Arquivo da categoria: Críticas

Sensualidade de corpos-poemas

Foto: Nityama Macrini
Foto: Nityama Macrini

Crítica do espetáculo Los Cuerpos, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2015

31 de agosto de 2015

O espetáculo Los Cuerpos transporta uma carga erótica desconcertante. Uma energia masculina, viril. Corpos jovens, vigorosos, com técnica dominada. São dois homens que aparecem com cabeça de cavalo, numa visão quase mítica vinda das sombras. São centauros reversos. Força de guerra entre civilização e barbárie. A coreografia, interpretada e dirigida por Ramiro Cortez e Federico Fontán, ressignifica a cada momento nessa proposta impactante. O duo de dança contemporânea foi vencedor da categoria de Projeto a Desenvolver na Bienal de Arte Jovem de Buenos Aires, Argentina, de 2013. Depois disso já frequentou vários festivais.

Com o palco vazio, os jovens criadores inundam a sala com esfinges. Desejos que explodem. Luta corporal. Desafios das carnaduras. Eles colidem, batem, provocam, tocam, se arrastam, beijam. Instinto de corpos selvagens. Jogo de dominação. Narciso e seu espelho.

Nesses tempos de vigília do corpo e de seus desejos enquadrados em códigos de consumo, a coreografia de Ramiro Cortez e Federico Fontán se manifesta como posicionamento político pela liberdade mais pura, por impulsos indomáveis.

A maioria dos movimentos é realizada no chão. Eles trabalham em vários eixos em empreitadas árduas. A brutalidade sobrepõe à sutileza nessa aposta em que há o tempo da fusão dos corpos.  A dinâmica do duo desperta paixões.

Eles traçam uma cena corajosa, com gestual incomum, por vezes contínuo, repetitivo. Em situações insinuantes de invasões de territórios, com braços ou pernas, os bailarinos empreendem lances difíceis. Provocam um ao outro. Seus ventres se contraem e expandem.

Com o tórax desnudo e usando a apenas calças pretas (em figurino de Alejandro Mateo), eles transpiram libido e fornecem munição para a fantasia do espectador.

A iluminação de Paula Fraga conduz o olhar da plateia, clareando os trechos do palco para revelar situações ou deixar os corpos na penumbra.

Amantes. As cabeças equinas atuam como máscaras que abrem comportas do desejo. Fisicalidade animal. Corpos exaltados. Respiração ofegante. Expressão de violência erótica. Eles desafiam seus próprios limites.

A pulsação, a batida, os deslocamentos são conceituais. Em uma operação de movimentos elegantes e fortes, um calcanhar de um deles é absorvido pela boca do companheiro. Eles prosseguem o movimento sem separar-se. O trajeto de ambos parece uma alavanca. É um jogo de energia, quando um deles tenta separar-se, o outro ataca sua presa. Eles chegam a fundir-se.

Há o gozo. Eles se debatem no chão separados. A música de Martin Minervini, eletrônica e minimalista, possibilita esses cortes abruptos. Tentativas de mudança de direção.

É de extrema plasticidade esses jogos que testam os limites de cada um. Insaciáveis pela dança, os corpos são carregados de densidades, sensualidade, timbres. As envergaduras traçam ousadias. E se renovam nesses corpos-poemas.

Uma peça-mediação ou “Hamlet adora o teatro”

Crítica de Hamlet – Processo de revelação do Coletivo Irmãos Guimarães

Cena contemporânea 2015

 

Mediação foi um termo bastante usado nos debates do Colóquio DocumentaCena de Crítica de Teatro, realizado há alguns dias no Leituras da Cena. Foi discutido o papel da crítica como mediação criativa na relação do teatro com o público na atualidade, diante da heterogeneidade das poéticas contemporâneas. Mas também podemos dizer que a mediação já é um papel do próprio teatro, sendo o espetáculo teatral uma mediação entre ideias imateriais dos artistas criadores e a materialidade da cena. Hamlet – Processo de revelação do Coletivo Irmãos Guimarães é um exemplo de explicitação disso. Não se trata de uma encenação da peça de Shakespeare, mas de uma apresentação comentada de sua trama e de uma hipótese sobre suas questões dramatúrgicas.

Outro solo da programação poderia se aproximar desse Hamlet, a montagem de Ricardo III, em que o ator Gustavo Gasparani apresenta a trama e faz cenas, interpretando diversos personagens. Mas a criação dos Guimarães com Emanuel Aragão parte de premissas completamente diferentes. O ator, que também assina a dramaturgia, não faz personagens, nem cenas, com exceção de alguns solilóquios do protagonista. Nem é proposta da peça passar por todas as cenas. Muita coisa fica de fora, sem perdas. Ofélia não é uma questão, Fortimbrás não é sequer mencionado. O foco é o Hamlet, as questões existenciais que comandam a trama e a razão do postergar-se da ação. Algumas imagens, como a descrição da violência do mar nas falésias de Elsinor, têm um papel mais potente na construção de uma contextualização do enredo do que teria uma exposição minuciosa da narrativa com todas as suas subtramas.

Foto do programa da peça.
Foto do programa da peça.

Estamos falando da apresentação de uma leitura crítica, ou seja, uma interpretação que faz escolhas, que confere ênfases, que assume um posicionamento diante de um objeto, que toma para si uma dimensão autoral do Hamlet. Isso fica claro quando logo no início o ator diz que eles precisaram fazer uma nova tradução do “ser ou não ser”. Ele apresenta argumentos para escolhas diferentes daquelas que já conhecemos e mostra a tradução, que está no programa da peça, sem fazer pra valer, por enquanto, o momento clássico e temido da tragédia de Shakespeare. O deslocamento desse solilóquio na trama é como uma defesa, uma evidência, a argumentação definitiva da hipótese sobre a peça que é apresentada na tradução desse texto nuclear do entendimento que se tem sobre o Hamlet: exemplo preciso do que é uma ação de dramaturgia sobre um texto prévio.

