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Formas para as diferenças | Festival de Curitiba 2017 – parte 3

“Eu era a carne/ Agora sou a própria navalha”

“Negro Drama”, Racionais MC’s

Por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

“Farinha com Açúcar”. Foto de Leonardo Lima.

Mais, ainda

Retorno ainda outra vez ao Festival de Curitiba deste ano para rememorar outros espetáculos marcantes da programação desenhada pelos curadores Marcio Abreu e Guilherme Weber.  Nas partes 1 e 2 deste panorama, tratei especialmente de trabalhos artísticos nos quais as questões de gênero se faziam centrais. Nesta terceira parte, são as formas como a exclusão racial rompe a invisibilidade que me levam a refletir sobre os diferentes caminhos estéticos para o posicionamento ético e político de artistas brasileiros hoje – e da crítica.

Se há não mais que cinco anos um olhar interseccional para o teatro ainda era algo raro, uma vez que as questões de gênero e raça permaneciam marginalizadas nas discussões sociais e artísticas (o que não significa que não existissem e resistissem), hoje, a partir das transformações catalisadas por movimentos de rua e virtuais, tais abordagens se apresentam frequentemente inscritas dentro dos círculos de pensamento e prática artística comprometidos com um projeto de sociedade menos excludente. O que testemunhamos é o despertar de setores sociais silenciados historicamente, e se a atenção às suas vivências emerge à visibilidade da superfície dos discursos e dos corpos em cena, de modo que já chegam a parecer inescapáveis os recortes de raça, gênero e sexualidade em contextos como o do teatro de pesquisa belo-horizontino, podemos considerar que não se trata somente de uma tomada de consciência por parte de quem olha da plateia (crítico, pesquisador ou espectador), mas, até mais substancialmente, do quanto tais discussões têm sido assumidas pelos artistas como estruturantes de suas criações cênicas nos níveis dos discursos e das formas.

Essa proliferação reativa uma discussão complexa sobre as implicações entre ética e estética, que já muito (mas não suficientemente) ocupou o espaço mental de filósofos ao longo da história, e aqui invoco numa abordagem colada ao próprio exercício crítico que nós, profissionais da crítica ou apenas seres críticos que somos todos, praticamos diante desses espetáculos. A questão emergente seria: como, ou em que medida, diante de um trabalho que se sustenta na defesa de questões éticas e políticas urgentes sobre direitos humanos (a exemplo do combate ao racismo, à misoginia, à transfobia e à homofobia), não desconsiderar a dimensão estética em si?

A nódoa parece estar no temor de que o questionamento estético produza o efeito colateral de enfraquecer uma luta da qual reconhecemos a importância e a necessidade. Afinal, sabemos o quanto ainda são frágeis essas posições identitárias dentro da nossa organização social e como não faltam empreendimentos para desqualificá-las. Em contraponto, ao não reconhecer o valor próprio da estética, menosprezaríamos o que é próprio do ato artístico, o modo singular como proporciona experiências, como organiza afetos, sensações e significados, e como as formas criadas supõem visões de mundo. Nesse sentido, privar a arte engajada na defesa dos direitos humanos de uma apreciação de ordem estética significaria ignorar justamente como suas formas reconfiguram o mundo.

Isso não nos isenta de questionar o fundo ideológico dos nossos parâmetros estéticos e o quanto estão moldados por uma tradição que se perpetuou dentro daquele mesmo sistema de exclusões em que as manifestações negras, LGBT e de mulheres tantas vezes foram desqualificadas ou invisibilizadas. É atribuída à Virginia Woolf o aforismo “Ao longo da maior parte da História, anônimo foi uma mulher”. De modo análogo, embora singular, o desinteresse e o desconhecimento sobre as tradições das artes negras e suas expressões contemporâneas periféricas determinam os sistemas de valoração correntes nos palcos, na crítica e na academia.

Eis exposta apenas uma pequena parte dos problemas que esse cenário complexo nos coloca. No Festival de Curitiba, essa discussão se instaurou a partir da mesa de debate com artistas negros promovida na programação do Interlocuções (com curadoria de Giovana Soar), especialmente pela fala de Jé Oliveira, do Coletivo Negro, de São Paulo. Entre outras colocações, ele questionou justamente a falta de olhares propriamente estéticos sobre a diversidade de linguagens que constitui o “teatro negro”, o que seria um modo de subestimar a potência criativa dessas obras e se sustentaria na ausência (ou insuficiência) de conhecimento (e, antes dele, de interesse) sobre a história da arte para além da Europa e da faceta branca dos Estados Unidos. Ou seja, na falta de letramento racial. Nos palcos do festival, peças como a paulista “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, a curitibana “Macumba” e a portuguesa “Moçambique” mostraram um pouco dessa diversidade. Nos caminhos abertos por essa programação, optei por acompanhar a produção brasileira.

“Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, do Coletivo Negro. Foto de Leonardo Lima.

Masculinidade negra urbana

“Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, do Coletivo Negro, já esteve em Belo Horizonte, no contexto do Fan – Festival de Arte Negra. Fora de um recorte especificamente racial, lado a lado com outras peças de temáticas e linguagens diversas que compõem a programação da mostra oficial do Festival de Curitiba, o espetáculo reafirma que se são raras as criações de artistas negros em grande parte das curadorias brasileiras não é (reconheço o contexto racista que torna ainda possível ou necessário escrever isso) por faltarem trabalhos da mais alta qualidade poética.

“Farinha com Açúcar” é construída como um tributo ao Racionais MC’s, em reconhecimento à atuação do grupo de rap paulista no empoderamento de uma população negra e periférica que não se via nem se ouvia representada. Esse reconhecimento é de um verdadeiro letramento promovido pela música – afinal, para esses sujeitos, “música é livro também”, conforme repete Jé Oliveira. Tal como Malcolm X, o ativista negro norte-americano evocado na dramaturgia (“li Malcolm X como quem come com fome”), os Racionais aparecem como responsáveis por alimentar não só a consciência crítica contra o etnocídio negro mas a própria autoestima necessária à resistência e à luta.

Pela compreensão da importância dos discursos disseminados nas letras de rap e do quanto a forma de circulação desses discursos é determinante para furar os ciclos de exclusão, o Coletivo Negro busca na obra dos Racionais os elementos estruturantes para a criação teatral. A linguagem musical torna-se o esqueleto e a pele da dramaturgia. O teatro musical faz-se fora das convenções associadas à união dessas duas artes. O microfone, a postura, a atitude, a métrica, o engajamento do rap, além de seus modos de radiodifusão, são o veículo para a expressão das “experiências de ser preto na urbanidade”, colhidas e reescritas a partir de 12 entrevistas de homens negros de diversas idades e ocupações.

Fala-se sobre a negritude com a poesia da variante linguística da periferia, direcionada aos sujeitos negros infrequentemente posicionados como os interlocutores primários em arte. Desse modo, cabe aos espectadores brancos a posição de outros dessa experiência compartilhada – um deslocamento imprescindível.

Se no princípio era o som, e a luz, luzes e música criam o espaço cênico, dando densidade e tonalidades ao palco, ocupado ao centro por Jé Oliveira e, ao fundo, por uma banda – na apresentação em Curitiba, o DJ KL Jay (do Racionais) foi substituído pelo DJ Tano. “Imagine que isso aqui é uma favela”, sugere o ator, frente à composição visual com lâmpadas espaçadas que remete a um aglomerado de barracos. O que se vê em cena não se confunde com um tratamento cosmético para a pobreza, nem com uma estética da precariedade. Ao contrário: é a potência de cada vivência, com sua capacidade de produzir beleza e saber, que se mostra aos nossos olhos como afirmação do valor de todas as vidas. “Apesar de ficção, não teremos ilusão”, avisa Jé.

Nos jogos de luz à maneira dos shows musicais e nas variações de intensidade; nas rimas e aliterações do texto e no uso de gírias; na dramaturgia mixada seguindo a lógica própria de um DJ, misturando samples e sobrepondo textos, refrões e batidas, percebe-se a elaboração formal na construção de um espetáculo mobilizador pelo engajamento crítico e pela sensorialidade, capaz de envolver o espectador (seja este frequente ou arredio ao teatro) e arrebatá-lo. Essa forma como o Coletivo Negro conjuga teatralidade, musicalidade e oralidade (ou letra, corpo e som) se sustenta numa concepção de não separação entre as artes, que condiz com as tradições das manifestações artísticas negras e encontra com a cena expandida da arte contemporânea. Desfaz, assim, rupturas excludentes entre linguagens, tempos e matrizes culturais.

No coração da dramaturgia estão as violências repetidamente impostas à população negra. “Primeiro ato: morrendo”, anuncia Jé Oliveira. As histórias trazidas na voz do ator, em depoimento em off ou nas letras das músicas, testemunham um cotidiano em que a violência sofrida gera a violência infligida. Essa retroalimentação inclui uma série de fatores que se encadeiam em efeito dominó. A peça comum é a frustração diante da desigualdade econômica e do genocídio sentenciado pela cor da pele sem direito de defesa nem julgamento. “Isso te dá ódio, tira a poesia”, diz Jé. “Se é pra ser o pior, vou ser o pior mesmo”, resume a cadeia de brutalidade.

A fome, a humilhação e as carências agravadas pelo preconceito se revelam em dimensões que o conforto rotineiro da classe média geralmente não permite alcançar. Prova disso é o relato de um espectador curitibano na conversa pós-espetáculo: pela primeira vez, percebeu que um rapaz de periferia que rouba um par de tênis, diferentemente dele, nunca pôde ter o que desejava. A quem essa constatação não é novidade, talvez sentir o gosto de farinha com açúcar como única comida disponível em casa para matar a fome quebre algumas das fantasias que permanecem a sustentar nosso modo de viver, recobrindo com véu da ilusão ou do esquecimento a hierarquia social e racial vigente.

Outro fundamento da dramaturgia é a masculinidade, exercida como potência de virilidade em cena, e questionada na medida em que seu reforço, sob a lógica do “apanhou tem que bater”, obedece ao aprendizado da violência para a sobrevivência.

Nesse sentido, não coube no espetáculo uma visão intersecional que abrisse espaço para se pensar o que é esse homem em relação ao outro, à feminilidade. Não deixa de ser curioso como a proposta de refletir sobre essa masculinidade não tangencia outras expressões de gênero e de sexualidade na cultura negra e periférica (a exemplo do que faz a cena curta “Não Conte Comigo para Proliferar Mentiras”). As mulheres negras já deflagraram outro espetáculo do coletivo (“Ida”), mas seria interessante desenvolver um tensionamento entre esses recortes futuramente, sobretudo porque a violência no universo masculino também decorre de certa concepção de masculinidade, e as implicações entre as opressões são indissociáveis.

Com o vigor de uma revolta retesada há muito tempo e o rigor para transformá-la em experiência estética, “Farinha com Açúcar” nos confronta com nossa permissividade com o racismo. A notícia de jornal se repete: “111, 111, 111, 111 tiros”, “só porque é preto”, “só porque é preto”, “só porque é preto”, “será que mereciam?”, “5 tiros na cabeça”, “só porque é preto”, “o piolho era ladrão/ ainda assim/ será que merecia?”, “só porque é preto”? Reproduzir aqui essas frases, em refrão, está longe de reavivar a potência que ganham como música, tal qual rajada de metralhadora com munição poética ritmada na cadência do disparo, direto na razão e na emoção, para operar sobre ambas alguma transformação. A repetição, aliás, extrapola o domínio formal. Assim como em um dos trechos mais belos e contundentes de “Eras” (segundo espetáculo das Negras Autoras, de BH), a repetição é o signo daquilo que não para de acontecer. O risco no disco, o ponto onde travamos.

“Macumba – Uma gira sobre poder”, da Transitória. Foto de Lina Sumizono.

Negritude ao Sul

É de outro lugar que falo sobre “Macumba – Uma gira sobre poder”, espetáculo da companhia curitibana Transitória, apresentado também na Mostra Oficial. O que destaco, neste caso, é primeiramente o empreendimento de uma criação artística motivada pela afirmação de aspectos da cultura negra em uma cidade como Curitiba, onde até poucos anos atrás não só era raro alguma obra teatral com tal abordagem, como constituía 0 senso comum (e ainda o constitui, segundo relatos ouvidos nos Encontros com a Crítica) a ideia de que não há população negra significativa na cidade em decorrência da colonização predominantemente italiana, alemã, polonesa, ucraniana e japonesa. Contudo, já o Censo 2010 contabilizava 20% dos cidadãos como autodeclarados negros e pardos – ou seja, um a cada cinco habitantes. Certamente, um número ainda reduzido diante da realidade, por consequência do processo de “branqueamento” cultural desse sul “europeu”. É, portanto, significativo que o movimento de afirmação das identidades negras se manifeste no teatro curitibano, ainda tão branco – à exceção de artistas como a atriz e cantora Simone Magalhães, também participante do Interlocuções.

Outro ponto notável é que o espetáculo tenha nascido da companhia Transitória, a qual conheci quando ainda se dedicava a uma estética pop cheia de referências metateatrais, em registros completamente distintos, como “Elizaveta Bam” ou “Para Poe”. Com nova formação, e o intercâmbio com a Cia de Teatro Nata, da Bahia, o grupo curitibano assume a luta do empoderamento negro, pela valorização da herança cultural afro-brasileira. O empreendimento ressoa a pesquisa cênica da fundadora do Nata, a diretora Fernanda Júlia, sobre a ativação do movimento com base nos estudos da ancestralidade, especialmente dos elementos do candomblé transformados em matriz cênica.

A abordagem considera os aspectos antropológicos e performáticos do candomblé para construir um arcabouço de procedimentos para os atores, de modo que os vestígios do rito religioso deem forma ao rito teatral. Essa é a maior riqueza de “Macumba”, a capacidade de instaurar na relação teatral algo da energia contagiante do terreiro, sua corporeidade intensificada, a musicalidade vibrante, e, com isso, proporcionar ao espectador uma experiência que é própria dessa matriz afro-brasileira, mas que permanece distante das vivências centradas na tradição europeia.

Contribui para essa efetivação o fato de que as apresentações ocorreram na Sociedade 13 de Maio, reduto de resistência da cultura negra em Curitiba – cidade onde, apesar do referido branqueamento, a umbanda é uma religião com significativa inserção (no longínquo Censo 2010, Curitiba era a oitava capital com mais praticantes de umbanda e candomblé, à frente do Recife, por exemplo, e Porto Alegre era a primeira). Ao integrar esse espaço do cultivo da tradição negra ao roteiro de teatros da mostra oficial, o Festival de Curitiba cria uma interseção entre manifestações culturais que se mantêm, a maior parte do tempo, apartadas. Seria este, talvez, o lugar da encruzilhada, do qual trata o crítico e pesquisador Marcos Alexandre retomando um conceito cunhado por Leda Martins (2002): “Como espaço de trânsito e deslocamento, na encruzilhada, deparamos com um ponto de interseção, um lugar em que os corpos se cruzam e são cruzados, tocados. Nesse encontro com o outro – princípio da Alteridade –, algo de um se impregna no outro e vice-versa” (ALEXANDRE, 2014).

