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O aquário absurdo e a profusão de imagens no Woyzeck de Andriy Zholdak

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Woyzek, de Andriy Sholdak, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

10 de março de 2015

Enquanto a Ucrânia amarga uma situação de guerra, com 5,2 milhões de pessoas morando em áreas de conflito, o diretor ucraniano Andriy Zholdak, radicado na Alemanha, apresenta um Woyzeck em estado de tensão permanente. Uma sociedade presa dentro de um aquário transparente, que se movimenta em espaços circunscritos e delimitados. Podem ser todos ratos de laboratório ou coelhos, ou simplesmente homens animalizados, acorrentados a situações de dominação e fatalidade.

Assim como o próprio texto do alemão Georg Büchner, a performance midiática proposta pelo diretor ucraniano tem caráter político. A questão no primeiro plano continua sendo o desamparo e as relações de poder num mundo absurdo; no caso da encenação, especificamente, em diversas instâncias: desde as referências mais diretas e facilmente assimiláveis, com imagens que ressaltam a desigualdade social e a citação de que “somos 15 milhões de pobres”, o imperialismo, o militarismo, a globalização, até disputas internas que se dão noutras instâncias, como no campo da própria teatralidade.

Patrice Pavis já dizia no livro A encenação contemporânea que, na concorrência entre a imagem fílmica e o corpo real do ator, não é necessariamente esse último que ganha. No caso do Woyzeck proposto por Zholdak podemos dizer que o que se instaura é uma desorientação (propositada, obviamente) espacial do espectador. Desde o inicio, quando passamos por uma antessala e nos deparamos com a visceralidade da atuação dos performers em deliberada anarquia, até estabelecermos uma relação de frontalidade com o espetáculo, percebemos que o que se revela é uma instalação visual e sonora. O diretor bebe nos campos de várias linguagens, música, cinema, artes visuais, para compor um espetáculo que não se deixa enquadrar por um elemento sobrepujante de condução. Pode ser facilmente estudo de caso da teoria do teatro pós-dramático do alemão Hans-Thies Lehmann.

A fricção entre os vários componentes dessa ópera caótica nos deixa inicialmente aturdidos. As camadas vão se sobrepondo a cada instante com signos que não serão compreendidos em sua totalidade. Nem essa é, de maneira alguma, a intenção do diretor, que assina ainda roteiro dramático e coreografia. Assim como os atores, estamos nadando em aquários, perdidos na profusão das imagens que nos remetem a um mundo de seres absurdos no ano de 2108, seja em alguma grande metrópole ou numa nave espacial com destino a Saturno. De qualquer maneira, assim como acontece no palco, somos levados a recorrer a uma edição de imagens, de texto, de expressões e sonoridades, mesmo que, no espectador, os significados possam ser depurados muito tempo depois.

O texto de Büchner, com sua fragmentação de dramaturgia, um “drama de farrapos”, como pontua Anatol Rosenfeld, é um aliado na construção da engenhosa teatralidade de Zholdak. Sobre o texto, Anatol Rosenfeld complementa: “É um fragmento; mas é uma obra que só como fragmento poderia completar-se. Ela cumpre a sua lei específica de composição pela sucessão descontínua de cenas sem encadeamento causal. (…) Tal fato desfaz a perspectiva temporal; boa parte das cenas pode ser deslocada, a primeira cena não é mais distante do fim do que a sétima ou a décima-quarta”.

A escritura cênica no campo visual encontra reverberação no corpo do ator, submetido a uma experiência rigorosa. O caos é orquestrado e coreografo em minuciosos detalhes pelo diretor. Se a escritura cênica é marcada pelo excesso e pela profusão e multiplicidade de imagens, o efeito que isso tudo produz na plateia, no entanto, é de muito distanciamento ao final das duas horas de sessão. Como se toda frieza das relações em cena também fosse transposta para o espectador. A tentativa de humanizar aqueles seres se mostra vã. Os limites do aquário, mesmo que invisíveis, não são rompidos ainda que a cena aconteça no telhado, numa possibilidade frustrada de expansão. Quando, ao final de contas, tenta-se falar de amor, não há laços construídos que se encaixem em padrões a que estejamos minimamente familiarizados. O único ponto de conexão com alguma delicadeza possível é a criança; a esperança remota de que, em 2108, o mundo de Zholdak não esteja definitivamente instaurado em sua totalidade.

Julia do XXI ao XIX

Crítica da peça Julia de Christiane Jatahy

MITsp 2015

É sempre um problema escrever sobre uma peça que está circulando há algum tempo. Depois de tanta coisa que foi dita e escrita sobre Julia, fica o questionamento (um questionamento para a crítica, em todas as ocasiões): como não chover no molhado? O que não foi dito sobre Julia? Ou: será o caso de falar sobre o que já foi dito?