Nos solos do protagonista, o ator começa falando sobre o que vai fazer, situando na trama aquele trecho que vai dizer, e desliza delicadamente para uma “atuação propriamente dita” (expressão que uso aqui na pressa, na falta de outra e com muitas ressalvas, por isso entre aspas). Sem dúvida, ele está atuando o tempo inteiro, mesmo que esteja fazendo a si mesmo, lançando mão de uma série de truques de atuar como se não estivesse atuando, mas nesses momentos ele passa a “fazer o Hamlet”, embora dando a perceber, apenas sub-repticiamente, que continua apresentando uma hipótese sobre a peça.

Em um texto mais longo e com maior tempo de elaboração, poderíamos fazer uma digressão sobre as ideias de verdade e revelação presentes nesse Hamlet. Emanuel apresenta Horácio como aquele que diz a verdade e aponta que Hamlet, quando se dirige à plateia, fala a verdade. O fantasma do pai procura o filho para contar a verdade. Hamlet diz que o teatro é capaz de fazer um criminoso confessar a verdade. A peça de teatro escrita por Hamlet e a subsequente reação de Claudio funcionam como uma comprovação de que o fantasma do pai disse a verdade. E temos, no subtítulo, a palavra revelação. Poderíamos pensar no conceito de aletheia, que diz respeito à verdade como desvelamento (um processo), que pode ser uma espécie de revelação, uma ideia de verdade que não é o oposto de mentira, mas a negação do esquecimento – uma questão seminal do personagem Hamlet. Mas isso vai ter que ficar para outra ocasião.

Por fim, vale comentar a ênfase da peça sobre o teatro. Antes de narrar a cena dos atores, Emanuel nos fala do quanto Hamlet adora o teatro, da proporção que o teatro tem na peça e do fato de que Shakespeare escreveu para si mesmo o papel do primeiro ator. Em certa medida, podemos ver a peça como uma homenagem, uma declaração de amor ao Hamlet e ao teatro a partir desse exercício de mediação sobre um clássico do teatro que também é cheio de mediações sobre o teatro. E nesse sentido esse Hamlet se aproxima de Teatro Invisível, do grupo Matarile Teatro, que esteve na programação do festival alguns dias atrás.

Outras observações poderiam ser feitas sobre a dramaturgia, como a ótima variação de extensão e ritmo na expansão ou condensação de diferentes partes da peça de acordo como a temperatura de cada ato, ou as pequenas idiossincrasias da dramaturgia de Emanuel Aragão, que no início e no final carimbam uma espécie de assinatura do dramaturgo, como se houvesse uma necessidade de colocar ali uma marca da filiação desse trabalho a projetos anteriores de sua autoria. Mas, passados os limites de extensão e prazo de entrega do texto, paramos subitamente por aqui…

Um encontro de teatro

Crônica da apresentação de Os idiotas, com o ator e diretor Sidiki Bakaba

Cena Contemporânea 2015

 

Antes de falarmos propriamente de Os idiotas, faço uma breve observação. Na programação do festival, a peça está apresentada como performance, o que pode causar mal-entendidos. Em francês, inglês e espanhol, performance pode querer dizer simplesmente espetáculo ou peça de teatro. Mas em português, quando falamos que vamos assistir a uma performance, estamos nos referindo a algum trabalho de performance art. O que Sidiki Bakaba nos oferece é uma peça de teatro, que não tem relação com a performance art.

Em ocasiões anteriores, tive oportunidade de conhecer um pouco (muito pouco, na verdade) do teatro de países africanos de língua portuguesa, que me pareceu bastante influenciado pelo Teatro do Oprimido de Augusto Boal, um teatro socialmente engajado que se entende como arma pedagógica. Nesta peça da Costa do Marfim, país africano de língua francesa, o compromisso com as questões sociais aparece como inspiração temática e o tratamento dado é mais literário do que dramático. Vemos ali um teatro reflexivo, que não é explicitamente político. O texto de Os idiotas é quase exclusivamente narrativo.

Foto: Rômulo Juracy.
Foto: Rômulo Juracy.

Os idiotas é um solo do ator e diretor marfinês de longa e bem-sucedida carreira no teatro e no cinema, Sidiki Bakaba, importante figura pública da Costa do Marfim. Trata-se de um espetáculo de dezessete anos atrás, que foi trazido de volta à cena especialmente para essa passagem de Sidiki por Brasília, para participar das atividades formativas do Cena Contemporânea com uma oficina para atores. Além de atuar, ele divide a direção com Khoffi Kwahulé.

A dramaturgia é estranha para a nossa cultura de texto dramatúrgico. Há um texto inicial que funciona como um prólogo, no qual um personagem (que vamos conhecer) é apresentado. Em seguida, entra o personagem, que vai contar histórias para um interlocutor invisível ao longo do espetáculo. Esse recurso do personagem invisível fragiliza a ação da peça, até porque não há uma preocupação da encenação em legitimar o código. Na verdade, não há um trabalho de encenação como o conhecemos, mas uma economia de recursos, que concentra toda a responsabilidade na presença do ator. Além disso, o registro de atuação de Sidiki também não é familiar. Para nós, espectadores de um festival, interessados no teatro contemporâneo internacional, com suas poéticas singulares, vemos em Os idiotas um teatro que parece não apenas de um lugar cultural distante, mas de outro tempo histórico.