Nesse território de trocas simbólicas e afetivas, o poder se torna objeto de investigação cênica. É a raiz do neologismo “empoderamento”, derivado do termo inglês “empowerment”, que se transformou em conceito central dos movimentos negro e feminista contemporâneos, como ato e efeito de promover a tomada de consciência de um grupo oprimido sobre sua própria força de ação, por meio da educação (o letramento), do resgate histórico e da autoestima, e pela valoração positiva de seus atributos e tradições. Em “Macumba”, o poder dos orixás é evocado como manifestação da força da população negra. Quando essa presentificação se efetiva, sobretudo pela música, o espetáculo alcança seus momentos mais arrebatadores. Na via oposta, a dicção dos atores nem sempre permite que suas falas sejam compreendidas pelo público.

Na interseção da matriz religiosa afro-brasileira com a cultura do consumo que sustenta o sistema econômico capitalista vigente, homens e mulheres negros poderosos são também nomeados como exemplos afirmativos do que podem os negros mesmo numa sociedade em que a concentração de renda tem entre seus principais fatores de exclusão a raça ou a cor. Razão pela qual a dramaturgia comunica com veemência incontestável a necessidade de se “empretecer os espaços midiáticos”. Trata-se, afinal, da representatividade como propulsora de empoderamento, ou, em negativo, da falta da representação da negritude em espaços sociais cruciais como desencadeadora da retirada do poder dessa população.

A questão que coloco ao grupo, como provocação, é a escolha pelo discurso da riqueza como campo de legitimação social quando enumera os negros mais ricos do mundo. Não há dúvida de que somente 10 dos 2.043 bilionários serem negros é um dado quantitativo impactante capaz de capturar a atenção e demonstrar os extremos da exclusão racial na distribuição de renda. É quando o discurso se direciona ao desejo de enriquecer (haver mais negros e negras entre os bilionários e milionários do mundo) que a lógica capitalista suplanta a crítica ao sistema, preservando a partilha desigual dos recursos de modo que não se combata a estratificação financeira pela qual 1% da população global detém a mesma riqueza dos 99% restantes. Se compreendemos por “racismo estrutural” que a exclusão de parte da população, pelo critério de raça, é alicerce desse modelo econômico, o que se está propondo não atingiria a estrutura de exclusão. Eis uma relação de forças complexa, considerando que a população negra é 1% desse 1% mais rico. A contradição está posta.

Todas essas discussões colocam o crítico (de arte ou da sociedade) em uma contenda. No caso do teatro, penso ser possível inscrever a questão em um contexto mais abrangente, que é o das formas de “irrupção do real” em cena, ou seja, dos procedimentos que convocam elementos (corpos, depoimentos, testemunhos, notícias) da realidade para a construção do espetáculo, dando a eles o tratamento de índices do “real” como uma forma de legitimação. Não pretendo aqui mais do que apontar um problema que emerge desse cenário (e que começamos a debater internamente entre os integrantes do Horizonte da Cena recentemente): Como exercer uma crítica que não se petrifique diante da legitimidade dessas vivências quando elas se tornam um argumento de autoridade embasado num suposto critério de “verdade” – mas sem destituí-las? Em outras palavras, como reconectar o saber originado da vivência às demais formas de produção de conhecimento, sem adotar uma atitude hierarquizadora entre elas, mas de modo a considerar a complexidade da experiência?

"Protocolo Elefante"; Foto de Lina Sumizoto

“O Que Podemos Dizer do Pierre”, de Vera Mantero, e Protocolo Elefante“, do Cena 11. Fotos de Leonardo Lima e Lina Sumizono.

Pensando as diferenças

Esgotar a apreciação de um festival em um texto panorâmico é impossível. Mesmo dividido em três partes, relativamente longas, resta a consciência do quanto falta ser dito, do quanto clama por atenção – por mais críticos, mais olhares, mais tempo. Na edição 2017 do Festival de Curitiba, haveria ainda a destacar espetáculos vistos no Fringe, como “Chão de Pequenos”, primeira peça da Cia Negra, de Belo Horizonte, que propõe uma linguagem na qual dança e teatro se encontram, e sobressai pela cumplicidade das atuações de Felipe Soares e Ramon Brant, dirigidos pelo coreógrafo Tiago Gambogi e por Zé Walter Albinati (da Luna Lunera), numa partitura que dá forma e textura aos afetos entre dois personagens órfãos, cujos destinos são atravessados, mais uma vez, ainda, pelo preconceito racial.

Na programação oficial, certamente merecem mais reflexão – e circulação – trabalhos apresentados dentro do Movva, evento dedicado à dança, como os da bailarina e coreógrafa portuguesa Vera Mantero, “Olympia” e “O Que Podemos Dizer do Pierre” (sobre os quais recomendo ler no jornal português “Público“), e o modo como ela sobrepõe formas de pensamento discursivo e dançante, por exemplo, quando no segundo solo realiza uma coreografia desencontrada da projeção em vídeo na qual Gilles Deleuze se refere aos tipos de conhecimento segundo Espinoza.

Também no campo da dança, sobressai “Protocolo Elefante“, espetáculo em que o grupo catarinense Cena 11 experimenta expressões físicas da possibilidade de se desprender das identidades fixas e de deixar coexistirem as singularidades dos corpos, dentro da contradição que é um conjunto de figuras isoladas para poderem se diferenciar. Disso resulta uma cena completamente estranhada e hipnótica, de formas “inadequadas”, atravessadas por uma iluminação maciça, que divide longitudinalmente o espaço do teatro e envolve a plateia numa imersão física, enquanto o sentido de temporalidade se esgarça com o ritmo (e o posterior esvaziamento) dos movimentos.   

Neste percurso pela mostra oficial do Festival de Curitiba, fica evidente a eleição de projetos artísticos ocupados em expandir a experiência humana a partir da afirmação das singularidades, em oposição ao cenário nacional e internacional que forças políticas e econômicas vêm se alinhando no esforço de dizimar as diferenças. Nesse sentido, cabe ainda ressaltar a presença de “Nós”, espetáculo do Grupo Galpão, com direção de Marcio Abreu, que nos coloca diante justamente da questão do convívio, a partir da experiência de 35 anos de um coletivo teatral, transformada ficcionalmente na situação cênica do preparo de uma sopa, durante o qual se revelam a intimidade, as divergências, o envelhecimento, a estagnação e a resistência daqueles sujeitos, refletindo também problemas políticos contemporâneos (sobre o espetáculo, já tratei mais detidamente neste artigo).

“Nós”, do Galpão. Foto de Annelize Tozzetto.

Adiante

Diante de um panorama tão estimulante de proposições teatrais e de discussões possíveis, o Festival de Curitiba mostra que terá muito a crescer em qualidade se a coordenação investir na continuidade da valorização artística e reflexiva. Para tanto, as conquistas precisam ser mantidas nas próximas edições – mesmo quando se encerrarem os três anos previstos de curadoria de Weber e Abreu – e estendidas às áreas ainda resistentes da programação. Cito duas velhas conhecidas de quem vem refletindo sobre o festival ao longo das décadas: a necessidade de atrair público por intermédio de celebridades televisivas e o modelo de gestão do Fringe. São questões que, de tão repisadas e gastas, já parecia não haver esperança de modificação, mas a capacidade de se reinventar que o festival vem demonstrando faz com que valha a pena, mais uma vez, voltar a elas como possibilidade de encontrar encaminhamentos que contemplem uma ideia de democratização da arte menos submetida aos ditames do consumo – afinal, já vimos no cenário político brasileiro recente como a democratização e a inserção social somente pelo consumo não se sustentam.

Refiro-me à opção por espetáculos que tragam rostos conhecidos do grande público sem descuidar da dimensão artística, como são os próprios trabalhos de Marcio Abreu com Renata Sorrah e os de Guilherme Weber, e contribuam para a construção e ampliação do público de teatro, que encontra suas referências nesta arte e não na televisão (menos por uma questão de ser melhor ou pior, mas para que ambas possam continuar a existir com suas singularidades). Se o gosto desenvolvido for por teatro e não só pelo fetiche de estar diante do artista da TV, há de gerar interesse por outras peças da mostra oficial e do Fringe, favorecendo um modelo menos episódico de relação da cidade com o teatro.

E o Fringe é a outra questão, evidentemente. No fim da década passada e início desta, as mostras especiais como a Novos Repertórios e a mineira renovaram em parte o fôlego do festival, na medida em que concentravam trabalhos com interesse na pesquisa de linguagem continuada. Mas o que se vê agora é o enfraquecimento dessas mostras e o retorno à diluição do Fringe, como um imenso agrupamento de peças dentre as quais uma enorme quantidade são produções caça-níqueis (não gosto da expressão, mas não acho outra mais justa diante de títulos como “Eu te levo pro teatro, mas depois vamos pro motel?” – seria piada se não fosse mesmo uma peça).

É notável, também, a presença cada vez menor das principais companhias curitibanas (que voltarão a se encontrar na Mostra Novos Repertórios, agora em edição independente e desvinculada do festival, de julho a agosto deste ano). A Curitiba Mostra, com a proposta de encenar escritos de autores paranaenses, fica sendo um espaço privilegiado para se ver o teatro da cidade, embora ainda não tenha atingido sua potencialidade (a julgar por outros trabalhos dos mesmos artistas), talvez por carecer de maior tempo de maturação da forma cênica a partir do texto literário tomado como deflagrador do processo criativo. Para 2018, será importante repensar como fazer do Festival um espaço interessante para se ver mais do teatro curitibano.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 

ALEXANDRE, Marcos A. “O teatro negro no Brasil: perspectivas críticas”. Revista Araticum Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes v.10, n.2, 2014. 

Panorama crítico do Festival de Curitiba 2017 – partes 1 e 2

Por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

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Foto de Lina Sumizono

Pelo segundo ano, escrevo um tempo após encerrado o Festival de Curitiba sobre o percurso que fiz através da vasta programação apresentada em março na capital paranaense. Também pela segunda vez, participei do festival pela DocumentaCena – Plataforma de Crítica, formada por este site, o Satisfeita, Yolanda e o Questão de Crítica, em Encontros de Crítica realizados com artistas e público logo depois dos espetáculos da Mostra Contemporânea. A ação me permitiu permanecer o período todo do festival, o que está longe de significar qualquer totalidade diante das centenas de espetáculos e debates. A análise que se segue, portanto, e nunca é demais frisar, corresponde a um percurso particular, ainda que atento ao que escapa à trilha traçada.

Na edição 2017, o Festival de Curitiba adentrou o caminho que começou a se abrir no ano passado, quando Guilherme Weber e Marcio Abreu assumiram a curadoria, e que tem restituído a importância do festival como espaço de visibilidade e reflexão para o teatro brasileiro. Neste ano, vimos os passos adiante tanto da curadoria de espetáculos, ao reunir um conjunto de trabalhos que nos colocam questões sociais urgentes do país e experiências estéticas desbravadoras do que podem ser as artes presenciais (“Gaymada”, “Amadores”, “Farinha com Açúcar”, “Nós”, “Nossa Senhora da Luz”, “Mata Teu Pai”, “Protocolo Elefante” etc.), quanto no investimento em reflexão crítica: o Interlocuções, programação paralela proposta por Giovana Soar, que inaugurou um espaço inédito para o debate de ideias dentro do festival; os Encontros de Crítica; e as duas mesas do seminário Crítica e Curadoria planejadas por Daniele Avila Small e Sonia Sobral.

Desse modo, Curitiba agora se alinha à Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp e ao Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos na compreensão – ainda que em maior ou menor grau – de que as atividades formativas, críticas e reflexivas devam ser componentes estruturantes de um festival de teatro que se pense como mais do que uma feira de entretenimento ou um expositor de produtos culturais. Quando produtores, artistas, espectadores, críticos e teóricos se encontram, se veem e se escutam, todo o circuito da arte se fortalece.

Sabemos que dentro de um sistema capitalista, submetido às vontades dos departamentos de marketing das empresas patrocinadoras num país onde são estas quem define o destino dos recursos públicos, um festival é um evento regido pela lógica produtiva, focada em números, metas, resultados, facilmente traduzíveis por faturamento. Por essa perspectiva, um festival de teatro seria basicamente um concentrado de espetáculos destacados num recorte de tempo e espaço, planejado para o máximo rendimento do espectador. O Festival de Curitiba ainda se mantém nessa toada – pela qual, em anos anteriores arriscou-se a perder na grandiosidade o critério de qualidade –, a diferença é que hoje o faz buscando o equilíbrio entre o mercado e a arte.

O movimento de subverter a lógica mercantil para contemplar, também, o pensamento artístico desde o ano passado já modificou o desenho de forças da programação. Hoje, o caráter de evento de grande porte concorre com a possibilidade de atravessar as duas semanas do festival como uma vivência realmente transformadora. E essa é outra maneira de se conceber o que é um festival: um espaço privilegiado – concentração de corpos no tempo e na geografia – para que a experiência artística opere seu potencial de afetação e de transformação. Nesse sentido, o Festival de Curitiba 2017 foi o mais interessante dos últimos anos.

Parte disso se deve a como os contrastes estiveram evidentes. No ano passado, a abertura do Festival foi o momento de aguçar a sensibilidade com a leitura poética de Maria Bethânia em “Bethânia e as Palavras”. Espetáculo que, se não tratava frontalmente do contexto político em ebulição, devolvia à xenofobia cultivada por parte do Sul contra o Nordeste um belíssimo repertório de poesia popular brasileira colhida em rincões da região por onde o processo de colonização e exploração por portugueses começou. Neste ano, porém, a cerimônia tomou rumo estranho ao teatro, com longuíssimas falas de patrocinadores que não se furtaram nem a fazer propaganda de design de automóvel, o que demonstra no mínimo o despreparo desses departamentos de marketing para produzir discursos mais adequados à situação, considerando a “oportunidade” de “agregar valor à marca”, como diria o jargão. Mais que isso, o discurso dos artistas convidados para a abertura propagava a ideia de que o teatro seria algo apartado do “mundo lá fora”, alienação que destoa de um panorama artístico cada vez mais vibrante com as urgências do nosso tempo como temos visto recentemente – e que o próprio festival contemplou em sua curadoria.

Outra nota dissonante foi a escolha das crônicas de Nelson Rodrigues lidas por Fernanda Montenegro para o Teatro Guaíra lotado. Esse “Nelson por ele mesmo” concentra o teor mais reacionário e machista do dramaturgo, um discurso perigoso de se propagar acriticamente sobretudo em um dos ambientes mais conservadores do país no momento – a “República de Curitiba”. As palavras de Fernanda ao anunciá-lo, defendendo que importa a obra, não o pensamento do autor, pareceram não considerar que as crônicas tratam do pensamento do autor mais do que qualquer outro gênero de escrita. Como poderiam ser tomadas como apolíticas só por serem ditas num teatro?