Superado o bloqueio inicial, três pontos se apresentam como pequenas reflexões. O primeiro, a questão da lida com um material prévio, uma questão do teatro por excelência. É um clichê da crítica tratar o enfrentamento de uma encenação com um texto prévio pela comparação, o que é sempre feito sob um pensamento massacrante e conservador de que o “original”, ou o passado, é sempre um ideal a ser alcançado, um monumento da tradição. Ou ainda, conferir se a “adaptação” ou a “atualização” é eficaz. Diante de Julia, de Christiane Jatahy, vejo uma nova criação – e não acho que seja o caso de compará-la ao texto de Strindberg. Me parece que a peça conversa abertamente com Senhorita Julia, se coloca frente a frente com ela. E o que Julia, do século XXI, pode dizer para Senhorita Julia, do final do século XIX? O olhar da encenação é um olhar de enquadramentos, emolduramentos, recortes. Não me interessa questionar se a interação entre teatro e cinema “funciona” ou não. Me interessa pensar: A partir do fato de que isto é feito desta maneira, o que produz? O que o foco no rosto da personagem Julia produz? O que o seu olhar mediado pelo dispositivo cinematográfico nos diz?

Foto: Steven Gunther / Calarts.
Foto: Steven Gunther / Calarts.

Uma resposta é que o olhar não é dos personagens, mas dos dos atores – e aqui aparece o segundo ponto. O dispositivo cinematográfico criado pela encenadora e por Marcelo Lipiani somado à linguagem das atuações de Rodrigo dos Santos e Julia Bernat me faz ver que há, ao longo de toda a peça, um depoimento dos artistas envolvidos sobre as questões em jogo. Não me refiro aos momentos em que a ideia de depoimento é levada ao pé da letra, mas a pontos mais sutis da linguagem do espetáculo. O momento de acusações ferozes entre os personagens, em que os preconceitos aparecem em palavras duríssimas, revela melhor o depoimento pessoal de cada artista na dificuldade visível que eles têm para lidar com aquele diálogo do que nos comentários que fazem diretamente para a plateia em seguida. A meu ver, todo o dispositivo de recorte e de dobra das imagens em Julia constrói uma distância entre o discurso dos personagens e o discurso da peça. O discurso da peça é um discurso crítico – mas não simplesmente porque pensa sobre a forma como os personagens se comportam, mas especialmente na medida em que destrincha os problemas apontados naquela situação.

Para além da diferença de classes que falava mais alto na peça de Strindberg, Christiane Jatahy acrescenta uma colocação sobre a separação cultural e social entre negros e brancos num país fundado sobre uma cultura escravocrata que ainda corre nas veias das cidades – longe de ser apenas no Rio de Janeiro. Parece que muito foi dito sobre isso. No entanto, no debate depois da peça, proposta dos Diálogos Transversais, Luciana Romagnolli apontou a visibilidade da questão de gênero, que talvez fique escamoteada. Esse é o terceiro ponto, e talvez o mais importante.

Não seria o caso de vermos, em Julia, um enquadramento da questão de gênero quando, por exemplo, durante o sexo, a câmera revela o constrangimento incrédulo no rosto da menina ao dar-se conta de que está sendo comida por um babaca? Que de repente está sendo tratada como um degrau num projeto de ascensão social oportunista, ouvindo um discurso egoísta bizarro enquanto é penetrada? Ou quando a atriz diz algumas frases como se a personagem estivesse repetindo falas que aprendeu em algum romance de banca de jornal, como “agora beija o meu pé”, “beija a minha mão”, “manda em mim”? A autoridade forçada sobre a mulher não aparece o tempo todo? A submissão forçada da mulher, e da mulher jovem, não é uma questão tanto quanto a submissão forçada do empregado, e do empregado negro?

E então refaço a pergunta: O que as Julias do século XXI têm a dizer para as senhoritas Julias do final do XIX? E vice-versa? E o que será que a Senhorita Julia de Katie Mitchell e Leo Warner vai nos dizer sobre isso?

Woyzeck e seus planos de fuga

Foto: Ligia Jardim
Foto: Ligia Jardim

Crítica a partir do espetáculo Woyzeck, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MITsp 2015

Estamos em Cherkazy, na Ucrânia. O ano é 2008, e a estátua de Lênin – imponente vestígio da dominação soviética – acaba de ser retirada de uma das principais praças da cidade. Ao contrário do que se poderia pensar, entretanto, não é a liberdade que ganha espaço no país, mas sim uma nova corrida de diferentes impérios igualmente interessados em dominá-lo, a partir de ações que se estendem desde a política internacional até a vida cotidiana de seus habitantes.

 Não por acaso, certamente, foi esse o contexto escolhido pelo diretor ucraniano Andriy Zholdak para recriar, à sua maneira, a trajetória de Woyzeck, personagem que dá título à peça mais conhecida do alemão Georg Büchner. Apresentada pela primeira vez em 2008, mesmo ano da remoção da estátua, a montagem de Zholdak vai ao encontro de uma cidade cuja história é marcada por cruéis experimentos sociais e econômicos do estado soviético – experimentos que em muito se aproximam da dieta de ervilhas à qual Woyzeck é submetido no drama de Büchner e que acaba lhe provocando algumas visões apocalípticas. “Woyzeck vê coisas demais”, escuta-se, em certo ponto do espetáculo.