Diante dessas constatações, logo de início é possível perceber que, para estabelecer um diálogo com o trabalho que se apresenta diante de nós, precisamos nos desfazer dos parâmetros que costumam nos acompanhar no teatro. Mas isso não é nada fácil. Assim, nos encontramos em uma situação de enfrentamento com o fenômeno teatral: precisamos lidar com o outro – outra linguagem, outra noção de teatro, outro contexto cultural.

Não à toa, a peça não está na programação de espetáculos e sim nos Encontros do Cena. Se o festival nos convida ao intercâmbio com artistas de diferentes países, precisamos entender que tipo de troca podemos fazer em cada caso. Mesmo assim, caberia uma melhor mediação, que pudesse contextualizar o teatro marfinense, a situação política do país e sua produção cultural.

Diante de Os idiotas, não sabemos a princípio em que território estamos nem se vamos conseguir nos deslocar para algum lugar de onde possamos co-habitar aquela ideia de teatro. Minha impressão particular é de que não consegui fazer esse deslocamento, não tive uma experiência estética, artística, mas tive uma experiência cultural: conheci um artista, um espetáculo, compreendi algumas questões relevantes para o seu meio cultural.

Houve uma série de problemas técnicos com as legendas. Isso provocou um atraso, o que fez com que alguns espectadores precisassem sair antes do fim. Mas as legendas também falharam muitas vezes durante a peça, especialmente na segunda metade, impedindo que os que não entendem francês acompanhassem a narrativa. E isso também fez com que muitos desistissem e fossem embora. Essa falha provocou a perda do valor literário do texto, perda significativa diante da poética narrativa da peça – motivo pelo qual chamo esse texto de crônica, não de crítica. Mas um grupo de espectadores ficou até o fim, mesmo não entendendo as palavras, e o ator, diligente, continuou o seu trabalho. E o que aconteceu ali no auditório do Museu Nacional de Brasília foi realmente um encontro.

Não se vai embora do teatro. Nunca se sabe o que nos reserva o final. Após os sinceros e dedicados aplausos, Sidiki nos apresentou uma breve fala sobre como ele vê o Brasil, seu desejo de se apresentar no país e a importância da sua passagem por aqui. Assim, depois de conhecer seu teatro e sua técnica, conhecemos também a ética de homem de teatro presente no seu discurso e no seu cansaço – e a ética do teatro nos circunscreve em um mesmo universo, viabilizando a transposição das fronteiras estéticas.

Montagem: operação crítica sobre ficções e desejos

Crítica da peça Brickman Brando Bubble Boom, do Agrupación Señor Serraño
Cena Contemporânea 2015

 

Para escrever um texto curto sobre Brickman Brando Bubble Boom, ou simplesmente BBBB, espetáculo do Agrupación Señor Serraño realizado em 2012 em parceria com o Centre d’Arts Escèniques de Terrassa e com o apoio de diversas instituições, é preciso concentrar-se em um recorte específico, tendo em vista que o espetáculo – barroco em sua multiplicidade de meios, temas e técnicas – oferece diversas possibilidades de entrada. Também é preciso abrir mão de fazer uma descrição mais generosa para o espectador que não viu a peca. O recorte específico desse texto é a observação da montagem – procedimento presente em várias camadas da construção da cena – como operação crítica nuclear do espetáculo.

A peça do coletivo da Espanha tem um motivo central, subjacente a todos os seus elementos: o anseio por um lar, que se desdobra no desejo da compra de uma propriedade, necessidade real mas ao mesmo tempo mais um paradigma de consumo capitalista. A partir daí, o grupo apresenta duas narrativas cruzadas – o que já se configura como montagem. Uma delas, a vida e os empreendimentos imobiliários de um personagem fictício da Inglaterra do século XIX, Brickman. Outra, a vida de Marlon Brando e sua lida problemática com a ideia de lar, família e suas excêntricas propriedades. Entre as duas biografias, montagens de cenas de diferentes filmes de Brando, dubladas ao vivo e legendadas de modo a parecer (jocosamente) a narrativa da vida de Brickman vivida no cinema pelo ator norte-americano. As duas biografias são contadas com imagens capturadas ao vivo de maquetes montadas na hora e de uma série de objetos, jogos, brinquedos e imagens replicadas de dispositivos eletrônicos. Essas imagens são mixadas ao vivo e projetadas em grandes folhas de isopor que, ao longo do espetáculo, servem como tela de projeção e elementos para montar uma casa de uma maquete de proporções humanas.

Foto: Alfred Mauve
Foto: Alfred Mauve

Com esses procedimentos e tendo a música ao vivo como estratégia para estabelecer uma atmosfera de diversão e despojamento, os artistas de BBBB, Alberto Barberá, Alex Serraño, Diego Anido e Pau Palacios, comentam os diversos regimes narrativos (a biografia, a narrativa ficcional, o documentário, a reportagem jornalística, a escrita da história) e imagéticos (o cinema mudo, os filmes dos tempos áureos de Hollywood, a TV dos EUA, o universo lúdico infanto-juvenil) com os quais lidamos no cotidiano. O agenciamento dessas narrativas e imagens, pelo procedimento da montagem, descontextualiza e recontextualiza o que mostra, provocando o olhar e o entendimento do espectador a rever tudo o que vê, a desconfiar das verdades construídas.