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Fotos de Annelize Tozetto/ Festival de Curitiba

Gaymada

A resposta a essa sociedade que perpetua discursos de ódio e políticas de exclusão, como se alheia à relação entre estes e o fato de serem brasileiros alguns dos mais altos índices internacionais de assassinatos de mulheres e transexuais, veio de Belo Horizonte, com o coletivo Toda Deseo, que apresentou o “Campeonato Interdrag de Gaymada” e “Nossa Senhora (da Luz)”. Duas criações determinadas a romper com o regime de invisibilidade das travestis, transexuais e lésbicas, recusando os guetos sociais, a partir dos códigos de duas instâncias caríssimas ao status quo: a família e o esporte.

A “Gaymada” é esse jogo de excluídxs, resgatado da infância, quando o esporte torna-se espaço de segregação no ambiente escolar, onde o bullying é arma de coação e rebaixamento. Na formação dos times (como na queimada ou caçador), todos aqueles que não se encaixam no modelo de virilidade masculina ou de performance feminina ficam de fora. Daí a sacada que é criar um jogo cênico no qual “as gay, as bi, as trans e as sapatão” são as donas da bola. E do microfone. Rafael Lucas Bacelar, David Maurity, Cristal Lopes, Ronny Stevens e Thales Brener Ventura conduzem as partidas disputadas por corpos diversos, com diferentes formas e modos de expressar o masculino e o feminino, cuja medida comum é a alegria. Nessa abertura ao outro, colocam em cena “times” alinhados no ativismo artístico, como em Curitiba é a Casa Selvática, numa soma de forças.

O pensamento estético que estrutura o jogo é o da performance no que esta contém de potência de ruptura da lógica binária. Contra uma visão de mundo dividida entre homem e mulher, original e cópia, verdadeiro e falso, alta cultura e baixa cultura, mente e corpo, vida e arte como pares opositores excludentes, nos quais os primeiros termos seriam hierarquicamente superiores, a Toda Deseo faz uma intervenção urbana que é jogo e teatro, é arte e vida, não se prende a definições de gênero e sexualidade normativas nem de alta ou baixa cultura. Aliás, utilizam-se dos materiais do universo pop sem apego à originalidade. Assim, as músicas de Britney Spears, Beyoncé, Xuxa e outros ícones que não reconhecem barreiras entre a cultura hétero e a gay compõem a dramaturgia sonora como referências comuns capazes de colocar aqueles corpos diversos em movimento. O visual, as músicas, a energia trabalham para contaminar todxs ao redor com uma mesma alegria que é desejo de vida.

O recurso à dublagem, próprio do campo artístico das drag queens e travestis, mas também de um teatro contemporâneo que explora a dissociação entre vozes e corpos, identidades e sujeitos, reforça uma estética em que aquelas qualidades antes dicotômicas se confundem. Mais do que isso, deixam de interessar enquanto oposições e hierarquias, assim como o critério de “originalidade” se esvazia de sentido. O pensamento político que essa forma materializa, então, é o da recusa ao original e à veracidade como valores – na legitimação artística e na legitimação cotidiana dos corpos, que não deverão ser determinados pelo nascimento (derrubando discursos fóbicos como o de que uma mulher trans não seria “de verdade”). Portanto, a performance de gênero sai da posição de inferioridade em relação ao gênero biológico. Eis a profunda coerência entre forma e discurso, que os torna indissociáveis – embora nossa tradição lógico-discursiva insista em separá-los, como aqui nestas linhas.

O que a Toda Deseo realiza é, ao mesmo tempo, um teatro escancaradamente popular e completamente contemporâneo, sustentado por procedimentos criativos de pós-produção – quando a criação não se faz a partir de matéria-prima (“original”), mas como montagem que reinterpreta produtos culturais pré-existentes (Nicolas Bourriaud, 2009) – e pela concepção de arte como campo expandido, que extravasa para o jogo, a festa e formas cotidianas de sociabilidade. Com isso, transgride o senso comum de que o contemporâneo seria necessariamente elitista e atravessa zonas apartadas do nosso estrato social.

Outro gesto nesse sentido é a apropriação da festa como forma performática com potência crítica, o que dá o tom da “Gaymada” e aparece ao fim de “Nossa Senhora”. Em Belo Horizonte, onde o coletivo reside, este é um movimento mais amplo, visto também em ações das Bacurinhas (Calor na Bacurinha), Nina Caetano (Obscenidades da Pista) e Guilherme Moraes (Duelo de Vogue), entre outras. A ideia de que o corpo é uma festa, expressa por Eduardo Galeano em “As Palavras Andantes” contra os ditames da igreja, da ciência e da publicidade, talvez seja a melhor síntese dessa relação carnal entre a festa e a libertação do corpo das normatividades sociais opressoras. O que há de arte nisso é a invenção de outras sensibilidades, outras performances possíveis.

E outras imagens. Num regime de invisibilidade, a disputa dá-se sobretudo no imaginário. E quanto dos nossos preconceitos decorre de uma ordem social pragmática que estrangula uma parte imensa da experiência humana que é a imaginação por não atender às normas de produtividade? E mais: se não há “tempo a perder” com aquilo que não é produtivo na ordem do dia, quanto dos nossos preconceitos não virão de certas imagens não fazerem parte desse cotidiano? Quando as gays, as bi, as trans e as sapatão não são corpos visíveis à luz do dia, na rua, na praça, no trabalho, no campo esportivo, na intimidade familiar, a exclusão se retroalimenta. A Gaymada é esse espaço de visibilidade e de convívio, regido por um princípio de prazer. Na contramão dos pessimismos e paralisias diante de uma realidade social terrível e complexa, a alegria é combustível para ação e transformação desde já.

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Fotos de Leonardo Lima/ Festival de Curitiba 2017

Nossa Senhora (da Luz)

Outro espetáculo da Toda Deseo apresentado na mostra oficial do Festival de Curitiba foi “Nossa Senhora (da Luz)” – versão local de “Nossa Senhora (do Horto)”, criado como um percurso pela zona leste de Belo Horizonte, com dramaturgia de Daniel Toledo e direção de Raquel Castro. A história da decadência do estilo de vida da viúva Romina (Rafael Lucas Bacelar), confrontada pela moral libertária de sua prima Soraia (Thales Brener Ventura), arrastou um numeroso público pela paisagem urbana noturna da rua Saldanha Marinho, em Curitiba, desde a praça Santos Dumont até a frente da Catedral. A escolha do lugar já diz sobre alguns sentidos em jogo: re-habitar o centro da cidade, essa região marginalizada fora do horário comercial por onde transitam os seres também marginalizados por um modelo econômico e moral de controle determinado a produzir indivíduos em série e a estigmatizar as diferenças.

A Toda Deseo cria fissuras nesse sistema de exclusão ao convocar o público teatral para estar nessa região da cidade e ao posicionar a travesti no centro do drama dessa “família patriarcal burguesa”, debochando da hipocrisia puritana e transgredindo as imagens da tradicional família mineira. Para além de Minas Gerais, reflete tradições familiares opressoras presentes nos diversos estados brasileiros, como ninhos onde se reproduzem valores morais supostamente cristãos, onde o patriarcalismo confinou o desejo da mulher, onde a exploração de classe é naturalizada (Ju Abreu, única atriz cisgênero, faz Vera, empregada de Romina) e onde se sufocam os desejos desviantes da “norma” heterossexual.

A casa, historicamente território “feminino”, é transposta para a rua, esse terreno de domínio masculino (ainda hoje, quando o medo da violência sexual permanece), enquanto as personagens mulheres são corporificadas por atores que, por baixo dos vestidos e da maquiagem que portam, numa classificação binária enxergamos como “homens”. Isto é, corpos biologicamente masculinos, mas com performances de gênero desencaixadas da construção social do macho, reencenam a liturgia familiar. Mais do que isso: corpos trans, nos papéis tradicionais da viúva, da mãe e da filha que reproduzem modelos de opressão, subvertem os padrões repressores de gênero e sexualidade.

Quando se abre espaço para a presença das travestis na família, uma variedade de gêneros e desejos ariscos à norma também encontra possibilidade de existência. Nesse sentido, faz toda diferença a aparição de uma atriz transgênero, Cristal Lopez, numa espécie de epílogo no qual a ficção incorpora o real daquele corpo e daquela vivência. Como na “Gaymada”, o que se opera então diante dos olhos dos espectadores é a criação de imagens suprimidas da rotina da “normalidade” – essa doença da padronização dos desejos. Mais uma vez, os artistas confrontam os mecanismos de invisibilidade. Só que em “Nossa Senhora” isso se infiltra nas formas mais convencionais do teatro – a personagem, o drama, a peça de rua.

É cabível dizer, portanto, que a Toda Deseo faz um teatro de ocupação dos territórios sociais geralmente negados às travestis, alterando o regime do visível. Inscrito no campo da arte, esse trabalho não é literal (ou sociológico no sentido estrito), mas de ocupação do imaginário, dentro de uma política das imagens que reconfigura a paisagem urbana e familiar, de modo a agir esteticamente sobre a nossa constituição de sentidos e imagens do mundo e sobre os nossos afetos.

Muito da complexidade alcançada por “Nossa Senhora” vem do atrito entre as camadas semiótica e fenomenológica.  Ou seja, entre as ficções criadas por textos, figurinos, cenários etc. e a presença mesma dos corpos daqueles atores, por si só impossíveis de serem ignorados – mas também explicitados em momentos específicos da peça. A nota dissonante gerada por essa fricção entre o drama burguês das personagens, a physique du role (a “adequação” física a um papel) e a performance de gênero dos atores cria um estranhamento constante que dá forma a uma experiência estética desrepressora.

A crítica à hipocrisia do puritanismo e à crueldade que essa moral camufla guarda proximidade assumida com a “Crônica da Casa Assassinada” de Lúcio Cardoso. E, em certa medida, também com a obra para teatro de Nelson Rodrigues. Mas com a Toda Deseo não há “anjo”, uma vez que a lógica cristã do pecado, se perpetuada pela família de Romina, é alvo do deboche de Soraia e do espetáculo; e talvez nem haja “pornográfico”, porque o corpo e o sexo deixam de sê-lo quando livres do puritanismo.

A posição política escancarada é de afirmação da dignidade LGBT e de resistência contra a onda reacionária brasileira e internacional, em consonância com os demais movimentos de militância feminista e negra – embora essas sejam questões subjacentes. Alguns estereótipos em relação à mulher sobrevivem (e recordam o universo rodriguiano), em especial o elogio à “outra” como única verdadeiramente amada, o que ainda coloca a traição como antídoto ao aprisionamento no casamento sem desconstruir os alicerces dessa estruturação falocêntrica.

Em compensação, a ausência de personagens homens radicaliza a recusa à hierarquia da masculinidade.  E desfaz-se o sistema de controle comportamental pela culpa cristã, reabilitando o desejo e o prazer. Outra vez, a festa aparece para reconfigurar as relações entre os corpos, as sensações, os afetos – e celebrá-los. “Nossa Senhora” termina com pagode no boteco, misturada à vida noturna da mais numerosa classe social brasileira.

Ao colocar em convivência atores, público e os sujeitos que habitam as madrugadas do centro da cidade também nos dias em que não há teatro, as contradições e as dificuldades desse encontro de diferenças ficam ressaltadas. Assim como em uma das apresentações da “Gaymada” um dos jogadores foi atingido por uma pedrada, em um ataque homofóbico; ao fim de “Nossa Senhora”, durante a conversa entre os presentes (o Encontro de Crítica), ouviram-se falas machistas de um espectador e outra espectadora teve o braço torcido por um homem bêbado. Dois episódios que dizem do quanto são necessárias todas as ações políticas, entre elas as experiências estéticas, que sensibilizem contra as diversas formas de violência social, misoginia, transfobia, lesbofobia e homofobia.

Com esses dois trabalhos, o que chega a Curitiba é um recorte de uma cena teatral engajada que tem se fortalecido em Belo Horizonte nos últimos cinco anos. Experiências cênicas em que a poesia dos corpos e das palavras antes silenciadas se faz ouvir, explodindo a camada de invisibilidade que recobria questões que sempre foram determinantes na estruturação de sentidos e na partilha dos sensíveis da nossa vida social e artística. Dessa produção, também esteve presente no Fringe “Rosa Choque”, trabalho dirigido por Cida Falabella, com Cris Moreira e Guilherme Théo, um dos marcos de um teatro feminista gestado em Minas Gerais, sobre o qual já tratamos aqui e aqui. E pouco depois, em abril, durante a Mostra Cena Breve, o público curitibano pôde ver também “Calor na Bacurinha”, outro marco. Como esse conjunto de espetáculos transforma o teatro mineiro é questão que ainda merece uma investigação mais demorada e alguma distância temporal a favorecerá.

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Fotos de Annelize Tozetto/ Festival de Curitiba 2017

O gesto de reinterpretação do mundo por perspectivas deslocadas da centralidade masculina heteronormativa, visto nos trabalhos da Toda Deseo, move também a apropriação da narrativa mitológica em “Mata Teu Pai”, espetáculo apresentado na mostra oficial do Festival de Curitiba, em março deste ano. 

“Mata Teu Pai” traça o caminho da mitologia grega ao feminismo contemporâneo, reconectando dois pontos distantes da história mundial à luz de Medeia, personagem vista pela dramaturga Grace Passô como a encarnação da força da mulher de qualquer tempo. Desprendida das palavras com as quais Eurípedes (480-406 a. C.) eternizou o mito da feiticeira infanticida, a autora reimagina, mais de vinte e quatro séculos depois, a figura trágica da mulher traída e abandonada pelo marido, dando novos contornos às suas paixões – o amor e a fúria. “Deixa eu mesma me contar”, diz sua Medeia.

Na versão de Grace, já publicada em livro pela editora Cobogó, Medeia aparece febril, cercada de mulheres migrantes como ela. Essa condição de estrangeira tanto é um comentário que a autora imprime no texto sobre as relações políticas contemporâneas, especialmente contra o seu quinhão de xenofobia, fascismo e racismo, quanto pode ser vista como metáfora da própria condição da mulher em sociedades patriarcais, seu sentimento de inadequação e não pertencimento quando assume como naturais formas de vida que lhe são impostas.

Uma das qualidades da escrita é essa temporalidade tensionada entre o atual e o atemporal, que preserva a potência arquetípica do mito, mas a redireciona às urgências de uma sociedade específica, concreta, viva, atingida por clamores de refugiados e das lutas pelos direitos ao próprio corpo.

À sua maneira, “Mata Teu Pai” ecoa uma condição de estrangeira no próprio corpo explorada por Grace em “Vaga Carne”, sua criação anterior. Contamina-se pela mesma inquietação de perscrutar identidades, desestruturar e contrapor os modos de subordinação do sujeito – no caso, a misoginia que aprisiona as identidades femininas. Sua Medeia é a afirmação do desencaixe desses padrões, um corpo de mulher com sua força aflorada, em sua máxima insubmissão.