 Como se tivéssemos sido submetidos à mesma dieta do personagem, também nós, que assistimos à montagem de Zholdak, vemos coisas demais. Dispostos ante uma encenação permanentemente marcada por justaposições e simultaneidades, temos acesso a três casas de vidro e três grandes telas de projeção onde múltiplas imagens se dão a ver. Constitui-se, então, uma paisagem cênica e dramatúrgica bastante perturbadora, em que sobressaem a qualidade performática das interpretações e a criação de sentidos a partir de contrastantes composições entre cenas e imagens digitais.

 Por meio de alegorias mais ou menos diretas, vemos, por exemplo, as obscenas relações estabelecidas entre a nação ucraniana e os impérios que a ela ainda hoje se impõem. Em um complexo trânsito entre as escalas da nação e do cidadão, imagens documentais e ações cênicas igualmente chamam atenção às precárias e violentas condições de vida dos habitantes do país – dentre os quais figuram, ali, Woyzeck, sua esposa e seu filho. Mas não é somente a esta família que se refere a peça, alerta o diretor, logo no início da montagem. “São 15 milhões de pobres”, lê-se em uma das telas de projeção, revelando estatística que corresponde a cerca de um terço da corrente população ucraniana.

 Com ares de ficção científica (talvez inspirados pelos próprios experimentos aos quais o personagem é submetido), parece interessante ressaltar que o espetáculo se apresenta ao público exclusivamente em tons de preto e branco, chamando atenção a uma realidade dura e fria em que a graça e a beleza estão bem longe do primeiro plano. As únicas cores que temos ali vêm das pálidas peles dos atores e de alguns animais empalhados que ornamentam o cenário.

A animalidade, aliás, é outro elemento que rapidamente se alastra à cena, a partir de personagens que roncam, uivam e coaxam, ostentando, em alguns momentos, chifres e orelhas animalescas. Se a caça é apresentada como um hábito bastante comum na Ucrânia, também as relações humanas parecem ter sido contaminadas: tanto Woyzeck e sua esposa quanto outros personagens apresentados com menor detalhe frequentemente cruzam o palco, traçando diferentes rotas de fuga daqueles que parecem querer capturá-los.

“Eu quero ser livre. Quero viver em um país livre. Quero ter uma vida noturna”, afirma Maria, a esposa de Woyzeck, pouco antes do anúncio do início do segundo ato do espetáculo. Usando capacetes de moto, os dois desdobram os delírios de Woyzeck a outras alturas. Ao silenciar por alguns instantes as permanentes negociações políticas no gabinete do governo e nos espaços da elite, vislumbram uma possível fuga a partir de um encontro romântico em que novos horizontes, ao menos instantaneamente, parecem se abrir. Se as fronteiras territoriais parecem sitiadas e dominadas por outros impérios, a fronteira com o céu lhes parece mais amigável e promissora. “Não fique em silêncio. Fale algo”, pede a mulher. Mas Woyzeck nada pode prometer em meio a uma realidade social na qual tanto o amor quanto a liberdade não passam de utopias tão distantes quanto o céu e as estrelas.

Não tarda, contudo, até que a opressora realidade social novamente se imponha aos personagens, e Maria, tal qual a própria Ucrânia e seus chefes de estado, se deixe envolver por fios vindos de impérios políticos e econômicos que desde o início da peça rondam sua trajetória. Antes de ceder, contudo, ela oferece ao filho um sábio conselho: “Feche bem os olhos”, diz, em possível referência aos riscos de se enxergar demais.

Publicado no site da MITsp em 8 de março de 2015:

http://mitsp2015.wixsite.com/mitsp/single-post/2015/03/08/Woyzeck-e-seus-planos-de-fuga

Todos permanecem vivos

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo As Irmãs Macaluso, da Compagnia Sud Costa Occidentale, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

7 de março de 2015

No último dia 19 de fevereiro, o The New York Times publicou um artigo de Oliver Sacks. No texto, que viralizou rapidamente pelas mídias sociais, o escritor e professor de neurologia escreveu sobre a experiência de encarar a consciência da proximidade da morte por conta de um câncer terminal. Os compartilhamentos na rede talvez tenham vindo pelo fato de que, ao invés do tom pesaroso diante da finitude, o artigo propunha a superação, com uma mensagem clara de encorajamento. “It is up to me now to choose how to live out the months that remain to me (Agora depende de mim escolher como viver os meses que me restam)”. Para o filósofo existencialista Martin Heidegger, a tomada de consciência da morte nos leva a um questionamento radical diante do ser. Em As Irmãs Macaluso, montagem da Compagnia Sud Costa Occidentale, esse questionamento é trazido exatamente pela convivência com a morte proposta pela encenação de Emma Dante: os mortos continuam sendo parte de nós. Será que estamos mesmo vivos? O que determina a existência de vida?