A proliferacão de pequenos detalhes técnicos do espetáculo, a quantidade de objetos e de imagens editadas, as numerosas tarefas que os artistas executam e a atmosfera de chiclete Bubble Boom: tudo isso funciona quase como artifício de distração. A peça é construída de maneira a dar a ilusão de que esses diversos dispositivos são a coisa em si, que trata-se apenas de uma dramaturgia de chistes pontuada pelo exibicionismo carismático de virtuosismos performativos e tecnológicos.

Até que as imagens reais da violência da polícia espanhola em atos de desapropriação imobiliária, em que pessoas reais são de fato expulsas à força de suas casas, com violência física perpetrada pelo estado, apontam rapidamente que, embora a peça tenha uma elaboração complexa de construção formal, o teatro que está se fazendo ali é um teatro que está no mundo. As questões da peça não se resumem aos seus próprios procedimentos. A breve duração da projeção dessas imagens e a escolha por colocá-las perto do final da peça são fatores determinantes para não torná-las explicativas. Ao mesmo tempo, elas redimensionam as imagens que vimos anteriormente e subvertem até mesmo o clima descontraído em que a peça enreda os espectadores.

Para encerrar, podemos dar mais um exemplo de como a montagem funciona como operação crítica e nos faz olhar com mais acuidade para as camadas de crueldade no que vemos todos os dias na TV. Não me refiro apenas às imagens literalmente violentas. A inserção de trechos do reality show Extreme Makeover – Reconstrução Total Home Edition (já houve uma versão do programa que reformava a aparência de seres humanos!) evidencia a violência perversa da imbecilização das pessoas, quando um programa criado para vender produtos de reforma, construção e decoração explora a miséria alheia ao forjar um espetáculo de idiotas, que vêm suas casas miseráveis se transformarem em show room de ambientes decorados como parques temáticos.

Com a performatividade festiva do teatro contemporâneo e o perspicaz agenciamento das imagens, BBBB é um comentário rascante e discretamente sombrio sobre o mundo em que vivemos e as ficções que inventam os nossos desejos.

Um Shakespeare acessível

Foto: Rômulo Juracy
Foto: Rômulo Juracy

Crítica da peça Ricardo III, com Gustavo Gasparani, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2015

27 de agosto de 2015

Ao revelar a potência da maldade humana, Richard III se tornou uma das figuras mais fascinantes da galeria de William Shakespeare. Explorada pelos mais diversos ângulos e distintas abordagens, essa tragédia pelo trono da Inglaterra já rendeu montagens e filmes memoráveis. A encenação com Gustavo Gasparani, um dos fundadores da Cia dos Atores, com direção de Sergio Módena, é reduzida a um único intérprete, que narra e abarca os principais papéis.

A cena de Ricardo III é despojada. Uma extensa lousa ao fundo exibe a árvore genealógica dos Plantageneta. Enquanto o público se ajeita no auditório, Gustavo fala feito um professor sobre a Guerra das Rosas – o confronto de trinta anos (1455-1485) que contrapôs as castas dos York (cujo símbolo era a rosa branca) e os Lancaster (a rosa vermelha). Gasparani também avisa que vai precisar da participação da plateia em algumas cenas e que conta com a imaginação dos espectadores para preencher os trechos narrados, da Inglaterra na Idade Média, com seus castelos, trajes palacianos e batalhas sangrentas.

O protagonista shakespeariano quer ser rei. Mas entre ele e o trono existem algumas figuras como prioridade. O rei Edward IV e George, Duque de Clarence, seus irmãos, os dois filhos do rei, ainda meninos.

Além do quadro branco, o cenário, assinado por Aurora dos Campos, é constituído por um cabideiro, uma mesa, uma cadeira, uma luminária e uma dúzia de canetas pilotos. Esses objetos podem assumir função de personagem em algum momento. A iluminação de Tomás Ribas rompe um pouco o clima de sala de aula. O figurino, assinado por Marcelo Olinto, é composto por uma calça básica, uma blusa cinza e tênis.

Com algumas nuances, gestos, movimentações de palco e inflexões de voz, Gasparani assume as principais figuras do espetáculo, do vilão principal às suas vítimas. E narra na acepção do narrador benjaminiano, de sugerir experiências, aproximando inclusive da realidade brasileira, atual ou remota. Ao destrinchar os bastidores da política, o ator ironiza que aquelas intrigas, imoralidade, lutas pelo poder são coisas da Idade Média. Até parece.

Movido pela egolatria, vingança e perversidade e usando da sedução, dissimulação e cinismo, o personagem-título faz de sua inteligência e habilidade de manipular as pessoas armas robustas para chegar ao seu destino.  Para compor o invejoso e corcunda Duque de Gloucester o ator inclina o quadril, manca ao andar, torce uma das mãos.

É corajosa a iniciativa de erguer a difícil história de Ricardo III com recursos mínimos. E nisso há vantagens e desvantagens. O intérprete consegue prender a atenção da plateia que acompanha e vez por outra é questionada se está entendendo a trama. É uma montagem que atende bem a grupos não iniciados na complexidade da peça. Também fascinante é a experimentação entre espaços, os diálogos dramáticos e os comentários e reflexões aproximando da contemporaneidade. Desse contraponto entre diegese e mimese.

A tradução em verso de Ana Amélia Carneiro de Mendonça rasga o palco praticamente vazio de beleza em várias ocasiões. E é muito bom que Ricardo III chegue numa linguagem acessível. Inclusive sustentar que a natureza humana, em seu lado mais sombrio, é muito suscetível perante o mais insignificante vislumbre de poder até hoje.