Parir e amar, competências associadas à constituição feminina, são celebradas no discurso dessa Medeia arquetípica como potências extremas do corpo da mulher, provas de sua força que não devem ser transformadas em obrigações que a oprimam – como as concebe a cultura da maternidade compulsória e do amor incondicional da mãe ou da esposa disposta a tudo sofrer, acolher e perdoar. “De nós esperam os filhos, de nós esperam amor e amor e amor, de nós esperam a força descomunal, o trabalho, dentro e fora de casa, de nós esperam o gozo, a beleza, até o mistério. E nós acreditamos nisso. É ridículo. Tanto que adoecemos de amor por pessoas que nem amamos”, diz Medeia. Na condição limite de desespero em que se encontra, a personagem leva tais capacidades às últimas consequências: se pode dar à luz, também pode “tirar a luz”.

Esse discurso poético-político é lapidado com ecos e repetições que revestem seu discurso com a aderência dos refrões musicais. Configura-se como uma situação de encontro teatral com uma plateia, a quem Medeia afetuosa e provocativamente interpela, atribuindo a posição de suas filhas. A teatralidade dessa proposição ressoa outras estruturas armadas por Grace ao longo de sua trajetória desde o Espanca! para produzir pela dramaturgia uma forma específica de relação palco-público. Cria, assim, uma implicação dos espectadores como agentes da mesma sociedade, compartilhando responsabilidades éticas para que, juntos, possamos “revisar” o mundo.

Eis o que a autora executa. Ao revisar a história de Medeia, revê-la por outro ângulo, a partir da perspectiva de outro tempo, outro gênero e outro corpo, as reações e ações dela se alteram. Não cabe mais o ódio à amante ou à madrasta, ao qual hoje sabemos ser produto da misoginia. É Jasão o responsável, é contra ele que Medeia se insurge com toda visceralidade de que é capaz e sem temer as contradições decorrentes de suas paixões.

É justamente nesse destemor, nesse sem limite da imaginação de uma Medeia indomável, que a escrita de Grace encontra sua força artística. É quando o gesto político se recusa a obedecer aos contornos da racionalidade ou a estar a serviço da defesa de um ideal de modo simplista ou maniqueísta que a arte pode se realizar em sua extrema potência de perturbação e disrupção. Uma afetação muito além da experiência cotidiana, das zonas por onde nossas percepções e afetos costumam trafegar.

Na montagem dirigida por Inez Viana, Medeia confronta-se com a plateia a quem dirige diretamente seu discurso. O espaço cênico se modifica pela iluminação criada por Nadja Naira, ora acendendo a luz sobre o público, e nos incluindo como parte da cena, ora disparando os refletores como bombas que fazem do palco uma região de conflito. Dão à encenação o tom de gravidade e de grandiosidade necessários ao mito, sem qualquer espetacularização que esvaziasse sua humanidade.

A atriz Débora Lamm, tantas vezes vista à vontade em personagens cômicas, sustenta a tragicidade furiosa de Medeia. Em torno dela, gravita um grupo de senhoras da sociedade local, não atrizes. No Rio de Janeiro, onde “Mata Teu Pai” estreou, eram moradoras da região da Gamboa. Em Curitiba, outras senhoras – e dois senhores – atenderam à chamada pública. A presença delas povoa o palco com imagens femininas de uma faixa etária com baixa representatividade social mas alta significação para os discursos de empoderamento e emancipação da mulher que perpassam a peça. Carregam, ainda, a latência de um coro (de inspiração grega) ainda um tanto indefinido em sua função e na relação com a protagonista.

Nos dois momentos em que as interações se intensificam, na forma de um beijo e do amamentar, criam-se algumas das cenas mais belas do espetáculo, como coágulos de sentidos e sentimentos de processamento não óbvio, e as discrepâncias de idades, corpos e imagens geram um curto-circuito em nossas pré-concepções. Entretanto, caso sejam essas senhoras representantes das vizinhas refugiadas de Medeia – a síria, a paulista, a haitiana citadas no seu discurso –, tais singularidades ganhariam expressividade se marcadas em suas aparências, em vez da uniformidade dos tons de pele da imigração europeia que constituiu Curitiba.

Trabalhar com não atores, como as senhoras do coro, tem sido um recurso recorrente no teatro contemporâneo, como desenvolvimento de pesquisas que exploram as tensões entre a presença e a representação, o real e o ficcional da cena ou, mais amplamente, a vida e a arte. Esses corpos que não passaram pelos processos de formação de ator, não praticaram previamente nem assimilaram técnicas de voz, presença, jogo e atuação, não estão habituados com a posição de evidência em cena, eles compensam tais inabilidades com suas imagens e personalidades singulares e com uma carga de vivência, de história pessoal, que transparece nos modos de agir. Suas presenças tendem a conferir um efeito de realidade à encenação, e o que não é menos sensível ao público, de proximidade, familiaridade e carisma, que pode ser trabalhado a favor da dramaturgia.

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Fotos de Annelize Tozetto/ Festival de Curitiba 2017

Blank

É carisma o trunfo de “Blank”, jogo cênico concebido pelo iraniano Nassim Soleimanpour (“Coelho Branco, Coelho Vermelho”). O dramaturgo comanda a peça com as indicações para a encenação: a cada apresentação, um ator ou atriz diferente deve ser chamado a atuar sem conhecer o texto, que só chegará às suas mãos já diante do público. Ele ou ela deve seguir as indicações escritas nas páginas impressas, preenchendo as lacunas com ajuda da plateia. Basicamente, a orientação é para que se construam – em diferentes graus de superficialidade – biografias do autor, do ator e de um espectador escolhido.

Na apresentação realizada por Du Moscovis, a simpatia do ator – e a simpatia prévia do público por ele – funcionou para que conquistasse a plateia rapidamente. É interessante observar que a seleção de atores e atrizes famosos por seus trabalhos na televisão para participar de um espetáculo de experimentação formal é um modo inteligente de suprir uma demanda da coordenação do festival por artistas com apelo de público. A escolha, entretanto, esbarra nos próprios limites de “Blank”. E estes são bem anteriores às variações de carisma ou desempenho do ator surpreendido pelo texto ou dos espectadores convidados a participar.

Embora aparente ser um exercício democrático de criação coletiva em que o público torna-se coautor, o jogo proposto é completamente dominado por Soleimanpour. Não há espaço, tempo, ambiente ou dinâmica para que outros agentes, sejam ator ou espectadores, realmente coloquem-se como criadores, porque estão alheios aos propósitos maiores que conduzem a dramaturgia. São como o gerente da fábrica e os operadores do maquinário, respondem a comandos de um sistema maior do qual estão alienados. Na apresentação vista, o resultado foi uma profusão de boas tiradas vindas de uma plateia aquecida, até que a dramaturgia fosse perdendo potência ao longo do preenchimento de suas lacunas.

Desta vez, o efeito de realidade da espectadora chamada ao palco, no lugar de atuante, e o carisma dos envolvidos não bastaram para levar o jogo além das ligeirezas, aquelas primeiras respostas que podem trazer alguns insights, mas carecem de reflexão para ultrapassar o lugar comum. Talvez em um teatro menor, onde a proximidade entre palco e plateia permitisse a instauração de um ambiente criativo, fosse possível outra abordagem. Mas isso dependeria de testar o quanto a dramaturgia de Soleimanpour é capaz de se abrir àqueles que a operam, em vez de manipulá-los.

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Fotos de Lina Sumizono/ Festival de Curitiba 2017

Amadores

“Amadores” é o primeiro espetáculo em que a Cia. Hiato, dirigida por Leonardo Moreira, trabalha extensivamente com cidadãos não atores, escolhidos a partir de anúncios de jornais e de audições. A cena é armada como uma espécie de show de talentos dividido em rounds durante os quais esse grupo de pessoas apresenta-se, seja mostrando uma habilidade (cantar, dançar, tocar um instrumento, lutar etc.), seja relatando a si mesmas.

A Hiato avança sua investigação sobre as relações entre o real e o ficcional depois de absorver histórias pessoais dos atores na construção dramatúrgica da peça “O Jardim” (2011) , cruzar relatos pessoais e ficcionais em depoimentos em primeira pessoa, que assumiam o caráter de testemunhos, no conjunto de solos “Ficção” (2012) e colapsar os limites da ficção de encontro às suas balizas éticas em “2 Ficções” (2014). No “solo” de Thiago Amaral, aliás, ele convidava ao palco o pai para reparar uma relação cindida pela homofobia. Aí já estava a semente de um atuante não ator assumir uma posição de autoexposição numa narrativa de superação, como vemos em “Amadores”.

O novo espetáculo do grupo paulista desestabiliza a balança ao colocar em cena meia dúzia de atores e dezenas de amadores, cuja característica amorosa, denotada no título, reverte-se em um tipo de carisma próprio da identificação com figuras que não escondem suas falhas, seus limites nem seus desejos, enquanto dão o melhor de si para impressionarem os outros – nós. As escolhas do diretor miraram os candidatos com habilidades artísticas a exibir e, especialmente, aqueles com histórias de superação – o critério “dramatúrgico”. Mas valorizaram também a simpatia e a singularidade de corpos variados, alguns com inerente qualidade de presença ou competência para manejar simbologias, tempo, espaço e a atenção alheia em suas narrativas, a ponto de ganharem protagonismo – ou seja, o critério “cênico”.

Essas performances amadoras sustentam-se na crença de que qualquer vida é passível de ser contada como ficção. Mais do que isso, o processo de dar sentido à vida, em nossas sociedades ocidentais ao menos, é sempre uma prática narrativa regida por elementos ficcionais. É o que permite, por exemplo, a construção do “personagem” de uma reportagem de jornalismo literário, que empresta da literatura os recursos ficcionais para fazer da irredutibilidade que é uma pessoa algo cabível numa história. Ou no caso da narrativa em primeira pessoa, quando somos nós mesmos a relatar-nos por procedimentos ficcionais, destacando sentimentos e ações em busca de alguma coerência, algum propósito para a existência, como fazem os amadores do espetáculo.

Entretanto, o relato de si mesmo é sempre parcial e preserva pontos cegos, “assombrado por algo para o qual não posso conceber uma história definitiva”, como observa a filósofa Judith Butler (2015, p. 55). Depende da perspectiva desse “eu” que narra sempre submetido aos limites perceptivos, cognitivos, geográficos e históricos de sua própria vivência. É, portanto, um relato cingido pela insuficiência, posterior aos acontecimentos que fazem possível o “eu” e sua história se inscreverem na linguagem, de modo que cabe a esse “eu” recuperar, reconstruir e fabular origens e circunstâncias que não pode conhecer. “Na construção da história, crio-me em novas formas, instituindo um ‘eu’ narrativo que se sobrepõe ao ‘eu’ cuja vida passada procuro contar”, diz Butler (2015, idem). Essa opacidade do eu em relação a si mesmo, ou sua “transparência parcial”, evidencia a relacionalidade que vincula o sujeito à linguagem (na qual se concebe), à alteridade (o eu só se constitui diante do outro) e ao mundo social (com suas normas que nos precedem).

De algum modo, esse limite do relato pessoal paira como questão sobre “Amadores”, na tensão entre o que os não atores ambicionam mostrar de si e o que os espectadores são capazes de ver. Essa diferença é ressaltada pela condução dramatúrgica, que inscreve a autoexposição desses “personagens” de si mesmos na linguagem hollywoodianos da história de autosuperação. O filme “Rocky”, de Sylvester Stallone, é convocado como exemplo das narrativas com as quais o sistema cultural nos impregna e que modelarão nossa compreensão do mundo, das biografias e dos indivíduos, para dar sentido e coerência às experiências belas, terríveis e triviais de uma vida e que de outro modo não se unificariam num corpo em constante transformação.

Ao assumir criticamente os contornos de um roteiro de superação e refletir sobre os efeitos dessas formas narrativas ventiladas pela indústria cultural na nossa compreensão de mundo – ao mesmo tempo em que o acúmulo de apresentações provoca nos atuantes amadores a percepção crescente sobre os seus processos de elaboração e enunciação de suas próprias histórias, desfazendo ingenuidades por trás da ideia de “depoimento verdadeiro” -, a dramaturgia favorece uma tomada de consciência sobre as narrativas que se cria (que criamos) para justificar uma identidade e um destino. E, ao atrair nosso olhar para o palco, nos redireciona à vida mesma.

O modo como um recorte social diverso é colocado em cena e desperta nosso interesse antropológico em “Amadores” faz lembrar “100% São Paulo”, peça do coletivo suíço-alemão Rimini Protokol apresentada na MITsp 2016, mas com abordagem verticalmente distinta. Se lá eram os números que regiam o show – as pessoas sobre o palco correspondiam às estatísticas do censo da cidade e respondiam a questionários ao vivo, submetidas a um dispositivo que não lhes concedia espaço ou tempo para expressão de singularidades -, aqui são as vivências singulares que se mostram, rompendo as pré-concepções que as primeiras impressões fornecem. Não só aquelas associadas à visão de mundo reacionária, mas – escapando dos maniqueísmos – também contra preconceitos que possamos ter diante da mulher burguesa, por exemplo, que descama sua história trágica de abortos involuntários sucessivos e sua força não adivinhável por quem julgue o estilo da bolsa que ela carrega.

Assim como “Rocky”, outras referências pop quase onipresentes na constituição dos habitantes deste pedaço do planeta, como Xuxa, são empregadas para conseguir mais que a adesão, a identificação do público em relação a essas narrativas impostas massivamente sobre uma sociedade. São os discursos que nos vestem, nos absorvem na vida cotidiana, e impelem a refletir sobre quais outras formas de compreensão do ser no mundo seriam possíveis. (Algo semelhante ao que “Blank” almeja ao lançar a atenção sobre a escrita biográfica, sem contudo construir relações formais e simbólicas suficientes para deflagar.)

Como na “Gaymada”, a alegria dos amadores está a serviço de uma reflexão que nos liberte de preconcepções sobre os outros e sobre nós mesmos. Há um celebrar da vida feito com a consciência crítica e o deboche de quem insiste em desfrutar, não se abater nem se submeter. Ainda que seja por influência da narrativa do lutador. Assim, a Hiato atinge um ponto excepcional na investigação contemporânea sobre as relações entre real e ficção, em que já não interessa tanto estabelecer a realidade no teatro, mas desvelar a ficção na vida.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. Martins Fontes, 2009.

BUTLER, Judith. Relatar a Si Mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

 

Fiac segue na inquietude de seu tempo

Foto: Leonardo Pastor
Espetáculo Nós, do Grupo Galpão abriu o festival baiano de 2016. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

“Para onde ir?”, debate-se o Grupo Galpão, num movimento interno de autopurgação, que também provoca pequenos abalos sísmicos pelo país com o espetáculo Nós. Os atores vibram sobre convivência em grupo, diferenças, tolerâncias e afetos alçados ao limite. Mas também pulsam nas cordas da ambivalência, de um ethos desnudado frente ao público e que revela as contradições do mundo contemporâneo.

