Arquivo da categoria: Destaques

Mostra DocumentaCena

A I Mostra DocumentaCena aconteceu de 8 a 10 de novembro de 2016, em Curitiba, com curadoria de Daniele Avila Small e Luciana Romagnolli. A programação, gratuita, incluiu apresentações de peças teatrais de artistas da cidade, conversas com os grupos, uma oficina de crítica e dramaturgia, além do lançamento de publicações especializadas em teatro. Esses encontros foram um aquecimento para envolver a cidade e críticos visitantes nas atividades do Idiomas – Fórum Ibero-Americano de Crítica de Teatro, realizado em seguida, de 11 a 13 de novembro, na CAIXA Cultural Curitiba.

O público pôde assistir a três espetáculos curitibanos que evidenciam distintas linguagens e gerações do teatro na cidade: “Ilíada – Canto XIII”, com direção de Octávio Camargo e performance da artista Katia Horn, no dia 08, às 19h30, no Teatro do SESI Portão; “Os Pálidos”, da CiaSenhas de Teatro,  com direção de Sueli Araujo, no dia 09, às 19h30, na Sede da CiaSenhas de Teatro; e “A Maldita Raça Humana”, da Companhia Teatro de Breque, com direção de Nina Rosa Sá, no dia 10, também às 19h30, no Teatro SESI Portão. Após as apresentações, os grupos e críticos convidaram os espectadores a conversar sobre os trabalhos.

A programação continuou com uma oficina sobre crítica e dramaturgia intitulada “As mãos sujas de sangue”, ministrada por Jorge Louraço,  crítico e dramaturgo português, de 8 a 10 de novembro, no Centro Cultural SESI Heitor Stockler de França. Ele recebeu pessoas interessadas na interlocução crítica sobre teatro para, a partir das teorias e de análises de exemplos práticos e exercícios de escrita, refletir sobre a relação entre a crítica e a dramaturgia, propondo a análise de cena a cena da peça “Macbeth”, de Shakespeare, além da reescrita de uma cena do espetáculo.

E no dia 10 de novembro, às 16h, na Casa Selvática,  aconteceu  o lançamento da “Trema! Revista”, de Pernambuco, e do “Caixa de Pont[o] – Jornal de Teatro”, de Santa Catarina.

 

 

Katia Horn - Ilíada, Canto 13
Katia Horn – Ilíada, Canto 13
Os Pálidos - Cia Senhas. Foto Elenize Desgeniski
Os Pálidos – Cia Senhas. Foto Elenize Desgeniski

Relações de proximidade e distância

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo E se elas fossem para Moscou?, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Cena Contemporânea 2015

Trabalho apresentado simultaneamente como espetáculo e filme produzido ao vivo, “E se elas fossem pra Moscou?”, da Cia. Vértice, tem como ponto de partida um dos principais clássicos do dramaturgo russo Anton Tchekov, “As Três Irmãs”. Assim como na obra original, o que se tem, em cena, são três irmãs que, após a morte do pai, desejam, cada qual à sua maneira, dar novo rumo à própria vida.

A ausência paterna surge, então, como fato que parece afastar essas irmãs do mundo que existe fora das paredes e janelas da casa que habitam. Dentro dessas paredes, por sua vez, o que testemunhamos e ouvimos, a todo tempo, são impressões sobre a passagem do tempo, o esvaziamento da vida cotidiana e o permanente desejo de estar em outro lugar.

O desejo de mudança e a dificuldade de mudar são, assim, rapidamente anunciados como grandes temas do espetáculo, identificados como conflitos centrais de Olga, Maria e Irina, personagens que progressivamente conhecemos ao longo da encenação, em instigantes relações de proximidade e distância, potencializadas de diferentes maneiras pelas linguagens do teatro e do cinema.

No teatro. Logo no início do espetáculo nos entendemos como convidados um tanto “genéricos” da festa de aniversario de Irina, que completa 20 anos no mesmo dia em que se lembra um ano da morte de seu pai. Mas apesar de sermos, até então, completos estranhos àquelas personagens, assim como à vida e às relações humanas que se estabelecem naquela casa, somos tratados como amigos da família, com os quais as três irmãs não hesitam em compartilhar histórias, conflitos e sentimentos que de sua intimidade fazem parte.