Mas por outro lado estar sozinho para se multiplicar em tantos personagens traz limites. Ao compor a personagem corcunda, deformada e maquiavélica de Shakespeare dividido com dezenas de papeis, inclusive os femininos, utilizando tão poucos elementos compromete a intensidade. O ritmo exigido pela multiplicação dilui a vilania, a maldade do protagonista. Ao exibir esse “horrendo conto” Gustavo Gasparani exerce mais sedução do que seu protagonista.

Da inquestionável utilidade do azul

Crítica da peça Teatro invisível do Matarile Teatro

Cena Contemporânea 2015

 

A peça do grupo Matarile Teatro, de Santiago de Compostela, na Galícia, uma variação de peça-palestra (talvez uma peça-conversa), traz um depoimento em palavras e imagens da atriz Ana Vallés, que também assina a direção e o texto (com Javier Martínez Alejandre), em parceria com Baltazar Patiño, que está na ficha técnica como criador de som, luz, cenografia e como ajudante de direção. O mote disparador da criação do espetáculo é o conjunto de perguntas cretinas que comumente se faz para as pessoas de teatro – pelo visto no mundo todo. São elas: “Por que você faz teatro?”,  “Por que você continua fazendo teatro?” e “Por que você faz teatro dessa maneira?” O “dessa maneira” é o teatro invisível do título, que não faz concessões a expectativas alheias à sua razão de ser.

Essa última pergunta, especialmente, é feita com o (invisível) dedo em riste do pensamento pragmático que defende uma noção utilitarista das coisas, como se houvesse de fato um sentido para a vida em si, uma utilidade comprovada da nossa passagem pelo mundo. A atriz se pergunta por que o teatro deveria ter alguma utilidade, se não questionamos utilidade do amor, da amizade, do azul.

Ana responde rememorando situações e experiências do teatro e da sua vida enquanto artista, contando, entre imagens intermitentes de morte, encontros tão furtivos quanto memoráveis com Kazuo Ohno e Gilles Deleuze, citando filósofos e textos, como o ensaio de Georges Didi-Huberman sobre Pasolini e seu lamento sobre a extinção dos vagalumes, a invisibilidade destes ou a perda da capacidade de vê-los. As referências aos pensadores de teatro aparecem na forma de citações narrativas e visuais, como o espaço cênico que remete a Peter Brook, as imagens de Tadeusz Kantor e a bem-humorada história da viagem à Cracóvia para o enterro do encenador polonês.

Foto: Humberto Araújo.
Foto: Humberto Araújo.

Ana nos apresenta uma espécie de mapa das suas referências e de seus encantamentos, talvez no estilo do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg. O agenciamento memorialístico das imagens – trazidas das gavetas de uma mesa de trabalho e produzidas na cena – oferece ao espectador a possibilidade de fazer sua própria costura imprevista, percebendo a irrupção das sobrevivências de suas memórias do teatro – que, sendo de teatro, não são apenas pessoais, como nos prova o espetáculo. Elas encontram ressonância e pertencimento a uma história de vivência tão particular quanto coletiva, que sobrevive ao tempo em larga medida pela passagem oral do conhecimento e da experiência.

Experiência talvez seja uma palavra-chave para uma resposta possível à pergunta sobre a razão de ser do teatro. Ouvimos de muitos pensadores da vida moderna, como Walter Benjamim, e da atualidade, como Jorge Larrosa, sobre a defasagem da experiência na vida urbana contemporânea. Isso se deve à cada vez mais dispersa experiência do tempo e à redução do convívio presencial, com a crescente mediação tecnológica dos meios de comunicação e transmissão de conteúdos. Há expressões que exemplificam essa lógica, como “tempo é dinheiro” ou a ideia mesma de “perda de tempo”. A peça do Matarile Teatro, com sua lida tranquila com o tempo e o valor que dá ao compartilhamento oral da vivência na arte é um exemplo de uma obra  que convida à experiência – e, naturalmente, ao teatro. A criação de Teatro invisível é uma forma – estética e política – que Ana encontrou de cuidar do teatro.

Vale ainda fazer a ressalva de que esse teatro supostamente invisível só não aparece nas narrativas imediatas dos sucessos forjados, que validam a si mesmas por uma visibilidade mentirosa, que têm a durabilidade e a relevância das “notícias culturais” satirizadas pela atriz em determinado momento. Pois é esse teatro invisível que entra para a história, que alimenta o teatro e nos habilita a ver de novo os seus vagalumes – ou simplesmente nos coloca de novo no melhor lugar para vê-los.

Sabemos que a palavra utilidade, usada no título desse breve e apressado texto crítico, não importa para quem faz teatro, amor, amizade ou o azul. Mas está ali como provocação: a presença mesma do azul cancela a utilidade da ideia de utilidade.

Exposição e partilha da condição humana

Crítica da peça Isso te interessa? da companhia brasileira de teatro

Cena Contemporânea 2015

 

“Cada homem traz consigo a forma inteira da humana condição.”

Michel de Montaigne

 

A montagem de Isso te interessa? é parte da proposta da companhia brasileira de teatro de traduzir e encenar peças de autores e autoras determinantes da dramaturgia contemporânea que são inéditos e até mesmo desconhecidos no cenário teatral brasileiro. Até hoje, o grupo realizou montagens de autores como Philippe Minyana, Jean-Luc Lagarce, Ivan Viripaev, Joël Pommerat e, o mais recente, Hanoch Levin – embora seja preciso fazer a observação de que o espetáculo mais contundente do grupo é fruto de uma dramaturgia original, assinada por Marcio Abreu: Vida.