As sete irmãs da história – Gina, Cetty, Maria, Katia, Lia, Pinucia e Antonella – saem do limbo da escuridão e passam a existir para os espectadores inicialmente todas de preto. Executam cortejos fúnebres coreografados, em bloco, mesmo diante da insistência de uma delas em se destacar do grupo com liberdade de expressão. Se a queda se instaura por alguns instantes, a força do grupo reanima, coloca de volta no prumo.

A movimentação permanece até que as irmãs assumem a posição na qual permanecerão ao longo de praticamente toda a montagem, dispostas uma ao lado da outra. Na encenação da diretora e dramaturga de Palermo, no entanto, o fuzilamento do pelotão não será pelas mãos de elementos desconhecidos, externos, sem qualquer relação próxima e que apenas cumpram ordens pós-sentença de morte. Numa reunião familiar, as lembranças podem ser muito mais cortantes e virulentas do que qualquer projétil. Os julgamentos são desfiados e se mostram inevitáveis quando os laços relacionais permitem o conhecimento profundo do outro.

O estado de energia e tensão presente no corpo das atrizes se desdobra na sonoridade da língua – o espetáculo é encenado no dialeto de Palermo – e das músicas cantadas inclusive pelos próprios atores. A partir do ritmo impresso pela movimentação do corpo, a poética do espetáculo vai se afirmando aos poucos e reverberando na plateia. As risadas com as travessuras e episódios de infância se transformam com a apreciação dos dramas que compõem a história daquela família, marcada por tragédias e calcada na tradição. O humor e a ironia travam uma relação tênue com a melancolia da percepção dos erros, com a inevitabilidade do acidente trágico, com os cuidados que deveriam ser tomados e não foram. O tempo não volta atrás, mas permanece. O presente existe enquanto desdobramento do passado, mas este último não se exaure, se estabelece como permanência e continuidade.

Na cena, a realidade vai sendo permeada pela memória, que é capaz de se mostrar cruel e dura, mas também pode trazer uma afetividade transbordante. O que foi se apresenta amalgamado com o presente. Os que morreram permanecem ali e, mesmo aqueles que parecem voltar, nunca estiveram no campo do esquecimento. O pai, que faz um grunhido de porco, dá bronca com dedo em riste, mas canta a música com a preferida, a caçula, já estava presente como narrativa. Uma das sequências de maior potência poética na montagem é o encontro da mãe com o pai. Os dois giram agarrados como crianças, eternizando um momento que pode ser ilusão, sonho, idealização.

Sem nenhum cenário ou mesmo aparatos tecnológicos, a teatralidade de Emma Dante é construída a partir do vazio. Do vazio do preto que assume outras cores, mas depois se estabelece como ausência de cor. Do vazio do silêncio preenchido pela sonoridade rápida e ininteligível do dialeto. Do vazio da narrativa que se transforma em memória. Também há muita simplicidade estampada na cena. Quando a opção é óbvia, mas eficiente: o convívio do espectador com a história que nos agarra sem que nenhum esforço se mostre excessivo, talvez só pela constatação de que, naquela família, cabem todas as famílias do mundo, inclusive a minha.

As Irmãs Macaluso: o belo, a vida e o pictórico

Crítica da peça As irmãs Macaluso, da encenadora italiana Emma Dante

MITsp 2015

Pode-se dizer, com convicção e com razão, que As irmãs Macaluso, de Emma Dante, é uma peça sobre relações familiares, sobre o lugar da mulher no contexto cultural da Sicília, sobre a vida e a morte, ou ainda sobre a condição humana. A aparente simplicidade da encenação e o conteúdo prosaico das falas são estratégias criativas do espetáculo que oferecem ao espectador a possibilidade de ver a peça a partir de diferentes recortes temáticos dentro de um círculo de grandes questões humanas. Arrisco dizer, no entanto, nesta breve reflexão feita no calor da hora, que esta também é uma peça sobre a beleza – e sobre a beleza pictórica. Continue lendo As Irmãs Macaluso: o belo, a vida e o pictórico

Como será o amanhã?

Foto: Júnior Aragão
Foto: Júnior Aragão

Crítica do espetáculo Tomorrow, da Vanishing Point Theatre Company, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2014

30 de agosto de 2014

Se houver amanhã, ele será decrépito. Sem apelação. Sem melodramas. Cruel? Talvez. C’est la vie. Tomorrow, da escocesa Vanishing Point Theatre Company, traduz esse vaticínio. O espetáculo foi inspirado em estudo sobre o envelhecimento da população mundial. Graças à tecnologia, os humanos passaram a viver mais tempo e com isso, o número de idosos triplicou nos últimos 50 anos. A previsão é de que em 2050 o total de velhos no mundo chegue a dois bilhões. Mas essa longevidade não é garantia de saúde. Pelo contrário, traz ameaças de doenças, sendo a demência (o Alzheimer é uma delas) a que deve atingir um terço da população.