A peça Nós é a 23ª produção da trupe mineira em 34 anos de existência. O trabalho dirigido por Marcio Abreu – encenador da Companhia Brasileira de Teatro – com dramaturgia construída coletivamente e texto assinado por Eduardo Moreira e pelo diretor, traduz inquietações dos seus integrantes, os atores Eduardo Moreira, Antonio Edson, Chico Pelúcio, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara.

Já no início da peça, a trupe chama para a ideia de comunhão, quando Teuda Bara entoa “comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar”, versos de Lama, de Paulo Marques e Ailce Chaves, um dos sambas-canções mais celebrados no repertório de fossa, gravado por Linda Rodrigues, Gilda Valença (em forma de fado), Maria Bethânia e Núbia Lafayette.

Essa ideia de confraria se faz presente na preparação da sopa, na frase cênica de Teuda Bara “É pra refrescar!”, que salienta a importância do encontro. As conversas entrecortadas aceleram para outros caminhos, de repetições, perguntas, coreografias. Para conjecturar sobre o espaço da partilha, da confraternização, de estar junto, da vontade da maioria, do respeito à minoria. A encenação Nós também rasga os tecidos da violência que contagiou o mundo e toca na crise da esquerda brasileira.

Numa cena emblemática do espetáculo, a personagem de Teuda Bara é escorraçada, expulsa de forma agressiva, à base de sopapos e pontapés, apesar de sua resistência. É possível associar a cena ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff, mesmo que tenha sido criada antes do impeachment. É um momento angustiante que traça um arco da política do micro ao macro.

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Eduardo Moreira e Teuda Bara. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

A encruzilhada que a pergunta inicial suscita, reforçada pela expulsão de Teuda Bara, me incitou a seguir reflexões de pensadores para tentar entender questões caras cravadas em nossa carne pela eletrizante performance do grupo. Enxergo espelhada na cena uma crítica da ética indolor, na perspectiva do filósofo francês Gilles Lipovetsky, que vem na esteira do esgotamento dos ideais e do declínio da moral. Com o self interest do sujeito exaltado por Lipovetsky o dever é diminuído às rés do chão nessa sociedade pós-dever, sem obrigações difíceis.

Contra o minimalismo ético de Lipovetsky (fincado na exaltação dos desejos, do ego, do individualismo hedonista e narcisista), pulsam na cena lampejos do que o teórico da “modernidade líquida”, o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman chama de “ser-para”, de que existe uma responsabilidade para com o outro, da alteridade.

Então, mesmo diante desse cenário movediço de incerteza e de relativismo moral, de ligações e de desligamentos, em que as pessoas se constroem e desmancham-se, há uma corrente que defende que não somos meros objetos a serem descartados. A construção da democracia no jogo cotidiano se faz também do atrito entre figuras diferentes. A peça Nós pergunta antes de tudo terminar: como recomeçar ou começar algo novo? Alguma esperança na seara dos afetos, com o espelho refletindo o espectador antes do chamamento para a balada.

O espetáculo Nós abriu o Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia – Fiac, realizado de 25 a 30 de outubro de 2016, em Salvador, e que nesse ano reforçou a urgência de tomar posições críticas diante da realidade. Uma edição que assumiu a política no seu sentido mais franco e humano, a micropolítica de todo dia comprometida com o coletivo, com aquilo que nos é comum, nas palavras de Felipe Assis, um dos coordenadores gerais do Festival, ao lado de Ricardo Libório.

Ricardo Libório e Felipe Assis, curadores do Fiac. Foto: Leonardo Pastor
Ricardo Libório e Felipe Assis, curadores do Fiac. Foto: Leonardo Pastor
Provocação do Fiac. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Provocação do Fiac. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

Como posicionar discurso e ação, quebrando regras para criar outros jogos e novos modos de (re)existir em tempos de crise?, como convocar a participação coletiva?, foram disparadores da nona edição do Fiac Bahia. A proposta é de engajamento direto, em detrimento a esquemas de representação. Uma convocação à presença; ou seja, um convite para “meter mão”, tanto no sentido figurado, quanto literal.

Em conversa com o Felipe Assis, ele ressaltou a importância dos trabalhos que se apresentam como resultado, mas também as atividades de formação. A quebra da hierarquia foi um procedimento para valorizar também o processo. “Porque os resultados podem servir a uma lógica de mercado de produto. Mas a gente sabe que é o tempo contínuo de elaboração que também se conecta o processo da prática artística. E que nos últimos tempos se tem valorizado o lugar do processo em detrimento muitas vezes do resultado”. Por isso que, para ele, uma atitude, uma postura política pode ser em alguns casos mais relevante que o resultado estético muito bem-acabado e facilmente comercializável.

Aplicação variada de prática artísticas na curadoria como risco, presença, múltiplas tradições, narrativas fragmentadas, participação estiveram na mira do festival. E em 2016 o Fiac deu relevo à participação como princípio ativo. Para isso contou com um grupo gestor e curador ampliado, composta por 16 mãos que construíram a identidade do festival – coordenações geral, administrativa, técnica, logística e de atividades formativas, além da assessoria jurídica e de comunicação. A equipe fez com que essas ideias pulsassem em todas as ações do festival, das questões políticas e da coletividade.

Ao longo de seis dias, a pergunta que norteou as ações do Fiac Bahia foi como reinventar a participação coletiva diante de tantas rupturas? As respostas vieram de várias formas, principalmente nas tentativas de fortalecer vínculos comuns, entre artistas, produtores, público, sociedade. Tarefa difícil, mas engendrada nas microrrelações de empoderamento.

O festival se tornou “uma rede que se retroalimenta e estabelece vínculos com outras iniciativas interessadas mais em perguntas do que em respostas”.  Muitas ações foram feitas a partir dessa decisão: de criação e intervenção visual e algumas oficinas, ampliação do Seminário Internacional de Curadoria e Mediação em Artes Cênicas.

As peças de divulgação reforçam a proposta de horizontalidade. O público e os participantes do Fiac Bahia foram convidados a personalizar cartazes e programas nos ateliês abertos de serigrafia, carimbo, estêncil e xilogravura montados no Pátio do Goethe-Institut. A confecção desse material incorpora produção industrial e artesanal e foi possível a partir da parceria da TANTO Criações Compartilhadas com a Sociedade DA Prensa. O festival incentivou a “meterem mão” nesse processo e customizar ao mesmo tempo que provoca reflexões sobre autoria, gesto artístico, ser artista e ser público.

Festa em Casa: Casa Preta. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Casa Preta. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Ocupação Coaty. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Ocupação Coaty. Foto: Leonardo Pastor

O festival se espalhou por 12 espaços de Salvador. Com exceção do Teatro Castro Alves, com capacidade para mais de mil pessoas (mas que na realidade funcionou no palco para público mais concentrado), os outros espaços estão voltados para plateias de até 200 lugares, incentivando um convívio mais próximo da experiência cênica. Foram utilizados Teatro e Pátio do Goethe-Institut, e Teatro Vila Velha, Teatro Martim Gonçalves, Espaço Cultural Barroquinha, Teatro Martim Gonçalves, Teatro Experimental, Teatro Gregório de Mattos, Casarão Barabadá, Casa Preta, Coaty e Oliveiras.

Os sentidos de convivência, de se apropriar da cidade em seus casarões carregados de história, ganharam atitudes nos encontros noturnos do Fiac, com as “Festas em Casa”. Na rota de dialogar com os projetos de ocupação cultural de Salvador receberam artistas e público para contato mais próximo. Um impulso para essa reinvenção do coletivo, da possibilidade de compartilhamentos com instigação festiva. Bandas e Djs de vozes e ritmos variados animaram o Casarão Barabadá, Ocupação Coaty, Oliveiras, Casa Preta.

O exercício do pensamento crítico teve atuação da DocumentaCena, com a participação das casas Questão de Crítica (RJ), Satisfeita, Yolanda (PE)? e Horizonte da Cena (BH), e de outros profissionais como Antropositivo (SP), Agora (RS), Barril (BA) e Precisa-se Público (RJ).

A programação reuniu um leque de espetáculos posicionados de forma crítica frente às questões da contemporaneidade. Nessa 9ª edição, o Fiac quis sacudir o “espectador” para assumir um papel mais ativo, na cena ou fora dela. Chacoalhou.

Seguem comentários sobre outros espetáculos que assisti durante o festival:

O BOBO

Caio Rodrigo mistura Yorick, da peça Hamlet, e a figura do bobo de Rei Lear, ambas de William Shakespeare, para criar um personagem que dispara sua metralhadora giratória, contra tudo e todos. E ele está no meio. O espetáculo O Bobo, do Teatro Terceira Margem, se arvora a dizer verdades antes de um suicídio anunciado. O ator está em cena vestido apenas por uma cueca preta. A ironia que sai da sua boca e de seus gestos se esparrama pelo teatro e ele convoca trechos de obras de Albert Camus, Maquiavel, Caetano Veloso, fragmentos de ensaios filosóficos para reforçar sua munição acusatória.

O intérprete joga com as teorias teatrais e envereda em seu discurso pelas ruelas do ofício do ator, questionando filigranas e trocando de máscaras para defender seus pontos de vista.

Caio Rodrigo anuncia a si próprio como codiretor rejeitado duas vezes na pós-graduação, músico amador e maconheiro, figurinista que não teve trabalho, ator/criador meio frustrado e aspirante a professor da UFBA. Ficção com fundo de verdade?

Criação conjunta de Caio com o diretor teatral Daniel Guerra, O Bobo é bom de provocações metateatrais. Dividida em quadros, a peça circula por várias poéticas e questiona o conceito da presença e a relação entre artista e público. Algumas instigam, outras nem tanto, como a “para quem se faz teatro?”, que se torna uma questão sem grande ressonância diante de todo o esforço de criar um mosaico inteligente e desafiador de pensamento cênico performado. A trilha sonora de Juracy do Amor (Beef), explora texturas, riffs de guitarra ao vivo e potencializa o clima do programa.

ENDOGENIAS

O título Endogenias traduz o processo de valorização dos próprios intérpretes do Balé Teatro Castro Alves como criadores da companhia baiana de dança contemporânea. O espetáculo é formado por três coreografias distintas (Generxs, de Leandro de Oliveira; Youkali, de Konstanze Mello; e Dê Lírios, de Tutto Gomes), apresentadas com a plateia sentada no próprio palco da sala principal.

Imagens e contextos do cotidiano são inspiradores da coreografia Generxs que cria um ambiente de embate para discutir o gênero, a identidade de gênero, a sexualidade, a relação de poder entre masculino e feminino, o machismo. A obra de Leandro de Oliveira produz potentes movimentos e fluxos de imagens nas articulações das cenas sobre a criminalização e o preconceito; a tolerância relativa; e a celebração. Em determinado momento da peça coreográfica, pessoas do público recebem bolinhas e são incentivadas a jogar em um personagem que assume sua homossexualidade. Em seguida, outro bailarino, montado em uma sandália plataforma, pega o microfone e parte para discutir com a plateia sobre o procedimento, questiona a ação e faz um discurso contra o preconceito.

Tudo é permitido sem censura ou julgamentos em Youkali, da coreógrafa Konstanze Mello. É um quadro bem sensual. O bar dançante se transforma em lugar utópico onde os seres podem realizar seus desejos. Lá não existe conflito, discriminação, nem qualquer tipo de censura. A peça é livremente inspirada na obra Cabaré Youkali, do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (1898-1956), e do também alemão, o compositor Kurt Weill (1900-1950). Sugere uma caverna pós-moderna para onde se pode fugir da realidade opressiva e perversa.

Dê Lírios, de Tutto Gomes, trata das desilusões amorosas e chega ao palco com um sotaque nordestino e as influências norte-americanas e europeias. Carrega um tom nostálgico reforçado pela música Chorando e cantando de Geraldo Azevedo. A coreografia também faz referências indiretas ao Movimento Armorial lançado pelo escritor paraibano Ariano Suassuna (1927-1914).

Mônica Santana questiona a invisibilidade, os estereótipos, o silenciamento e a hipersexualização da mulher negra
Mônica Santana questiona a invisibilidade, os estereótipos e a hipersexualização da mulher negra. Foto: Leonardo Pastor

ISTO NÃO É UMA MULATA – SOLO PERFORMÁTICO

No teaser do espetáculo Isto não é uma mulata, a atriz Mônica Santana queima uma edição de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, entre outros livros e revistas. Ela defende o procedimento como ação política contra a lógica da democracia racial. Na peça, a atriz cita a famosa frase “branca pra casar, preta pra trabalhar e mulata para fornicar”. É contra esse tipo de discurso que a intérprete levanta a performance, da invenção da mulher negra no Brasil.

Antes de começar a sessão, enquanto o público aguardava o chamado, uma moça circulava a limpar o chão. Achei estranho. Mas isso já fazia parte da performance, da demonstração de invisibilidade dos papeis subalternos.

O espetáculo se alinha com o processo de muitas mulheres negras e da própria atriz. Dos procedimentos que adotou para ser notada, para parecer branca. Do autoengano de que não é tão preta assim à consciência da beleza e forças negras, que não admite o exotismo, a animalização nem a hipersexualização.

A performance ironiza de forma potente a imagem da mulher negra nas artes e na mídia. Isto Não é Uma Mulata ataca clichês na representação da mulher negra. E é bastante contundente ao criticar os papeis redutores do trabalho doméstico, da sensualidade da passista carnavalesca e do corpo exuberante.

Como exercício de teatro político, a peça também cumpre a função de falar de afetividade e solidão, da feminilidade estilhaçada, de racismo. Enquanto prática política. Isto Não É Uma Mulata leva para o centro da discussão a invisibilidade, a visibilidade reduzida, os estereótipos, e o silenciamento. Num tom empoderado, agressivo até, de quem está pronta para o combate.

Antígona Recortada, do Grupo Bartolomeu de Depoimentos
Antígona Recortada, do Grupo Bartolomeu de Depoimentos. Foto: Leonardo Pastor /Divulgação

ANTÍGONA RECORTADA: CANTOS QUE CONTAM SOBRE POUSOS PÁSSAROS

Os clássicos são assim: têm fôlego para aceitar demandas contemporâneas, para afinar urgências políticas e crescer em poéticas. Ocorre com Antígona recortada: cantos que contam sobre pousos pássaros, montagem do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, que traz o mito grego de Antígona para os tempos atuais. A tragédia de Sófocles serve de base para mostrar meninas da periferia, que organizam uma ação contra o extermínio de seus irmãos pela ação do tráfico.

Já faz 13 anos que o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos surgiu com o intuito de traçar fluxos entre a cultura hip-hop com o teatro épico. O grupo é formado por Claudia Schapira, Eugênio Lima, Luaa Gabanini e Roberta Estrela D’Alva.

No texto original de Sófocles, Antígona defende o direito de enterrar o seu irmão Polinices com todas as honras fúnebres. Isso vai de encontro às ordens de Creonte (a figura do Estado), que decidiu que somente o outro filho de Édipo, Etéocles é merecedor de tais honras, pois foi morto em combate pela defesa Tebas, cuja sucessão do trono foi motivo da batalha entre os irmãos.