O título da peça em francês, Bon, Saint Cloud, faz menção a um balneário francês para o qual um dos personagens deseja viajar. Não apenas pelo fato de que o público brasileiro não tem Saint Cloud como referência, a opção por dar um novo título à peça de Noëlle Renaude enfatiza a dimensão de leitura da encenação e do projeto mesmo de realização da montagem. A encenação é um depoimento sobre a peça, uma leitura da peça, um gesto que dá forma e voz a um texto prévio escrito em outra língua, em outro contexto cultural. A ideia mesma de tradução ganha ênfase nessa passagem de um título a outro, colocando em jogo a dimensão autoral e de pensamento da tradução, assinada por Giovana Soar e pelo diretor, Marcio Abreu.

A saga familiar apresentada na trama da peça remete à narrativa romanesca, ou seja, ao romance enquanto gênero literário, mas se apresenta de modo bastante teatral na opção da dramaturgia por colocar as rubricas na fala dos atores, unindo o que seriam as indicações de movimentação à fala dos personagens. O endereçamento direto, lúdico e bem-humorado ao público presente colabora para criar vínculo entre atores e espectadores, enfatiza o convívio, a ideia (obvia mas nem sempre evidente) de que os artistas estão querendo falar com os espectadores – o que o título em português já anuncia com clareza.

O cenário em perspectiva, de Fernando Marés, parece fazer um comentário sobre o olhar como um olhar para a arte, uma forma de ver que é característica da arte, uma vez que a perspectiva é uma elaboração formal, uma técnica de representação do espaço em um quadro. A iluminação escura de Nadja Naira, sua aposta firme na penumbra como tom geral da visualidade da cena, cria – em sintonia fina com a trilha sonora de Moa Leal e Marcio Abreu – uma atmosfera melancólica em contraste com o anseio por uma vida solar em um lugar amplo e arejado como a idílica ideia de Saint-Cloud.

Foto: Junior Aragão.
Foto: Junior Aragão.

O trabalho dos atores Giovana Soar, Nadja Naira, Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini faz uma decupagem das camadas de enunciação da atuação no teatro. A transição sem quebras entre personagem e narrador constrói um registro que contém em si todas as possibilidades: a demanda da peça é por um ator em estado de prontidão, livre de psicologismos e de construções corporais que buscam mimetizar corpos fictícios. As atuações colocam em jogo o banal da vida cotidiana nos diálogos e situações das personagens em oposição às intensidades e variações de temperatura no tratamento dado às falas dos atores, que muitas vezes revelam mais “as intenções” dos personagens nas falas narrativas que nas falas dialógicas.

Todo esse conjunto de escolhas formais e preparo técnico viabilizam uma convivência entre observação crítica e identificação emocional por parte do espectador. Ao mesmo tempo que a artificialidade da encenação nos oferece algo a se pensar sobre, a opção radical pela nudez sem rodeios dos atores nos convida a uma identificação com a humanidade dos personagens.

A nudez pode ser vista como um traço da via pictórica da encenação, afinal o nu é objeto de estudo da beleza e do humano na pintura e na escultura desde a Antiguidade Clássica e que, no teatro brasileiro, costuma ter um tratamento completamente diverso daquele que vemos em Isso te interessa? A beleza e a solidão da nudez, a complexidade e a singularidade desse organismo que é o corpo humano, fazem dessa escolha improvável um artifício de precisão cirúrgica para dar a ver e escutar uma narrativa que mostra nossa tendência a repetir comportamentos e hábitos como um coletivo animal. Por um lado, nos parecemos enquanto corpus social e cultural, mas por outro, somos absolutamente únicos e solitários em nossos corpos biológicos perecíveis. A nudez nos iguala e nos resume enquanto espécie na mesma medida que nos individualiza.

A nudez em Isso te interessa? nos olha e nos agarra, fisgando-nos pela consciência da partilha da nossa bela e comovente humana condição.

A dor e a delícia de ser o que é

Foto: Júnior Aragão
Foto: Júnior Aragão

Crítica da peça A geladeira, da Companhia AntiKatártiKa Teatral (AKK), por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2015

26 de agosto de 2015

Nelson Baskerville diretor de A geladeira argumentou em uma entrevista que qualquer obra que se posicione a favor dos “direitos LGBT é de extrema importância, pois o preconceito é um erro e não apenas uma piada. Ele mata”. Copi, pseudônimo do franco-argentino Raúl Natalio Roque Damonte Botana, (1939-1987) impregnou seu trabalho de um caráter transgressor e advogou pela plena liberdade de se ser o que é. Esse dado contra o preconceito aufere relevância no Brasil em que grupos fundamentalistas ganham espaços de poder e carregam atrás de si fiéis que acreditam nas asneiras preconceituosas, inclusive na “cura gay”.

A crítica ao preconceito é uma linha de uma rede dessa montagem da companhia AntiKatártiKa Teatral (AKK), com o ator Fernando Fecchio. Mas não é a única. A geladeira envereda por questões caras da nossa modernidade líquida, de identidades estilhaçadas e de solidão que beira ao absoluto.

“O texto traz a marca da caricatura, do desenho cômico, que busca marcar o gestual, ‘fixar’ expressões ou situações, como se o tempo congelasse neste quadro, mas se seguisse o gesto pela sua retomada no quadro imediatamente seguinte. Certo ‘exagero’, típico da caricatura, é artifício para se vislumbrar a realidade aumentada, potencializada em todas as possibilidades.” Atesta a poeta e pesquisadora pernambucana Renata Pimentel sobre a obra do escritor, dramaturgo, cartunista e ator travesti, em seu livro Copi – Transgressão e Escrita Transformista (Editora: Confraria do Vento, 2011).