Primeira coprodução internacional do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, Tomorrow, toca nessas feridas abertas, que nega a humanidade e as relações amorosas (fraternas ou filiais) entre jovens e velhos, quando as limitações dos segundos exigem atenções especiais dos primeiros.

Antes do início da apresentação, o jovem diretor Matthew Lenton explicou que o cenário da peça ficou retido na alfândega, em São Paulo, e que este era o maior desafio da estreia. Lançar-se com uma cenografia arranjada em três dias.

Lenton também sugeriu ao público a não ficar preso às legendas (a peça foi apresentada em inglês com legendas em português), porque os atores poderiam improvisar algumas frases e, principalmente, que era melhor entrar na viagem sonora das palavras casadas com as imagens exibidas.

De fato, as imagens são impactantes. Principalmente porque conta com um projeto de luz que esfria, esquenta, indica, esconde, clareia, enfim, uma iluminação criativa que se torna um elemento imprescindível da encenação. Uma luz deslumbrante que dá a medida das situações, trabalhando inclusive com efeitos de “fade in” e “fade out” semelhante ao cinema.

Pela temática, não há como não lembrar da montagem Sobre o Conceito do rosto do Filho de Deus, da companhia teatral Socìetas Raffaello Sanzio, com direção de Romeo Castellucci, que esteve no Brasil durante a 1ª Mostra Internacional de Teatro – MITsp, em março. Mas enquanto a obra do italiano é carregada de culpa cristã e referências à fé e sua negação, parece que Tomorrow está esvaziada dessas problematizações.

Matthew Lenton faz uma brilhante articulação do teatro com quadrantes de espaços e inversões e supressões de tempo em Tomorrow. Mas a cena é fria, no sentido de não apelar para sentimentos mais melodramáticos do espectador. Com maestria o encenador agrupo componentes que desestabilizam o espectador.

Atroz, bárbaro, desumano é seu contexto – dos velhos “abandonados” em asilos sob a responsabilidade de cuidadores profissionais. E esses cuidadores da encenação se aproximam muito dos profissionais da saúde – médicos e paramédicos – quando tratam de doentes em hospitais e ostentam sua atitude técnica ao lidar com aqueles corpos frágeis, indefesos, ao dispor deles.

Presumo que o diretor equalizou para o mínimo a pulsação do afeto na cena para produzir um outro efeito inquietante. Penso ser proposital e calculadas as opções do encenador, para não tocar na emoção mais à flor da pele, que a matéria em si já incita.

Ele expõe um quadro duro, difícil de encarar, mas ao mesmo tempo avisa que aquilo ali pode acontecer com qualquer um de nós, espectadores. Não há consolação para a perda de liberdade e o sofrimento dos internos daquele lugar. E muito menos sacrifícios dos filhos deles.

A ironia perpassa a cena na hora das “brincadeiras internas”, as conversas de intervalo, quando um cuidador pergunta para o outro qual dos velhos escolheria para “ficar”.

A montagem é muito plástica e se resolve com os poucos artefatos, cadeiras e mesas basicamente. As máscaras de borracha, fabricadas nos Estados Unidos, são elementos de destaque na composição dos personagens. Aliás, o elenco é de uma afinação de orquestra. Os atores que interpretam os velhos ostentam uma técnica segura e eficiente. Os cuidadores fazem um contraponto, dando leveza ao ambiente, também com interpretações convincentes.

A primeira cena é de uma potência dura e bárbara. Um velho caminha pelas ruas geladas de um determinado lugar, carrega flores consigo. Esbarra em George, um jovem que está muito apressado para chegar ao hospital onde sua mulher pariu a filha do casal. No primeiro momento ele procura ajudar o velho, que cai, e George volta a ajudá-lo. Mas aí o velho se agarra às pernas do jovem e dois travam uma luta desesperada, quase um abraço de afogado. É uma cena forte.

Durante 90 minutos acompanhamos inquietos essa passagem das horas, dias, meses, na ficção. Crianças chegam, brincam, os velhos olham. A passagem do tempo. O tempo que se confunde. Apesar de expor situações humilhantes dos velhos, já tão limitados em seus corpos, a peça não despertou comiseração, pelo menos não em mim. Mas esse trabalho perturbador invade a consciência e sem pedir licença brada forte sobre o que queremos para o futuro.

 

Grupo bom é grupo morto

Foto: Júnior Aragão
Foto: Júnior Aragão

Crítica do espetáculo Adaptação, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2014

29 de agosto de 2014

A companhia Teatro de Açúcar, de Brasília, “morreu” em 2012. Mas depois disso montou alguns espetáculos, inclusive o criativo Adaptação, monólogo defendido por Gabriel F., que foi exibido na 15ª edição do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. (Adaptação estreou em Brasília em janeiro de 2013, financiado pelo Ministério da Cultura do Distrito Federal. E no início deste ano participou do Janeiro de Grandes Espetáculos, no Recife). Os motivos do óbito são fáceis de adivinhar: dificuldades financeiras para manter as atividades da equipe – sintomas que acometem outros conjuntos Brasil à fora.