Assistimos, da plateia do teatro, a uma encenação multifocal, com constantes interrupções entre as personagens, que se revezam na lida com o público e o aparato cinematográfico, exposto sem ressalvas. Enquanto Olga e Irina esforçam-se para entreter os convidados, Maria deixa ver desde o início seus conflitos com a festa ali anunciada, reconhecendo a estranheza da situação e aproximando-se, em certo sentido, da percepção do público em relação ao caráter supostamente festivo do evento que, juntos, construímos.

Os conflitos apresentados pelas personagens, no entanto, muitas vezes se dissolvem na relação com o público, que, justamente por não dominar a profundidade dos dilemas postos em cena, rende-se à espontânea comicidade da convivência entre elas e responde com o riso à sucessiva exposição de traumas e frustrações. Se em alguns momentos esse desarranjo produz potentes atmosferas de constrangimento, em outros termina por provocar desvios – intencionais? – em relação à densidade do texto de Tchekov e do próprio espetáculo.

A esse respeito, o momento em que as irmãs convidam o público a participar de uma pista de dança improvisada no palco parece trazer ao primeiro plano esse permanente jogo de proximidade e distância entre personagens e espectadores. Ao promover, em cena, uma celebração entre pessoas que não se conhecem, ressalta-se a superficialidade das relações construídas entre palco e plateia, ao mesmo tempo em que se revela a profunda solidão das personagens e se reconhece, por fim, a falta de sentido daquela comemoração.

Não por acaso, o que se tem a partir do momento em que os espectadores, com certo constrangimento, se retiram do palco é um nítido recolhimento das personagens e dos espectadores. “Ficou vazio de repente, né?”, observa Olga, algum tempo depois, em uma espécie de anúncio sobre clara curva de adensamento do espetáculo.

No cinema. Parece curioso perceber, nesse sentido, que na situação de co-presença, ou seja, na situação teatral, o riso se coloca de modo mais recorrente e irresponsável: rimos das personagens e de seus conflitos mais íntimos sem muito pudor, como se nós – ou elas – ali não estivéssemos presentes. Enquanto isso, quando estamos a sós no cinema, o que se tem é uma atmosfera mais sóbria, mais concentrada e, em certo sentido, mais cuidadosa em relação aos conflitos e ideias apresentadas em cena.

Se, na plateia do teatro, somos inseridos desde o início na casa das três irmãs, a experiência cinematográfica de E se elas fossem pra Moscou? nos sugere uma aproximação mais paulatina em relação à intimidade da família. Primeiro, vemos o interior da casa como quem observa através das janelas, como se testemunhássemos algo que, em verdade, não devêssemos ver. Aos poucos, assumimos também a perspectiva de câmeras que circulam entre as personagens, como se acessássemos vídeos caseiros produzidos por elas ou ainda reflexões bastante íntimas direcionadas especificamente ao público do cinema. Assumimos, de igual modo, em alguns momentos, a perspectiva de alguns convidados específicos da festa, enxergando detalhes de relações que, na experiência teatral, acabam ficando em segundo ou terceiro planos.

A partir de recursos tipicamente cinematográficos, como closes, minuciosos enquadramentos e poéticas composições entre áudio e imagem, ganham complexidade e lirismo os universos íntimos de cada personagem, assim como certas relações estabelecidas entre elas. Mais imersos em sutilezas dessa rede de relações entre as personagens, deixamos em muitos momentos de ouvir as reações do plateia, acessando com mais clareza palavras, silêncios, gestos e olhares que muito dizem sobre as três irmãs e seus conflitos.

“O tempo passa”, avisa Irina. “Rápido”, completa Olga, em tom de lamento. Aprisionadas por si mesmas a situações que já não desejam viver, as personagens de “E se elas fossem pra Moscou?” abandonam, aos poucos, a fachada festiva. Deixam, então, transbordar ao público vícios, obsessões e paixões desmedidas que as impedem de superar o indesejado estado presente das coisas e dar o passo necessário à mudança que tanto desejam e defendem ao longo do espetáculo.

Publicado no site do Cena Contemporânea 2015:

http://www.cenacontemporanea.com.br/e-se-elas-fossem-pra-moscou-relacoes-de-proximidade-e-distancia/

Arquivo e a capacidade de se colocar no lugar do outro

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.
Crítica a partir do espetáculo Arquivo, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)MITsp 2015

Segundo a filosofia budista, a capacidade de se colocar no lugar do outro e compartilhar seu sofrimento é uma das funções mais importantes da inteligência humana. Pois é a esse exercício que se propõe o bailarino e coreógrafo israelense Arkadi Zaides no espetáculo Arquivo, de 2014. Habitante da próspera Tel Aviv, cidade situada a apenas 20km da Cisjordânia, o coreógrafo compartilha com o público uma complexa partitura audiovisual, corporal e vocal criada a partir de uma observação minuciosa da realidade da fronteira e, sobretudo, dos corpos que habitam aquela realidade social – os quais são trazidos ao palco no próprio corpo do bailarino.