A produção de Copi é difícil por estar revestida de grossas camadas culturais. Baskerville aponta para alguns fundos falsos na peça. O primeiro plano de A Geladeira explora o lado engraçado e cheio de clichês da situação vivida pela protagonista. Ao atingir uma certa profundidade, outra cava é desvendada pra provocar outras reflexões. A cena mostra complexidades, em meio a tiradas irônicas, sarcásticas, mordazes.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman nos indica que a “‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto” na modernidade líquida. E que “as identidades ganharam livre curso, e agora cabe a cada indivíduo capturá-las em pleno voo”.

Essas questões de Bauman são projetadas no espetáculo. O ator Fernando Fecchio se desdobra em vários personagens da peça. Um ser andrógino, L. se apresenta como homossexual em estado de esgotamento ao completar 50 anos e ser presenteado com uma geladeira; sua psicóloga – A pastora/psiquiatra; a criada Goliasta, a sua própria Mãe, vozes do telefone – como o amigo Hugh, da Autrália; e do relógio da sala, ou o fantasma de si mesmo.  No texto L., mostra-se um ser andrógino

Baskerville dispõe na beirada do palco com cubos de formar palavras, a frase “Todo mundo é gay”. Isso norteia o eixo do personagem homossexual, que se desdobra em outros. De ex-modelo histérico, que busca escrever sua autobiografia, que é estuprada pelo seu chofer, que é chantageado por sua mãe.

A figura se desconstrói e se transforma em ações non senses, que ressignificam o mundo contemporâneo. Desses tempos marcados pela fragmentação do indivíduo. O ator transita com propriedade pelos personagens, dança, modula vozes, desnorteia o espectador.

Fernando Fecchio opera o jogo, a sobreposição, a aglutinação e o confronto em uma cena frenética, em que muda de papéis com um ou outro adereço cênico, ou manipulação de uma boneca de tamanho humano.

O ritmo é acelerado, num jogo de diálogos aparentemente ilógicos. Carregados de estranhamento, com toques grotesco, imagens de distorções, elementos kitsch, exageros. O intérprete se estica com potência nesse jogo entre personagens, em que essas figuras da cena buscam esconder o fator precário, as vezes dolorido da existência, típico da criatura contemporânea.

É interessante que o título e o elemento propulsor seja um refrigerador, objeto de consumo comum a todos e que remete para o paradigma do gasto da pós-modernidade em batimento com a ideia de produção da modernidade. Esse sujeito plural, heterogêneo está fraturado por carências, falhas, urgências.

O fotógrafo David LaChapelle – com sua leitura escrachada “de contrastes assustadores e nuances surrealistas”, que para suas imagens capta o clima da excitada sociedade de consumo é uma referência na concepção visual do espetáculo. As cores vibrantes do cenário e a tentativa desesperada de glamour para o personagem da peça traz esse toque de beleza e bizarro. Em algumas fotos de LaChapelle, o mundo desmorona e um elemento na imagem tenta manter o charme.

Mas se o diálogo com o fotógrafo puxa para o universo pop o século 21, a geladeira vermelha instalada no meio da cena é vintage, e sobrevive entre outros adereços que parecem sucatas e que conferem um clima de decadência.

A trilha sonora reforça o ambiente entre os anos 1970 e 1980, com clássicos de artistas como Barry Manilow, Queen e Love Unlimited Orchestra e números típicos das boates gays.

Os apontadores setecentistas e oitentistas também colocam um pé no freio no vigor do texto de Copi com suas bizarrarices e contradições, de traços extravagantes. É como se a audácia e o universo avassalador de Copi se perdesse um pouco pelo caminho em planos estilísticos já repetidos à exaustão.

Tão comum quanto extraordinária

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Jacy, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Cena Contemporânea 2015

Muito se fala sobre o crescente envelhecimento da população brasileira e seus desdobramentos sociais, mas pouco se escuta sobre as experiências de vida daqueles que, em meio a tempos que celebram a eterna juventude, já ultrapassaram a marca dos 60 anos. Interessados em tratar da velhice como tema de uma criação artística, os integrantes do Grupo Teatro Carmin, de Natal (RN), encontraram na trajetória de Jacy, uma mulher comum, nascida em 1920 e falecida em 2010, um caminho bastante frutífero para revisitar, de modo ao mesmo tempo crítico, poético e bem-humorado, quase um século de história do país e de seu povo.

Primeira aproximação do grupo em relação ao universo do teatro documentário, o espetáculo Jacy foi criado após consistente pesquisa em torno da personagem e de seus contextos de vida. “Descoberta” a partir de uma frasqueira abandonada na rua, ela é trazida à cena pelos atores Quitéria Kelly e Henrique Fontes, que, diante do público, reconstroem a trajetória de Jacy alternando-se com segurança e leveza entre registros dramáticos, narrativos e performáticos de atuação.

Ao longo do espetáculo, que conta ainda com irreverentes intervenções em vídeo de Pedro Fiúza, a personagem se revela tão interessante por suas singularidades quanto por suas características mais ordinárias, as quais remetem a experiências e percepções certamente comuns a uma geração que vivenciou importantes capítulos da história nacional. Cenário de boa parte dessa trajetória, a cidade de Natal também é apresentada ao público a partir de suas especificidades e suas características facilmente reconhecíveis em outras capitais brasileiras.