O monólogo leva ao palco uma transexual, atriz, que ensaiou durante três ou quatro meses com um encenador de ideias vacilantes e hoje é sua estreia. Precisa improvisar.

E para falar de ameaças de desaparecimento, o bando institui paralelismos dentro da cena com personagens que buscam driblar a extinção. No caso um diretor que vive uma crise de criação do espetáculo e já pensa em mudar de profissão, uma atriz que veio do interior e precisa se acostumar ao novo estilo na capital, uma transexual – que por sinal é a atriz- às voltas com sua nova identidade e um dinossauro de futuro incerto.

Os procedimentos para tratar de todas essas questões são inventivos. O que fica é que todos querem sobreviver.

Para formar o quadro estão na cena um minúsculo piano, um microfone com pedal, uma caixa de equipamentos sonoros, uma mesa coberta por toalha, um dinossauro de brinquedo e uma taça. No chão, um jarro.

Entra uma figura estranha, mas bonita. Traz flores. Peruca loura, sapatos vermelhos de salto alto e um ar que mistura uma personagem interiorana com uma figura que vai sobreviver. Mesmo que para isso precise adaptar-se.

O verbo que faz referência ao fato de ajustar uma coisa à outra. Então, se acomodar a diversas circunstâncias e condições. A personagem faz bem isso e o registro do intérprete a esse processo é o meio-tom em que alguém vai expondo sua situação, seus limites, e ao dizer coisas com tanta sinceridade dribla o ato ridículo e consegue a cumplicidade da plateia.

É um progressivo conquistar do público, ao falar da crise do teatro, das estacas do contemporâneo, das técnicas ironizadas pelo ator.

A primeira parte de Adaptação é uma sequência de justificativas sobre o vazio da cena, com frases de inteligência mordaz e pelo menos dois momentos de uma beleza crítica desconcertante. Quando ele mostra, com as mãos, um dinossauro (e neste caso a iluminação é determinante) e a evolução disso quando o ator explora gestos e finaliza com uma frase de que adora dança contemporânea.

Esse discursar sobre o vazio é redirecionado para a música (Gota de Sangue, de Angela Rô Rô e uma outra autoral) e para uma pequena fábula de um encontro quase amoroso e sua impossibilidade diante das convenções sociais. No caso, da atriz transexual e seu professor de piano na sua cidade do interior.

O registro interpretativo, num tom de negociação, vai conquistando o seu interlocutor aos poucos, também me parece um pouco dessa camuflagem como mecanismo de defesa da qual fala a personagem sobre o camaleão que engana os possíveis predadores.

É uma encenação que destaca a ironia desse viver contemporâneo, sem lições de moral. Tem potência, mesmo quando parece falar do nada. É uma dramaturgia original, com humor sutil, uma peça divertida para falar do medo do fim. A caracterização do ator é ponto alto da montagem.

Dispensaria apenas o cigarro fumado em cena.

Cacá Carvalho brinca com máscaras da aparência

 

Foto: Cena Contemporânea/Divulgação
Foto: Cena Contemporânea/Divulgação

Crítica do espetáculo umnenhumcemmil, com Cacá Carvalho, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2014

28 de agosto de 2014

O monólogo umnenhumcemmil, com o ator Cacá Carvalho, é a terceira peça de uma trilogia que o artista desenvolve a partir da escritura de Luigi Pirandello. Os três espetáculos (O homem com a flor na boca, A poltrona escura e umnenhumcemmil) foram apresentados na 15ª edição do Cena contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, e tem assinatura do diretor italiano Roberto Bacci. Um nenhum cem mil é o último romance de Pirandello e trata de assuntos caros e recorrentes na obra do escritor italiano, o “ser” e o “parecer”, a sobrevivência de identidades e no fundo o próprio teatro e seu leque de simulacros.

O romance Um, nenhum e cem mil, de 1926, é desconcertantemente atual nos questionamentos das identidades a partir do olhar do outro, que nessas épocas são cada vez mais manipuláveis. A encenação explora as sutilezas desses motes num monólogo de 80 minutos, verborrágico e cativante.

Um dos principais teóricos da modernidade líquida, o polonês Zygmunt Bauman atesta que a identidade é um “beco sem saída”. E defende que é um “conceito altamente contestado”. E que a palavra remete à batalha. Já o sociólogo francês Michel Maffesoli fala de sistemas de significação e representação cultural que são multiplicados.

Para trabalhar esses pontos complexos, a montagem conta com um magnifico ator, com domínio de diferentes estéticas e formas cênicas plurais, por onde Cacá Carvalho desliza com sobriedade.

umnenhumcemmil é um drama existencial de Vitangelo Moscarda (o Genge), 28 anos, casado com Dida, sem filhos, dono de um banco e de Bibi, uma cadela. Ele mora na cidade de Richieri e tem dois amigos fieis, Quantorzo e Stefano Firbo, que cuidam de seus negócios. Uma figura ordinária, comum.

