por ruas e becos da comunidade, tendo como destino final o rio que delimita a outra margem do bairro. Devido à forte chuva que caía no dia da apresentação que gerou esta crítica, entretanto, foi necessário adaptar o espetáculo à área externa da sede do coletivo, onde nos acomodamos, juntos, em uma espécie de sarau.

A partir de procedimentos relacionados ao teatro documentário, somos brevemente introduzidos pelo diretor do espetáculo, João Júnior, a fragmentos de histórias de diferentes moradores do bairro, os quais deixam fluir suas correntezas em nossa direção. Donos de suas próprias narrativas, tais moradores nos apresentam, por meio de poesias, músicas, performances e breves cenas teatrais, a realidades marcadas pela resistência aos caprichos do capital e das grandes cidades, assim como pela lida com uma natureza que sazonalmente reivindica seu espaço.

À problemática convivência com chuvas e enchentes, inicialmente apresentada como eixo central do espetáculo, novas camadas temáticas se acrescentam, como, por exemplo, a migração de nordestinos para as periferias da capital paulista. Imersos em uma encenação que ganha força à medida em que revela seu extracampo, nos tornamos, a cada instante, mais integrados ao contexto social que nos recebe. Ali o orgulho se sobrepõe à opressão, assim como uma inegável sensação de pertencimento parece compensar os deslocamentos – geográficos e sociais – comuns aos participantes do acontecimento teatral e performático paulatinamente constituído entre atores e espectadores.

Reiterando, na poesia e na prática, a força da vizinhança e do senso de comunidade entre aqueles que habitam as periferias e regiões mais pobres de qualquer cidade, nos percebemos, pouco a pouco, como parte de um leito simbólico por onde vigorosos rios invisíveis, daqueles feitos de carne, osso e poesia, podem, enfim, correr e desaguar num mar de sentidos e sentimentos que, sempre vale lembrar, são comuns a todos nós.

 

Publicado no site da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo:

http://www.cooperativadeteatro.com.br/10mostra/blog/