Talvez como forma de dar a ver essa complexidade, Zaides opta por uma encenação não-espetacularizada, na qual importantes aspectos do contexto de criação são revelados ao público logo no início da apresentação. A partir de procedimentos comuns ao teatro documentário, o artista nos informa, sem rodeios, que as imagens exibidas no telão foram filmadas por moradores palestinos e trazem, nesse sentido, somente cidadãos israelenses como ele. Se não há palestinos nas imagens, é pelo olhar deles que testemunhamos, assim como o próprio artista, as diferentes fisionomias – e corporalidades – da disputa pelo território da Cisjordânia. É com olhos de palestinos, portanto, que testemunhamos o mundo ao longo de pouco mais de uma hora.

Trabalho de grande força documental, vinculado à produção audiovisual do Projeto Câmara de B’Tselem (um centro de informações israelenses pelos direitos humanos nos territórios ocupados), Arquivo nos permite acessar, em detalhe, aspectos pouco conhecidos de um universo quase sempre visto à distância. Instantaneamente imersos em uma realidade na qual vida e guerra se misturam, percebemos que também crianças e adolescentes estão envolvidos no conflito, experimentando desde cedo um contexto em que o outro é visto e tratado como adversário, a despeito das semelhanças entre as condições de vida daqueles que, em meio à fronteira, se atacam e se defendem.

Ataque, defesa e observação, aliás, são três estados sucessivamente experimentados pelo coreógrafo, a partir de mimesis corporais que estabelecem diálogos mais ou menos diretos com o material exibido no vídeo. Enquanto alguns gestos e posições corporais estabelecem relações imediatas com o que vemos na tela, outras surgem no palco antes de terem revelados seus contextos de referência, deixando ao público a responsabilidade de lhes atribuir significado e memória. Aos poucos, contudo, vamos nos familiarizando com o “arquivo” gestual de Zaides, e as ações realizadas no palco, mesmo quando desvinculadas do vídeo ou quando o vídeo se faz ausente, passam a nos trazer memórias, significados e imagens sociais.

Se, de início, o próprio Zaides, como morador de Tel Aviv, parece observar de longe aquele contexto de vida, aos poucos tanto ele quanto nós nos aproximamos das disputas entre colonos israelenses e palestinos. De meras testemunhas do espetáculo, passamos, com o tempo, a fazer parte dele, como fica evidente nos momentos em que somos observados por personagens do vídeo e quando o próprio Zaides, em desdobramentos coreográficos de gestos do duro cotidiano que nos apresenta, repetidamente avança em direção ao público, com passos firmes e olhar aguerrido. Experimentamos, ali, o lugar do outro, já imersos em conflitos que – por que não? – também são nossos.

Bastante presente no espetáculo, a repetição de gestos e imagens tem marcantes efeitos sobre a obra e o público. De um lado, é a partir da repetição que gestos cotidianos são convertidos em coreografias, e estas vez ou outra incluem saltos e giros que em algo lembram movimentos da dança clássica. De outro, também é a repetição – de gestos e vozes, vale ressaltar – que nos atenta à escala e à persistência do conflito.

Em síntese, Arquivo nos propõe uma experiência de imersão na violenta rotina de pessoas que não conhecemos e que, em cena, se constituem como outro. Não por representarem outras etnias, nacionalidades ou religiões, mas por, de modo semelhante a muitos brasileiros, não terem seus direitos humanos assegurados e viverem em permanente estado de exceção.

Publicado no site da MITsp em 12 de março de 2015.

http://mitsp2015.wixsite.com/mitsp/single-post/2015/03/12/Arquivo-e-a-capacidade-de-se-colocar-no-lugar-do-outro

Woyzeck e seus planos de fuga

Foto: Ligia Jardim
Foto: Ligia Jardim

Crítica a partir do espetáculo Woyzeck, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MITsp 2015

Estamos em Cherkazy, na Ucrânia. O ano é 2008, e a estátua de Lênin – imponente vestígio da dominação soviética – acaba de ser retirada de uma das principais praças da cidade. Ao contrário do que se poderia pensar, entretanto, não é a liberdade que ganha espaço no país, mas sim uma nova corrida de diferentes impérios igualmente interessados em dominá-lo, a partir de ações que se estendem desde a política internacional até a vida cotidiana de seus habitantes.