Um belo dia, um comentário da esposa sobre seu nariz, que se inclina para a direita, desencadeia uma crise sem precedente. Genge não é, nem para Dida, aquilo que imaginava ser. Isso provoca a investigação de outros defeitos físicos: descobre que tem sobrancelhas semelhantes a dois acentos circunflexos “^^”; que as orelhas são mal grudadas; que em uma das mãos o dedo mindinho exibe desproporcionalidade; além de outras pequenas “anormalidades”.

O protagonista conclui, então, que cada pessoa que o enxerga vê̂ um Moscarda diferente. E esse indivíduo não suporta o peso da opinião pública. Ele quer uma unidade, mas ao mesmo tempo não aguenta ser mais um.

O sujeito mergulha num abismo de reflexões. E diante da situação bizarra, abandona sua vida vulgar, funda um asilo, onde vai trabalhar. Se livra da identidade pública e abraça o anonimato.

As máscaras vão caindo. Com poucos recursos cenográficos de Marcio Medina (uma poltrona, algumas cadeiras, balde), o ator assume essa figura que limpa o chão, que treme em nervos expostos numa interpretação visceral de Cacá Carvalho. Ele constrói um personagem patético, ridículo, poético. Seus gestos e vozes se transformam em lâminas de corte para essas pulsações contemporâneas. Tão vibrantes em suas identidades descartadas. Metateatro erguido com competência diante dos olhos do público.

Ao convidar alguns espectadores a se sentarem no palco, acompanhando de perto a encenação, a montagem explora mais um link da superexposição da vida íntima. Uma pertinente metáfora. A luz de Fábio Retti e a música de Ares Tavolazzi compartilham desse processo.

A inteligência cênica da parceria entre ator e diretor joga no palco um intérprete de vários personagens, fragmentado em diversas vozes, multifacetado. Numa atuação luminosa de Cacá Carvalho.

Nós, os curiosos

Crítica da peça Recusa, da Cia Teatro Balagan

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Inspirados pela notícia da condição de sobrevivência precária e ameaça de extinção dos dois últimos membros dos piripkuras, os artistas criadores da Cia Teatro Balagan atentaram para a recusa deles para com a cultura do homem branco, da civilização como a conhecemos. A partir daí, criaram uma dramaturgia que também foi motivada pela recusa de fórmulas e noções já estabelecidas para a feitura de uma peça de teatro. O fruto é um trabalho de fôlego, uma cornucópia recheada de mundos – para a crítica, um prato cheio, mas que precisa ser devorado com o tempo.

O trabalho do grupo nos permite ver a recusa como resistência mas também como um gesto fundador. A recusa é um grande “não” que se abre para um “sim” maior ainda. A negação pode ser o começo de um reconhecimento, da afirmação de uma identidade, da inauguração de algo impensado. Como foi discutido na mesa-redonda realizada pela Mostra no dia da apresentação do espetáculo, a identidade pode ser um lugar dinâmico de invenção e de resistência ao mesmo tempo. Estamos sempre tentando preservar tradições e criar novas formas. O próprio fazer teatral é um trabalho de resistência (às adversidades econômicas e políticas, à dureza das cidades, à inércia da vida urbana, etc.) que demanda reinvenção (das estéticas, dos hábitos, dos modos de produção, etc.). A recusa não é um fim, mas um começo, não é simples negação, mas um gesto fecundo. Recusa é uma palavra-corte que fere mas abre.

Em relato publicado no programa da peça, os criadores nos contam que, na sua experiência de conversa com os índios Paiter Suruí, os velhos do clã escolheram algumas palavras do seu vocabulário como possíveis traduções de termos do teatro. O significado da expressão escolhida por eles para “público” seria “os curiosos”. A meu ver, isso faz sentido na relação que a peça estabelece com o público. A dramaturgia de Luís Alberto de Abreu engendra uma trama que joga com a curiosidade do espectador, com o seu interesse, numa negociação de sentidos incessante, que a encenação de Maria Thaís mantém num estado de suspensão, oferecendo iscas e pistas ardilosas, que nos fazem seguir mais adiante.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

O trabalho dos atores Antonio Salvador e Eduardo Okamoto parece ser construído a partir de estados, mais que de situações ou discursos. Nos seus corpos, vemos um preparo vigoroso, que resulta em uma presença e uma disponibilidade para o jogo que forma uma espécie de campo de força, que colabora para sustentar a atenção e a curiosidade do espectador. A fisicalidade das atuações – em especial o desempenho vocal que produz uma sonoridade muito concreta – tem o potencial de despertar o espectador pelo corpo, como numa vibração entre instrumentos de corda.  O trabalho de direção musical de Marlui Miranda mereceria um texto à parte. Mas vale apontar que não se trata da exibição de um virtuosismo. A demanda por um desempenho corporal expressivo é afinada com a pesquisa estética e temática do projeto.