Pelos singulares olhos de Jacy, assistimos, por exemplo, à participação do Brasil na 2a Guerra Mundial. Distante da grande narrativa, entretanto, ela enxerga a guerra como um acontecimento capaz de movimentar a pacata Natal dos anos 1940, convertida em movimentada base aérea e naval do exército estadunidense. “Estou apaixonada pela guerra, me deu vontade de viver”, suspira a personagem, em uma das cartas lidas em cena.

Em passagens que reiteram o caráter político do espetáculo e a persistência histórica de questões ainda a serem enfrentadas pela sociedade brasileira, compartilhamos com Jacy alguns questionamentos sobre a instauração da Ditadura no país (“Será que com fardas e tanques se protege a liberdade?”), assim como somos lembrados, dessa vez a partir de um curioso exercício genealógico apresentado pelos atores, sobre as recorrentes ações entre amigos – e familiares – desde sempre praticadas no cenário político nacional.

É também com os olhos dela, que agora já começa a experimentar a velhice, que nos assustamos com a verticalização desenfreada das cidades brasileiras, cada vez mais propícias à solidão que progressivamente se estende da velhice a outras faixas etárias. É só depois de acompanharmos o “filme” de sua vida que temos, então, um comovente retrato da velhice de Jacy e podemos reconhecer, nesse retrato, as perdas que de modo implacável marcam a trajetória de qualquer pessoa que alcance tamanha longevidade.

E ainda que, no fim das contas, o interesse inicial pelo tema da velhice se veja imerso em outras discussões, é justamente a partir do trânsito entre a trajetória particular da nonagenária Jacy e uma história social compartilhada por todos nós que o espetáculo ganha complexidade, amplia seus sentidos e alcança um notável equilíbrio entre as dimensões afetivas e políticas da saga tão comum quanto extraordinária que lhe serve como eixo.

Publicado no site do Cena Contemporânea 2015:

http://www.cenacontemporanea.com.br/tao-comum-quanto-extraordinaria/

Morte e vida purpurina

Foto. Sartoryi.
Foto. Sartoryi.

Crítica a partir do espetáculo Desbunde, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Cena Contemporânea 2015

Celebrado representante do teatro brasiliense em meio a uma ampla safra de espetáculos brasileiros que, em momento histórico pra lá de oportuno, tomam para si a defesa da liberdade, da tolerância e da diversidade sexual, Desbunde encontra em nomes da contracultura das décadas de 1960 e 1970, como Dzi Croquetes (RJ) e Vivencial Diversiones (PE), inspiração para revisitar um momento histórico em que tal liberdade se via relegada às margens da sociedade e ainda mais ameaçada pelo conservadorismo.

Dirigida por Juliana Drummond e Abaeté Queiroz a partir de texto de Sergio Maggio, a montagem convida o público às dependências de uma fictícia casa noturna habitada por cinco personagens que rapidamente se deixam conhecer. É Claudia Valeria espécie de líder e mentora histórica do grupo, que assume o fio da meada e costura os acontecimentos que testemunhamos em cena a partir de pontuações narrativas e breves interações com as demais personagens.

Logo de início, entretanto, ela dá o tom da encenação: por ali eles não respeitam quaisquer tipo de regras, nem mesmos as gramaticais. Tampouco supostas regras que separem palco e plateia são respeitadas, e não raro os personagens invadem as arquibancadas, arriscando-se em interações que, vale dizer, requerem certa disponibilidade do público.

Combinando registros dramáticos e narrativos, as demais personagens – Saquarema Satanás, Petit Du Buá, Savana Sargentelli e Marquesa – deixam ver bem trabalhados corpos, cantos, coreografias e paradoxos. Ganham complexidade ao apresentar suas histórias de vida ao público, a partir de performances que remetem à diversidade de trajetórias de vida escondidas por trás das festivas figuras que acompanhamos. Há aquele que cresceu freqüentando prostíbulos, o rapaz do interior “adotado” por um casal de classe média e ainda o que se preocupa com um filho deixado longe da boate, deixado sob a guarda dos avós. “Ser atual é encontrar beleza nas coisas”, explica Petit Du Buá, em passagem do texto que combina comicidade e lirismo.

Em outra passagem marcante, experimentamos juntos, atores e espectadores, o anti-climax provocado pelo Ato Institucional nº 5, em 1968, lembrando o fato de que àquela altura foram proibidas apresentações artísticas de travestis e transexuais, reduzindo ainda mais suas possibilidades de inserção social. Em uma das cenas mais cômicas e contundentes do espetáculo, em que se propõe nova interação com o público, Desbunde chama atenção à violência, aos preconceitos e à aleatoriedade dos critérios policiais para a identificação de suspeitos e possíveis contraventores ao sistema vigente.

Pontuado em diversos momentos do espetáculo, o uso de drogas pelas personagens ganha eficiente contorno cômico, sem moralismo nem promessas de redenção. Passada a Ditadura, no entanto, recebemos a chegada do vírus HIV como novo balde de água fria sobre a liberdade comportamental experimentada pela trupe, e ganha destaque à equivocada associação inicial entre o vírus e a homossexualidade.

Vítimas do vírus e de uma violência contra homossexuais que jamais cessou no Brasil (vale lembrar, aqui, que o país apresenta, ainda hoje, a maior índice do mundo de assassinatos motivados por homofobia e transfobia), as personagens se deparam com a vida intensa e breve que, àquela altura, já lhes estava reservada. “Quanta purpurina”, lamenta Claudia Valeria, desdobrando em poesia e estatística reiterada expressão popular sobre a morte de gays e travestis. Mais do que eficiente peça de entretenimento, Desbunde é resistência e realidade.

Publicado no site do Cena Contemporânea 2015:

http://www.cenacontemporanea.com.br/morte-e-vida-purpurina/