 Não por acaso, certamente, foi esse o contexto escolhido pelo diretor ucraniano Andriy Zholdak para recriar, à sua maneira, a trajetória de Woyzeck, personagem que dá título à peça mais conhecida do alemão Georg Büchner. Apresentada pela primeira vez em 2008, mesmo ano da remoção da estátua, a montagem de Zholdak vai ao encontro de uma cidade cuja história é marcada por cruéis experimentos sociais e econômicos do estado soviético – experimentos que em muito se aproximam da dieta de ervilhas à qual Woyzeck é submetido no drama de Büchner e que acaba lhe provocando algumas visões apocalípticas. “Woyzeck vê coisas demais”, escuta-se, em certo ponto do espetáculo.

 Como se tivéssemos sido submetidos à mesma dieta do personagem, também nós, que assistimos à montagem de Zholdak, vemos coisas demais. Dispostos ante uma encenação permanentemente marcada por justaposições e simultaneidades, temos acesso a três casas de vidro e três grandes telas de projeção onde múltiplas imagens se dão a ver. Constitui-se, então, uma paisagem cênica e dramatúrgica bastante perturbadora, em que sobressaem a qualidade performática das interpretações e a criação de sentidos a partir de contrastantes composições entre cenas e imagens digitais.

 Por meio de alegorias mais ou menos diretas, vemos, por exemplo, as obscenas relações estabelecidas entre a nação ucraniana e os impérios que a ela ainda hoje se impõem. Em um complexo trânsito entre as escalas da nação e do cidadão, imagens documentais e ações cênicas igualmente chamam atenção às precárias e violentas condições de vida dos habitantes do país – dentre os quais figuram, ali, Woyzeck, sua esposa e seu filho. Mas não é somente a esta família que se refere a peça, alerta o diretor, logo no início da montagem. “São 15 milhões de pobres”, lê-se em uma das telas de projeção, revelando estatística que corresponde a cerca de um terço da corrente população ucraniana.

 Com ares de ficção científica (talvez inspirados pelos próprios experimentos aos quais o personagem é submetido), parece interessante ressaltar que o espetáculo se apresenta ao público exclusivamente em tons de preto e branco, chamando atenção a uma realidade dura e fria em que a graça e a beleza estão bem longe do primeiro plano. As únicas cores que temos ali vêm das pálidas peles dos atores e de alguns animais empalhados que ornamentam o cenário.

A animalidade, aliás, é outro elemento que rapidamente se alastra à cena, a partir de personagens que roncam, uivam e coaxam, ostentando, em alguns momentos, chifres e orelhas animalescas. Se a caça é apresentada como um hábito bastante comum na Ucrânia, também as relações humanas parecem ter sido contaminadas: tanto Woyzeck e sua esposa quanto outros personagens apresentados com menor detalhe frequentemente cruzam o palco, traçando diferentes rotas de fuga daqueles que parecem querer capturá-los.

“Eu quero ser livre. Quero viver em um país livre. Quero ter uma vida noturna”, afirma Maria, a esposa de Woyzeck, pouco antes do anúncio do início do segundo ato do espetáculo. Usando capacetes de moto, os dois desdobram os delírios de Woyzeck a outras alturas. Ao silenciar por alguns instantes as permanentes negociações políticas no gabinete do governo e nos espaços da elite, vislumbram uma possível fuga a partir de um encontro romântico em que novos horizontes, ao menos instantaneamente, parecem se abrir. Se as fronteiras territoriais parecem sitiadas e dominadas por outros impérios, a fronteira com o céu lhes parece mais amigável e promissora. “Não fique em silêncio. Fale algo”, pede a mulher. Mas Woyzeck nada pode prometer em meio a uma realidade social na qual tanto o amor quanto a liberdade não passam de utopias tão distantes quanto o céu e as estrelas.

Não tarda, contudo, até que a opressora realidade social novamente se imponha aos personagens, e Maria, tal qual a própria Ucrânia e seus chefes de estado, se deixe envolver por fios vindos de impérios políticos e econômicos que desde o início da peça rondam sua trajetória. Antes de ceder, contudo, ela oferece ao filho um sábio conselho: “Feche bem os olhos”, diz, em possível referência aos riscos de se enxergar demais.

Publicado no site da MITsp em 8 de março de 2015:

http://mitsp2015.wixsite.com/mitsp/single-post/2015/03/08/Woyzeck-e-seus-planos-de-fuga