A cultura indígena – ameríndia – apresentada pelo espetáculo está sempre sob o signo do duplo. As narrativas se alternam, mas há sempre uma relação entre duas figuras que se complementam. Além dos personagens que conseguimos distinguir, também percebemos desdobramentos da ideia de duplo, como na polarização entre o sol e a lua, o corpo e a alma, o índio e o fazendeiro, o homem e a mulher. O teatro só existe quando há dois: a cena e a plateia, o artista e o público. Sem uma das partes, deixa de ser teatro. Se as duas partes estiverem em oposição, não acontece. Se um quer se impor ao outro, algo morre. Como pud e pudlaré, são inseparáveis. E nós, os curiosos, precisamos devolver o canto, jogar o jogo, e manter a atenção mútua.

Do ponto de vista da crítica, para um trabalho como esse, seria preciso devolver um esforço à altura, que este breve exercício não permite. Mas fica aqui um apontamento, uma anotação de primeiras impressões, só pra sinalizar que –  mesmo que falte espaço, mesmo que muitas vezes também falte fôlego – estamos interessados, estamos prestando atenção.

Tubo de ensaio

Crítica da peça Metrópole, da Inquieta Cia. de Teatros

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2014

 

Formada por artistas egressos da graduação de Artes Cênicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), a Inquieta Cia. de Teatros apresentou Metrópole na Sala de Ensaios do Centro Cultural São Paulo, no contexto da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. O espetáculo foi concebido para se apresentar em espaços com esse caráter e aproveita de modo interessante a parede coberta de espelhos, especialmente no que diz respeito ao poucos movimentos de luz, feitos apenas com uma lanterna e alguns desenhos no espelho. Os espectadores se vêem refletidos ao longo de toda a peça e podem observar-se ou observar os demais enquanto a cena se desenrola. Essa estratégia, que faz o espectador dar-se conta de si mesmo o tempo todo, encaixa a experiência em um lugar de expectativa moderada. Nos vemos inseridos em um contexto de experimentação, estamos todos na sala de ensaio, como se fôssemos cobaias-cúmplices.

No encontro de intercâmbio entre grupos, os integrantes se apresentaram como um grupo de origem acadêmica, que se encontrou na faculdade de teatro e começou a trabalhar a partir desse contexto. Não é um grupo iniciante, mas talvez seja o grupo mais jovem no contexto da Mostra. Isso aparece no espetáculo em alguns aspectos, como na lida com o trabalho do ponto de vista técnico e do ponto de vista temático.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Do ponto de vista técnico, parece que há uma ansiedade com o próprio fazer teatral que em alguns momentos acaba ficando na frente, aparecendo mais do que o trabalho em si. A intensidade que aflora nos corpos de Silvero Pereira e Gyl Giffony (que também assina a direção) em muitos momentos fica em primeiro plano. Isso pode ser uma opção estética, mas ficou a impressão de que os artistas poderiam regular a voltagem pra dar a ver mais nuances, mais delicadezas. O excesso de energia no trabalho atorial pode se confundir com uma limitação técnica. A fricção entre os dois personagens e a proximidade com os espectadores produz um calor interessante, mas o trabalho acaba contando demais com isso. É como se o vigor fosse mais de juventude que de elaboração poética.

Do ponto de vista temático, dos assuntos abordados e dos enfrentamentos da dramaturgia de Rafael Barbosa com o material reunido para a produção do texto, a peça esbarra nesse lugar da pesquisa incipiente. O entendimento do que é a opção pela vida na arte às vezes parece um pouco romântico, como se tudo fosse 8 ou 80. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra – poderíamos dizer. A persistência demanda concessões e recusas em uma justa medida. É possível construir um lugar de criação artística para si enquanto ainda se ganha o pão com outros meios. Nos debates realizados na Mostra, a viabilidade econômica da continuidade dos grupos, a necessidade de ter uma sede, uma regularidade, foram assuntos importantes. É interessante ver que o grupo colocou isso em jogo na própria criação. Nesse sentido, imagino que o espetáculo tenha uma empatia imediata com o público de jovens e jovens adultos, especialmente entre espectadores que lidam com esses questionamentos no seu dia a dia. E a empatia com o público jovem no teatro não deve ser subestimada.

A peça começa com um prólogo impactante, numa referência ao universo de Caio Fernando Abreu, cheio de fantasia e brilho. Depois, o acender das luzes revela a crueza da realidade. Essa discrepância entre um falso glamour das iludidas do prólogo e a realidade maçante do trabalho braçal do rapaz que desistiu da vida artística apresenta de maneira econômica uma ideia geral de uma imagem possível do lugar do artista: uma mistura de fantasia e realidade, de epifania e dureza.

Fica a curiosidade de conhecer outras peças do grupo, para enxergar o seu trabalho em um contexto mais amplo, e o desejo de ver o que os integrantes da Inquieta Cia. de Teatros estarão fazendo daqui a alguns anos.