Antígona recortada pega do original grego a discussão do direito de as periferias sepultarem dignamente seus mortos exterminados pelo tráfico e com isso se insurge contra os chefes.

As atrizes-MCs Luaa Gabanini e Roberta Estrela D’Alva expressam com o corpo e a voz o trabalho de recolher os corpos dos meninos para promover o justo descanso. A palavra pronunciada ritmicamente (“spoken word”) pelas duas intérpretes é cercada, trancada e comentada nas batidas sintetizadas e misturadas pelo DJ Eugênio Lima, provocando uma potente experiência sensorial. E nessa mistura sonora entram diversos sons, falas – como as de Juscelino Kubitschek e Lula – e músicas de vários matizes, do MPB ao funk.

Com texto e direção de Claudia Schapira, a peça mira a violência exercida nas periferias e favelas, mas remete para as reivindicações de injustiças praticadas na ilegalidade ou ainda sob a capa da legalidade.

Artistas falam de um lugar que não existe mais
Artistas falam de um lugar que não existe mais. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Sanja Mitrović, junto à tela, e Vladimir Aleksić, deitado no chão. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Sanja Mitrović, junto à tela, e Vladimir Aleksić, deitado no chão. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

NÃO ME ENVERGONHO DO MEU PASSADO COMUNISTA

Sanja Mitrović (1978) e Vladimir Aleksić (1977) nasceram em Zrenjanin, na República Socialista Federativa da Iugoslávia, atual Sérvia. Ela trabalha atualmente entre Bruxelas e Amsterdã. Ele voltou à Sérvia para reconstruir sua vida. Amigos de infância, eles comungam da mesma memória de um país que não existe mais. A partir dessas lembranças pessoais, do passado socialista, do sentido de comunidade e da história do cinema iugoslavo, eles ergueram o espetáculo Não me envergonho do meu passado Comunista (I Am Not Ashamed of My Communist Past).

O sentimento de perda desses dois artistas é mostrado na peça numa mistura melancólica do auge ao colapso das empresas socialistas e o avanço do conservadorismo. Sanja e Vladimir traçam um diálogo entre cinema e teatro e utilizam uma série de estratégias – de comentários em áudio, sincronização simultânea para criar uma cena física e elucidar / embaralhar o que é fictício ao entrelaçar suas experiências de vida com as dos filmes, que formam um mosaico da história do território iugoslavo.

Partindo da autobiografia da dupla, a peça expõe as transformações geográficas e afetivas impostas pelas guerras, o pós-socialismo, o neoliberalismo. A devastação da cidade natal dos artistas, que era uma potência econômica, atingiu a vida pessoal de cada um deles. Com arquivos de filmes que refletem uma multiplicidade de posições políticas e culturais, eles projetam as contradições da sociedade em que viveram.

Os testemunhos reais estão repletos de humor e de crítica ao capitalismo desenfreado, dos perigos do nacionalismo, do racismo e do ódio, da iconografia da destruição do Leste Europeu, e as identidades europeias numa época de grandes migrações globais.

Ator Eduardo Okamoto. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Ator Eduardo Okamoto. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

OE

Um poema para a cena que sintetiza 28 imagens oscilantes entre a tradução do sonho e memória, vivência e imaginação, palavras e silêncios. O espetáculo Oe tem essa pretensão grandiosa, apesar de sua aparência simples. Traz um corpo altamente emotivo em gestos e expressões, mesmo as mais suaves. Esse solo com dramaturgia inspirada na obra do escritor japonês Kenzaburo Oe – vencedor do Nobel de Literatura de 1994, mais especificamente no livro Jovens de um novo tempo, despertai! trabalha com urgências e impossibilidades. Ao identificar a ameaça da morte, um homem escreve para o seu filho primogênito, que possui  deficiência intelectual, um livro contendo a definição de todas as coisas existentes no mundo.

O ator Eduardo Okamoto encara a vertigem terrível de um pai dividido entre amor e culpa em relação ao seu primogênito, um menino que sofre de uma deficiência intelectual congênita e se supõe eternamente dependente.

O diretor Marcio Aurelio utiliza poucos recursos: cenário reduzido a alguns objetos, uma movimentação desenhada e breves oscilações na voz. A dramaturgia de Cássio Pires ergue episódios que não seguem uma ordem lógica ou temporal.

O filho só desenvolveu a fala depois dos seis anos de idade, aprendendo com o som dos pássaros. O menino aprendeu a tocar piano e, hoje, é compositor respeitado no Japão e fora dele.

O espetáculo propõe um chamado para novas formas de cidadania, baseadas na responsabilidade intransferível de cada ser sobre suas ações: “[há uma] conexão existente entre a violência em escala mundial, representada por artefatos nucleares, e a violência existente no interior de um único ser humano”, escreve Kenzaburo Oe.

Para dar vida a tão profundo personagem, o ator Eduardo Okamoto realizou um estágio em 2014, no Kazuo Ohno Dance Studio, localizado no Japão, transportando sensações aos movimentos do corpo tirados do Butoh, dança japonesa criada por Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno.

Novos sujeitos de uma nova política

"Isso não é uma mulata" (Mônica Santana). Foto: Leonardo Pastor
“Isto não é uma mulata” (Mônica Santana). Foto: Leonardo Pastor

Crítica a partir dos espetáculos “Nós” (Grupo Galpão/MG), “Isto Não é Uma Mulata” (Mônica Santana/BA), “Antígona Recortada” (Núcleo Bartolomeu de Depoimentos/SP), “Mamba Negra” (Diego Alcântara/BA), “Trilogia Antropofágica Ato 1: Permanecer” e “Trilogia Antropofágica Ato 2: Resistir” (Perro Rabioso/Uruguai), “Villa + Discurso” (Teatro Playa/Chile), “I Am Not Ashamed of My Communist Past” (Sanja Mitrovic e Vladimir Aleksic/Sérvia) e “Amadores” (Cia. Hiato/SP), por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

FIAC Bahia 2016

 

I

Há quem diga e acredite que tempos de crise política e social, como esses que vivemos agora, são também oportunidades de amadurecimento e, quem sabe, transformação. Enquanto alguns sujeitos apostam suas fichas, energias e atenções à macropolítica que diariamente ocupa as ruas e capas de jornais, outros, por sua vez, encontram na micropolítica do cotidiano – ou, quem sabe, das artes – a possibilidade de interferir com os próprios corpos e discursos sobre a realidade e o imaginário social que permanentemente construímos juntos.

Segundo o cientista político indiano Ranabir Samaddar, com quem nos encontramos ao longo deste texto, é característico aos nossos tempos, sobretudo no que se costuma chamar de sul-global, a emergência de sujeitos políticos que abandonam a atuação por tortuosas vias institucionais e especializadas para agirem por conta própria, tornando-se, assim, representantes de si mesmos. Em vez de alienados escravos de uma política guiada por outros, tais sujeitos tornariam-se, assim, autores da própria política, trazendo, em suas ações, presenças e discursos, miragens, desejos, vias de escape e atos de resistência em direção a formas de existência que escapam aos discursos hegemônicos, e são afirmadas, a partir de então, como igualmente possíveis.   

Declaradamente interessada em participar desse processo, a curadoria do 9º Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia (FIAC), realizado em Salvador, entre os dias 25 e 31 de outubro de 2016, adotou o lema “meta a mão” como eixo político e ofereceu ao público um panorama bastante diverso de criações contemporâneas que, não por acaso, pressupõem presença, participação e engajamento como base das relações entre artistas e público, deixando quase sempre de lado as ideias de ilusão e representação que em muitos imaginários ainda se associam diretamente à experiência do espectador das artes cênicas.

Reunindo trabalhos relacionados aos campos do teatro, da dança e da performance, o 9º FIAC ultrapassa em muito a ideia de um festival como mera mostra de espetáculos, constituindo-se, ao mesmo tempo, como um amplo circuito de ações e práticas de convivência, colaboração e participação, seja dentro ou fora das salas de teatro. Trata-se, nesse sentido, de um festival cuja programação prevê também sucessivas e variadas situações para o encontro, tais quais ateliês coletivos, conversas entre artistas e espectadores e até mesmo dinâmicas relacionadas ao sistema político das artes cênicas, além de festas realizadas em diferentes espaços públicos e semipúblicos da capital baiana.

Seja antes, durante ou depois dos espetáculos, o que se percebe ao longo do festival são múltiplas situações que ressaltam a dimensão coletiva da existência humana e a permanente possibilidade de troca com o outro, abrindo variados caminhos à experimentação de novas políticas de encontros e relações entre os múltiplos sujeitos que integram o sistema da arte.

II

Pesquisador de temas relacionados à justiça e aos direitos humanos, Samaddar defende que esses novos sujeitos de uma nova política podem ser entendidos, em um primeiro nível, como cidadãos militantes. Podem ser entendidos, portanto, como aqueles que lutam em barricadas, engrossam manifestações, reúnem massas, eventualmente organizam partidos e lideram, a partir de diferentes estratégias, ataques aos poderes instituídos.

Pois parece, em certo sentido, ter sido esse o movimento realizado pelo Grupo Galpão (MG) durante a criação do espetáculo “Nós”, que abriu a programação do FIAC 2016. Geralmente lembrados pela adaptação de conhecidos nomes da clássica literatura dramática europeia, assim como por figurinos, imagens e acontecimentos de força espetacular, os integrantes do Grupo Galpão trazem, em “Nós”, reverberações de seu próprio cotidiano, repleto de pequenas tensões e profundas reflexões fundadas na política do dia a dia, as quais se articulam em uma dramaturgia original que leva assinatura de Eduardo Moreira e Márcio Abreu.

Despidas de personagens ou de um enredo que os leve a outro lugar que não o próprio acontecimento teatral, as figuras com quem nos encontramos em “Nós” nos convidam a epifanias existenciais, breves apocalipses e acidentes sob medida, revelando faíscas que, em tempos como os nossos, entre nós, não custam a surgir. Do alto de suas histórias de vida e de anos de convivência, os atores e atrizes que regem o espetáculo constituem-se como presenças que progressivamente tensionam a si mesmas e ao outro, e assim revelam ainda tensões em relação ao ambiente humano e social que recriamos – ou deixamos de recriar – a cada instante.

Propondo aos seus atores-personagens o desafio da coexistência em um contexto de nítidas diferenças, “Nós” nos acolhe pelo universo social que reconhecemos ter em comum com seus intérpretes, assim como nos provoca pelos contrastes e impasses que sucessivamente leva à cena. Entre excelências e precariedades, entre explosões e contenções, nos vemos ante a presenças que se tensionam a partir de repetições, reiterações de discurso e, sobretudo, da insistente e desafiadora presença diante do outro.

Se, numa primeira mirada, o espetáculo ressalta evidentes individualidades dentro do grupo, o que se constitui, ao longo do tempo, parece ser, de fato, uma espécie de presença coletiva. Percebemos, aos poucos, inclusive, que talvez também façamos parte deste coletivo, à medida em que as questões que lhes tocam, vez ou outra, igualmente parecem nos tocar. Transitando quase sempre entre os limites do indivíduo e as demandas do coletivo, convivemos, em “Nós“, com perguntas que se perdem no ar, respostas que se encontram aos poucos e artistas que buscam em cena, diante do público, afirmar a própria presença e a própria voz.

III

Enquanto “Nós” talvez se apresente como uma guinada do tradicional Grupo Galpão em direção à complexa realidade social brasileira e aos dilemas políticos que ao nosso povo se impõem, outras criações trazem recortes e perspectivas mais específicas em relação à nossa sociedade. Seguindo a conversa com Sammadar, nos aproximamos, então, de outra percepção possível sobre o sujeito político: aquele que está “sujeitado” a uma certa configuração política, mas, consciente da própria sujeição, busca submeter a política à sua própria visão, tornando-se, de algum modo, autor dessa política.

Em “Isto Não é Uma Mulata”, trabalho concebido e realizado pela artista Mônica Santana (BA), o que se tem é uma nítida inversão da perspectiva sob a qual geralmente se narra a história colonial e contemporânea do Brasil. A partir de recursos performáticos, dramáticos e narrativos, o espetáculo revê a participação da mulher negra na construção da história e, sobretudo, do imaginário social brasileiro. Recusando a condição de objeto, assim como os infindáveis estereótipos negativos que há muito contribuem para a manutenção de uma situação de subalternidade, a artista reivindica e afirma a mulher negra como sujeito legítimo de uma história a ser urgentemente recontada e reescrita.

Para tanto, ao longo do espetáculo, a atriz empresta seu corpo a diferentes imagens e presenças comumente associadas à mulher negra em nossa sociedade. Se, de início, nos deparamos com a invisibilidade de uma faxineira uniformizada, logo somos surpreendidos por algumas imagens embranquecidas desse mesmo corpo, fazendo referência a um fenômeno que, por muito tempo, tem condicionado a inserção de artistas negros em espaços de poder historicamente reservado aos brancos.

Ainda que uma camada crítica e extremamente irônica acompanhe boa parte do espetáculo, sobretudo no que se refere à apresentação desses estereótipos a serem negados e combatidos, há também momentos em que a atriz traz a própria voz à cena, rompendo, sem meias palavras, com um processo de silenciamento e objetificação iniciado séculos atrás.

Realizado pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (SP), o espetáculo “Antígona Recortada”, por sua vez, encontra seu esteio na linguagem do rap, que empresta à cena sua força política e contestadora. Tendo o mito grego de Antígona como eixo a ser apropriado e, de modo bastante contundente, aproximado à realidade brasileira, a montagem se volta às situações que remetem a diferentes periferias urbanas do país, nas quais não raro se constitui uma espécie de sub-humanidade privada de toda sorte de direitos e assistência estatal.

O espetáculo chama atenção, assim, ao fato de que nesses contextos, tal como na mítica história de Antígona, muitas vezes a irmãs, irmãos, pais, filhos e cônjuges, ainda é negado o direito de enterrar seus mortos. Em vez de se submeter a essa política, no entanto, a criação do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos a converte em uma espécie de concerto cênico no qual tais condições de vida são contestadas e, como é de costume no universo do rap, transfiguradas em poesia.    

Acrescentando um outro espectro à série de relações de exclusão e subalternidade que fundam a lógica colonial, tal qual o machismo e as relações centro-periferia, a montagem “Mamba Negra”, realizada por Diego Ancântara (BA), se volta a aspectos da cultura e da religiosidade africanas, igualmente relegadas a um lugar marginal em nossa sociedade.

Em cena, no entanto, o que se vê é a criação de um universo bastante próprio, no qual se combinam ancestralidade e apocalipse, lixo e luxo, passado e futuro. Chamando atenção às múltiplas ancestralidades que nos constituem, assim como à permanente possibilidade de reinvenção dessas ancestralidades, a montagem propõe ao público um significativo deslocamento de pontos de vista e campos de referência, fazendo-nos experimentar, por alguns instantes, uma realidade bastante distinta do quadro hegemônico que geralmente encontramos do lado de fora do teatro.

A partir de um uso não convencional do espaço cênico, no qual atores e público são dispostos em relação de grande proximidade, “Mamba negra” constitui-se como um espetáculo essencialmente performático no qual elementos da cultura africana e afro-brasileira ganham um tratamento contemporâneo, estabelecendo diálogos com discussões de gênero, entre outros temas e estéticas insurgentes.  Em vez de construir uma linha reta, pura e essencial em direção a um futuro cristalizado e pré-conhecido, a montagem parece defender uma lógica mais afeita a contaminações e “zigue-zagues”, apostando na imaginação radical da arte como esboço de um futuro emergente, ainda por ser construído.

IV

Mais adiante, por sua vez, Samaddar nos esclarece que o conceito de sujeito político não necessariamente se refere a militantes individuais, mas também a fenômenos coletivos, geralmente associado à ideia de multidão. Tal sujeito, em sua visão, poderia ser entendido tanto como um produto de regimes autoritários quanto de democracias, a partir de pontos-cegos que, em cada contexto, não tardam a se revelar. De um modo ou outro, tal processo de subjetivação certamente não costuma se dar no âmbito das instituições formais, como o governo, por exemplo, mas, sim, em meio a uma política que passa a se estender também ao povo, constituindo-o como sujeito capaz de alterar a própria história.

Criada a partir de uma interlocução do grupo Perro Rabioso (Uruguai) com o artista brasileiro Marcelo Evelin, a montagem “Trilogia Antropofágica Ato 1: Permanecer” nos apresenta uma obra sem atores, convocando o próprio público a ocupar uma plataforma vibratória coberta por carvão. Como se formássemos uma rede temporária de voluntários, somos convidados, no entanto, a nos alternar, um de cada vez, sobre a plataforma que recorrentemente se agita, não se sabe se devido a movimentos tectônicos ancestrais ou insurgências sociais contemporâneas. Como se habitássemos um deserto coberto por carvão, talvez o espaço residual de algum projeto de exploração mineral, somos convocados a permanecer de pé, afirmar a própria presença e o próprio desejo de permanência em meio a forças externas que continuamente nos expulsam para fora e nos impulsionam a bater em retirada.

Amparado em linguagens como a performance e a dança contemporânea, o espetáculo “Trilogia Antropofágica Ato 2: Resistir”, levado à cena pelo mesmo coletivo, se dá em meio a escombros de um cenário que simultaneamente remete a processos de construção e demolição. Juntos, nesse contexto um tanto insólito, os cinco performers atribuem aos próprios corpos uma vibração que, outra vez, não se sabe exatamente de onde vem – mas da qual,  ao mesmo tempo, não se pode negar a existência. Sozinhos neste cenário apocalíptico, os performers atuam como força coletiva, encontrando quase sempre no outro o amparo por vezes necessário aos terrenos instáveis que habitamos, dentro e fora do teatro. Nesse fluxo, os intérpretes despojam-se, mais adiante, das próprias roupas, assim como de outros traços e atitudes que remetem ao que costumamos entender como civilização.

Também se propõem a uma espécie de revisão civilizatória os artistas sérvios Sanja Mitrovic e Vladimir Aleksic (Sérvia), autores e atores do espetáculo “I Am Not Ashamed of My Communist Past”. Baseada em ações e diálogos estabelecidos entre os dois a partir de um extenso material videográfico referente ao período de consolidação da Iugoslávia, após a 2ª Guerra Mundial, a montagem igualmente recusa a lógica da representação, assumindo uma perspectiva assumidamente performática e autobiográfica. Despojados de personagens, os atores reveem as próprias trajetórias pessoais e profissionais, chamando atenção a infância e juventude vividas em meio ao regime comunista, assim como à condição “estrangeira” que os acompanha desde a fragmentação do país em que cresceram.

Ao longo do caminho, a conversa entre amigos por vezes se converte em debates históricos, políticos e econômicos que se estendem também a discussões sobre  autonomia e subalternização, levantando questões certamente pertinentes também a artistas, espectadores e cidadãos de outras origens. Quase duas décadas após o fim do comunismo no país onde cresceram, os artistas nos expõem à sua força e atratividade, recorrendo, para isso, às próprias experiências de vida. Diante de um contexto marcado pela consolidação de uma imagem fútil, corrompida e imoral sobre o Ocidente, “I Am Not Ashamed of My Communist Past” nos apresenta um retrato afetivo do famigerado mundo comunista, defendendo-o, em certo sentido, como legítima fonte de imaginação social.

O passado igualmente serve como ponto de partida ao díptico “Villa + Discurso”, realizado pelo Teatro Playa (Chile). Enquanto a primeira peça, “Villa”, emprega recursos dramáticos para se voltar às dificuldades de dar forma a memórias e espaços relacionados ao longo período ditatorial enfrentado pelo país, a segunda, “Discurso”, explora, a partir da reprodução de um pronunciamento oficial, questões relacionadas à trajetória da ex-presidenta chilena Michelle Bachelet, vítima direta e indireta da ditadura de Pinochet.

Assim como às atrizes, parece caber a cada um de nós, espectadores, decidir em que transformaremos experiências que nos tocam, em maior ou menor medida, como indivíduo e, também, como povo. Entre as alternativas levantadas ao longo do espetáculo, contudo, estão tanto uma alienação permeada por boas doses de cinismo quanto certa exacerbação dos traumas, ali associadas a sentimentos como obsessão e vingança. Se somos autores de nossas próprias histórias e agentes de nossa própria política, assumimos, então, a responsabilidade de selecionar, examinar e reconstruir, quase sempre sob novas perspectivas, as narrativas que nos explicam como indivíduos e também como povo.

V

Talvez tenha surgido dessa inquietação o movimento realizado pela Cia. Hiato (SP), convidada a encerrar o FIAC 2016 com o espetáculo “Amadores”. Após realizar, nos espetáculos “Ficção“ e “Duas Ficções”, exercícios de fabulação a partir das histórias de vida de seus integrantes, o grupo se abre, agora, a trajetórias de vida que expandem em muito, sobretudo do ponto de vista social, o leque de experiências, temáticas e universos até então abordados e compartilhados em seus trabalhos.

Incorporando ao elenco de “Amadores” corpos, presenças e memórias cujas origens remontam a diferentes gerações, classes sociais, ocupações, etnias e visões de mundo, o grupo constrói, em cena, um panorama que muito nos diz sobre a cidade de São Paulo e, em certa medida, sobre o próprio país em que vivemos. Ao reunir em cena 18 atores, dentre os quais apenas quatro atuam profissionalmente e fazem parte da companhia,  a montagem convoca os espectadores a enxergar, no palco, fragmentos de uma realidade social muito diversa e, por outro lado, muito parecida com o que experimentamos fora do teatro.   

Reunidos, em cena, pelo interesse em participar de uma montagem teatral profissional, assim como por trajetórias de vida que os colocam na condição de “artistas amadores”, os atores não profissionais que participam do espetáculo parecem se constituir como sujeitos políticos à medida em que desestabilizam hierarquias relacionadas tanto ao universo das artes cênicas quando à própria sociedade, como a conhecemos. Estruturado a partir de performances artísticas individuais e coletivas, combinadas a depoimentos que remetem a contrastantes experiências e momentos de vida, “Amadores” conduz o público – e também seus intérpretes – a entrar em contato com um amplo e complexo leque de emoções e vivências, ali trazidas, em matéria e epistemologia, pelos próprios sujeitos que as experimentaram.

São certamente muitos e muito variados, como se pode ver, os caminhos para o surgimento e a ação de novos sujeitos políticos, seja dentro ou fora do campo das artes. Na visão de nosso companheiro Samaddar, agir politicamente seria, essencialmente, agir em nome da liberdade, enfrentando, às vezes, normas e códigos legais, assim como regras políticas que vigoram em diferentes dimensões do ser, do saber e do poder. Seja por meio de evidentes rebeliões ou ainda de subversões mais ou menos discretas, o pesquisador encontra no desafio a soberanias exclusivistas e a relações de subalternidade alguns dos caminhos próprios à conformação de novos sujeitos políticos e de novas políticas, sejam elas referentes ao funcionamento da sociedade, à criação de uma obra artística ou, ainda, à concepção de um festival de teatro.   


Referência bibliográfica

SAMADDAR, Ranabir. Emergence of the political subject (New Delhi: Sage, 2009).

Na pele do outro

Foto: Janosh Abel

Crítica a partir do espetáculo Black Off, de Ntando Cele, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MITsp 2017

Há muitas hipóteses que envolvem as origens do racismo no Brasil e no mundo. Geralmente associadas, em nossa cultura, à experiência da escravidão durante a colonização do país, tais origens podem remeter, no entanto, não a quinhentos anos, mas a algo entre seis e doze mil anos atrás. Foi nesse intervalo, segundo algumas hipóteses, que se deu o chamado processo de diferenciação racial: a partir de uma humanidade até então predominantemente negra, que ocupava pelo menos a África, a Europa, o Oriente Médio e a Ásia Meridional, teriam surgido os primeiros povos brancos e amarelos. Pouco mais tarde, possivelmente devido a disputas territoriais, surgiriam as primeiras narrativas que pressupunham algum tipo de superioridade genética de um fenótipo sobre outro, desembocando em um pensamento que racializou a humanidade e tem servido, em diferentes contextos e momentos históricos, como justificativa tácita para a manutenção de opressoras hierarquias raciais.

O combate institucional ao racismo, por outro lado, tem origens mais recentes e conhecidas. O Brasil, por exemplo, é apontado como o quarto país do mundo a enfrentá-lo a partir de políticas de Estado, intensificadas somente a parte de 2003, com o ensino da história africana nas escolas. Antes de nós, somente os Estados Unidos, durante as décadas de 1960 e 1970, Cuba, a partir de 1959, e África do Sul, a partir de 1992, haviam lançado reformas referentes à própria ordem sociorracial.

Levado à cena pela artista sul-africana Ntando Cele, o espetáculo Black Off talvez nos ajude a enxergar o pensamento racializador como construção presente em cada um de nós, assim como a problematizar atitudes cotidianas que nos impedem de superar esse pensamento. Inicialmente trajada e maquiada como a loiríssima Bianca White, Ntando usa e abusa, com propriedade, do seu lugar de fala, expondo ao público uma suposta ingenuidade branca cuja violência contra o outro ganha, em cena, ares de ironia, mas somente devido à pele negra que temporariamente se esconde por trás de muita maquiagem. A partir dessa suposta ingenuidade, Bianca reproduz sucessivos clichês relacionados a preconceitos raciais dirigidos, ali, tanto a negros quanto a brancos. Intencionalmente ou não, suas palavras muitas vezes provocam o riso da plateia, revelando algo da trivialização e banalização do racismo entre muitos de nós.

Por meio desse procedimento, no entanto, o que se alcança parece ser uma percepção nítida sobre o conteúdo extremamente frágil que, desde tempos imemoriais, têm sustentado o pensamento racista. À medida que tais clichês se acumulam cena afora, estendendo-se em muitos momentos às relações estabelecidas entre a artista e os músicos, assim como entre a artista e os integrantes do público, parece esvaziar-se por completo qualquer sentido associado ao pensamento racista, afirmando-o como uma construção essencialmente histórica que em muito limita nossas visões e relações com o outro, assim como, de parte a parte, nossa própria experiência social. “O que significa ser um artista negro?”, questiona, sem resposta.

Como traços evidentemente racistas de nossas relações e experiências sociais, Ntando chama atenção, por exemplo, ao discurso e à prática da filantropia, cuja presença é maciça em território brasileiro, mas certamente ainda maior quando se pensa no continente africano. Muitas vezes midiatizada, quase sempre revestida de valores como benevolência e solidariedade, a prática filantrópica, historicamente branca, é revelada pela artista a partir de seu caráter eminentemente conservador, uma vez que reforça relações de dependência, de subalternização e até mesmo de cooptação do outro e de sua visão de mundo.

A esse respeito, também os incensados programas de ajuda a crianças e famílias africanas são problematizados em cena, convertendo-se num possível complemento à xenofobia que continuamente ganha espaço em nosso dias. “Os negros devem ficar na África”, escutamos, à certa altura, a partir de um raciocínio que culpabiliza os povos historicamente oprimidos por reivindicarem, agora, a partir de diferentes estratégias e contextos, algum tipo de justiça e igualdade social.

Mais adiante, já despojada da alva personagem que nos recebe, a artista oferece ao público outras possíveis imagens de si mesma. Deixando de lado a aparente delicadeza de Bianca White e seu estilo stand-up comedy, Ntando atribui à própria presença outras qualidades, desempenhando uma série de ações performativas de grande simplicidade e potência, provocando, sem pressa, nos espectadores, reflexões, impressões, afetos e, quem sabe, atitudes em relação à humanidade que nos une e que precisa resistir e se impor a tantos séculos, quem sabe milênios, regidos e condicionados por pensamentos racistas.

Enquanto, com ares de princesa, Bianca White profere impropérios nas entrelinhas de sua aparente delicadeza e doçura, a voz de Ntando Cele passeia, no decorrer do espetáculo, por diferentes atmosferas. Entre tons que remetem a própria ancestralidade e ações silenciosas que muito nos dizem, a artista arrisca-se ainda em um pequeno concerto punk, quem sabe afrofuturista, no qual a aparente agressividade das palavras talvez nada tenha a ver com qualquer pulso de violência, mas, sim, com a urgência de fazer-se ouvir e reverberar sobre a pele e, principalmente, sobre a consciência histórica e social do outro.

Quilombos abertos

Foto: Nereu Jr.

Crítica a partir do espetáculo A Missão: 12 lições de descolonização em legítima defesa, do coletivo Legítima Defesa, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/ DocumentaCena)

MITsp 2017

Além de terem servido como refúgios e pontos de resistência contra a escravidão que, por mais de três séculos, com amparo da lei, vigorou em território brasileiro, os muitos quilombos criados ao longo de toda nossa história colonial tinham e seguem tendo como importantes funções resgatar a cosmovisão africana, assim como os laços familiares frequentemente perdidos durante o processo de escravização da população negra. Pois parece ser a um quilombo reinventado e extremamente contemporâneo que vemos pela fresta das cortinas do teatro, enquanto nos acomodamos para assistir ao espetáculo A Missão em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa, realizado pelo grupo Legítima Defesa.

Pela fresta da cortina, assistimos a um corpo coletivo que continuamente se move, sem sinais de exaustão, rumo a uma missão que, veremos mais adiante, também se constitui como causa essencialmente coletiva. Respiração consciente e pulso constante atestam a vida e a vitalidade dos corpos negros que vemos ali, os quais transitam com segurança e liberdade entre diferentes registros de atuação e presença, compondo, camada por camada, um espetáculo com ares de sarau que se propõe a visitar crítica e propositivamente a peça teatral A Missão, escrita em 1979 pelo dramaturgo alemão Heiner Müller.

Trazendo como contexto histórico a experiência colonial jamaicana, tanto a peça de Müller quanto a montagem do grupo Legítima Defesa rapidamente nos sugerem paralelos com a história brasileira, ao tratar de uma negritude que se constitui em condição de subalternidade, longe das fronteiras do continente africano e sob a tutela legal de impérios europeus. Seja no Brasil ou na Jamaica, ocupamos todos lugares de subalternidade dentro de um sistema-mundo colonial fundado no século XVI, justamente a partir da invasão da América pelos impérios da Península Ibérica.

É a partir de uma composição entre múltiplas linguagens artísticas, no entanto, que temos acesso à obra de Müller e às perspectivas do coletivo sobre essa mesma narrativa, ali entreposta a canções, coreografias, relatos documentais dos atores e citações de importantes e diversificados nomes da resistência negra ante o contexto colonial, tais quais o político guineense Amílcar Cabral, a intelectual e ativista estadunidense Angela Davis e a escritora brasileira Carolina Maria de Jesus.

Diante de um jogo cênico de regras bem marcadas, no qual diferentes atores e atrizes se alternam na interpretação dos três personagens que conduzem a trama, vemos reforçada a dimensão coletiva das vozes que testemunhamos em cena. No melhor estilo microfone aberto, diferentes vozes ocupam o palco. Se o rap muitas vezes dá forma à narrativa e às vozes que a integram, também há espaço para outras expressividades musicais e visuais da cultura negra, deixando evidente que a condição de subalternidade e permanente necessidade de resistência muitas vezes, ainda que contraditoriamente, serviu – e ainda serve – como estímulo ao desenvolvimento de culturas híbridas, complexas e, pelos mais diversos caminhos, conectadas à própria ancestralidade e à noção de coletividade.

Enquanto acompanhamos os desdobramentos da possível revolução jamaicana, somos convidados também a rever outras revoluções. Ao apresentar-nos o “Teatro da Revolução Branca”, a montagem chama atenção aos limites da Revolução Francesa e de outras tantas que, sobretudo ao longo da história moderna, jamais alteraram substancialmente a ordem colonial que organiza boa parte do mundo em que vivemos. Conforme atesta a literatura decolonial e a própria realidade social que experimentamos no Brasil, não existe uma humanidade moderna sem uma sub-humanidade moderna.

Aos poucos percebemos, no entanto, que, ao contrário do que se poderia pensar, uma efetiva revolução não pode se dar pelo consumo, pela ascensão social ou mera inserção em um sistema colonial pré-definido, mas, certamente, na reinvenção desse sistema. Percebemos que a revolução pode se dar pelo acesso ao conhecimento, à ancestralidade, à capacidade crítica e à construção de novas narrativas. Pode se dar, quem sabe, pela capacidade de se “aquilombar”, de se organizar como força coletiva, criativa e propositiva de resistência e re-existência. Parece ser a partir do quilombo e de sua racionalidade, então, que talvez possamos alcançar, efetivamente, os prometidos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

Enquanto o patrimonialismo exacerbado da sociedade brasileira parece impedir que tais valores se concretizem para além das fronteiras dos quilombos, a lógica interna desses espaços, hoje desdobrados em outros, parece ser diferente. Apesar de a ancestralidade africana predominar na maioria dos quilombos, alguns estudos genéticos têm revelado haver ali também elementos de origem europeia e indígena, mostrando a histórica capacidade de integração e solidariedade do povo negro.

Como sul-americanos, legítimos integrantes do sul-global, talvez devêssemos todos nos aquilombar. Pois parece haver, nesse e em outros quilombos, espaço para negros que são negros e negros que não necessariamente o são. E talvez o que nos una seja o desejo de efetiva mudança. Por isso levemos essa carta aonde formos, e passemos a palavra adiante.

Voar e saber cair

Para-que-o-céu-não-caia

Texto sobre o espetáculo Para Que o Céu Não Caia, da Lia Rodrigues Companhia de Dança, escrito por Renan Ji (Questão de Crítica / DocumentaCena )

*OBSERVAÇÃO DO AUTOR: Este texto contém passagens que antecipam certos procedimentos fundamentais do espetáculo. Recomenda-se lê-lo, se possível, depois da apresentação.

MITsp 2017

O espaço é uma sala negra, câmara escura. O céu, portanto, descortina horizontes indefinidos, fechados, foscos. O título do trabalho de Lia Rodrigues e companhia nos adverte: o céu arrisca desabar sobre nossas cabeças. Alguém talvez dissesse: protejamo-nos. No entanto, essa não é a direção de Para Que o Céu Não Caia. O movimento do espetáculo é de expansão, de ocupação do espaço, de infiltração e porosidade entre dançarinos e plateia. A energia circula entre esses agentes para formar um bloco convivial que volte a inflar a cúpula do céu sufocante, enfrentando-a.

Em outras palavras, um pouco menos metafóricas: laços são estabelecidos entre nós e os bailarinos, numa relação energética que resiste ao enclausuramento. Para tanto, é necessário quebrar as barreiras civilizacionais entre os respectivos primitivismos (nosso e deles): os performers nos encaram e devolvem nosso olhar de estranhamento, demovendo nossa postura poluída, tóxica e ambientalmente tosca de bípedes racionalizados. Fazem-no contemplando a nós com o aroma telúrico do café, revestidos da farinha/poeira dos tempos. Eles nos confrontam e revelam nossa inadaptação ao primordial.

Em seguida, gritos e lamentos, balbucios chorosos, apontam para o caos no seio das coisas. Há algo que precisa ser esconjurado, posto para fora, expandido. Com os dançarinos abrindo um grande círculo entre os participantes, o espetáculo fornece uma única diretriz clara e verbal (em meio a uma dramaturgia que busca o contato entre corpos sempre de maneira muito sutil): devemos nos sentar. Creio que estar em contato com o chão, nesse momento, é indispensável: sentimos mais forte o cheiro do café; acompanhamos os rasantes dos bailarinos sobre nossas cabeças; sentimos na base da coluna o ritmo das passadas fortes no solo.

É notável como a coreografia ritual é menos um código de gestos e mais uma pulsação coletiva. A batida dos pés no chão dita o ritmo das sequências de movimento e une corpos numa mesma vibração hipnótica. Mas nem por isso o espetáculo se torna menos dança devido à forte influência ritual. Na ondulação do corpo, há um misto insondável de transe, sensualidade e técnica. Os bailarinos de Lia Rodrigues batem firmemente os pés no chão, jogam com os quadris e geram espaço com braçadas rápidas e precisas. O dionisismo dos gritos, contorções e arcos histéricos são entremeados por saltos e quedas calculados, rodopios finamente delineados de torso e braços, mãos e gestos conduzidos com leveza efêmera, renovando o vocabulário da dança contemporânea.

Além disso, é interessante perceber como a orientação desses movimentos revela menos uma ascensão e mais uma entrega ao solo. A expansão a que me referi anteriormente diz respeito mais a uma horizontalidade, a um preenchimento simbólico e energético da base física das coisas: paradoxalmente, ao céu que periga cair responde-se com pisadas fortes e mãos no chão, com o fortalecimento do corpo junto à terra, com saltos aéreos que sempre terminam no reencontro com a materialidade. Há movimentos súbitos que parecem clamar por uma verticalização espiritual, na direção dos céus. Porém, voar antes de tudo significa saber cair, reencontrar e fortalecer as raízes terrenas, que suportarão a abóboda do céu.

Suportar o céu, assim, é menos um esforço de ascensão (tão típico da metafísica ocidental) e mais um pouso na superfície, revelando a sabedoria da alma selvagem que todos esquecemos: curvar-se em direção à terra, fundá-la e torná-la densa para impedir a queda do cosmo. De forma análoga, é necessário então sair e retornar ao corpo, projetá-lo para os ares, mas trabalhá-lo na musculatura. É disso que se trata a última etapa do rito-dança: a cor amarela da cúrcuma é semeada no assoalho, substituindo o obscuro do café. Pequenos pontos de sol são semeados na terra e nos corpos, refletindo e alimentando a luminosidade celeste. É o solo rico que garante um céu aberto; o corpo aberto e deitado – enraizado – ao chão é aquele que mais se volta para o céu e se dedica a ele.

Por fim, caberia dizer mais uma coisa sobre a horizontalidade do universo de Para Que o Céu Não Caia. A expansão horizontal é um dado que se revela uma necessidade social e afetiva, pertinente à maneira como nos relacionamos com o outro, com o mundo e com o espaço. Verticalizados, olhamos com inveja para os mais altos e com desdém para os mais baixos. Horizontalizados, podemos desfazer essas dicotomias e nos deslocarmos em fricção e solidariedade com o outro. O espetáculo da Lia Rodrigues Companhia de Dança parece nos fazer um convite: olhe nos olhos, perceba, sente-se e se suje. Cheire e espirre por causa dos pós – o espirro não deixa de ser uma forma de esconjuro do corpo. Deitados e estendidos, resistiremos. É necessário voltar ao solo, ao enraizamento, à prática concreta, para salvarmos um céu carregado de maus agouros.

Entre o ceticismo e a vertigem

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Crítica do espetáculo Revolução em Pixels, de Rabih Mroué, por Renan Ji (Questão de Crítica/ Documentacena)

MITsp 2017
Imagens de um mundo em guerra povoam os recônditos da internet. O real está ali, inquestionável, não tanto por ser algo factual, mas porque corpos são alvejados e comunidades dizimadas. Acredito que a morte não nos permite a leviandade do ceticismo: o elo de humanidade, a sensibilidade diante de uma cena de morte, pressupõe que a encaremos como verdade, mesmo que somente a princípio, mesmo que por um breve momento. Passado o choque, contudo, nada impede que surja a questão de como se chega à representação da morte. De fato, vídeos e fotos possibilitam a construção de narrativas diversas sobre o real. Mortes podem ser justificadas, repudiadas e simuladas, distorcidas pela manipulação da imagem e pela condução da narrativa. Rabih Mroué nos mostra como as montagens do governo sírio, as cenas de violência crua e ritual dos grupos terroristas islâmicos e os vídeos amadores de rebeldes civis possuem certos códigos de representação. Se cada qual revela uma maneira diferente de narrar o conflito, estamos inevitavelmente em meio a uma disputa de narrativas. E se estas são veiculadas na internet, nos recônditos da dark web, da deep web ou simplesmente do Google, o conflito é ainda maior: imagens de guerra são disseminadas na zona de guerrilha em que a internet se tornou, disputando pela primazia de dizer a verdade que nos choca.

Sobre a guerra na Síria, Rabih Mroué deseja saber o que realmente aconteceu ali. Não importa que o ceticismo nos alerte da impossibilidade de recuperar uma reprodução do real. A intenção e a forma de olhar é o que conta. Mroué parece entender que as narrativas disponíveis nos afetam de maneiras diferenciadas, e que, portanto, não são todas equivalentes. A mise-en-scène dos jornais institucionais pró-Bashar al-Assad postulam uma estabilidade política que se traduz em enquadramentos nítidos, filmagens panorâmicas e ângulos calculados; já os vídeos de rebeldes civis partem da precariedade pixelada do equipamento amador, arma pessoal de captura do real em oposição ao arsenal técnico das grandes narrativas. Entre essas duas visões de mundo, Mroué adere decididamente à perspectiva do rebelde, submetendo-se ao fascínio pelos rastros digitais que ele imortaliza depois de um upload.

Ainda que podendo ser pensada esteticamente, em comparação, por exemplo, ao movimento Dogma 95, é a partir da técnica simplória da representação de um rebelde sírio que Mroué acessa um outro lado do conflito civil. O tripé mecânico que sustenta as grandes narrativas cinematográficas dos meios de comunicação encobre uma verdade que somente aparece no olhar daquele que sustenta o seu equipamento com duas pernas. Há algo de inequivocamente verdadeiro, orgânico, na imagem captada por um celular suportado por pernas hesitantes, braços trêmulos, junto ao olho injetado que contempla o olho do algoz atirador. Double shooting: gravar aquele que nos “grava” com o cano da arma. E gravar de forma a que o olhar do espectador se sobreponha àquele da câmera, colocando-se na mira do disparo.

A possibilidade de double shooting redobra nossa consternação diante da imagem da morte, porque, de forma inaudita, aproxima o espectador da fenda indizível que se instaura entre o viver e o morrer, a partir da experiência do cinegrafista. De forma paradoxal, essa aproximação se torna tão aterradora por se estabelecer em via negativa, por meio de uma ausência: não há possibilidade de captar esse pequeno e fatal momento entre estar vivo e morto. O que resta são fragmentos sonoros de agonia; a tela preta após a queda do pequeno equipamento de vídeo no instante em que o corpo é alvejado. Prova dessa impossibilidade talvez seja a vertigem nauseante diante da possibilidade de encarar o rosto do algoz, quando Rabih Mroué, buscando a identidade do atirador de um dos vídeos, aumenta em zoom o frame que o enquadra. Mroué aproxima a imagem até a desfiguração; porém, a mancha matizada desperta a profunda inquietude com a possibilidade de olhar aquele que nos mira com o fuzil. Nada mais que a vertigem diante do possível rosto da morte.

A revolução do título da palestra-performance de Rabih Mroué talvez esteja precisamente no atravessamento afetivo que os vídeos de double shooting dos rebeldes sírios proporcionam ao espectador. Esses vídeos revolucionariam porque, de acordo com o artista, gritam em meio ao tiroteio propagado por um Estado antes bélico que social. A partir desses pequenos filmes, há a esperança de que seus autores tenham sobrevivido, pois é inegável que eles foram jogados na rede por alguém. Se não, ao menos, a cada repetição deles, pode-se reencenar constantemente seus atos de resistência fatal. Reviver e morrer, resistir. Cabe lembrar que afirmei anteriormente que essas imagens eram dotadas de “verdade orgânica”. Mas o certo é que nossa atenção e sensibilidade se voltam a esses vídeos por causa da narrativa e dos enquadramentos possibilitados pela técnica e pelo olhar proposto em Revolução em Pixels. É o olhar de Rabih Mroué que nos ajuda a refigurar tais rastros digitais e recuperá-los de sua obscuridade. A importância do artista nesse processo, portanto, é cabal. Nesse sentido, a revolução em pixels passa pelo crivo da arte. A arte ganha guerras? Com a arte, não há somente um rever cenas; nos vídeos de que fala Rabih Mroué, revivemos e morremos. O artista nos ensina novamente a viver e a morrer. E a não esquecer. A revolução passa por aí.

Em busca de novos monumentos

Foto: Jeva Griskjane
Foto: Jeva Griskjane

Crítica a partir do espetáculo Tão Pouco Tempo, de Rabih Mroué, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MitSP 2017

Logo de início, parece importante ressaltar, somos informados através de legendas de que estaremos diante de personagens e situações ficcionais. Com direção de Rabih Mroué e atuação de Lina Majdalanie, o espetáculo com ares de palestra-performance Tão Pouco Tempo se volta a capítulos recentes da historiografia libanesa para, através de um personagem fictício, problematizar a criação de mártires e heróis, questionando a personalização que, seja no Oriente Médio, na América ou em outros cantos do mundo, costuma caracterizar as narrativas que construímos para compreender e explicar as histórias da qual fazemos parte.

A partir de uma encenação relativamente simples e decididamente não espetacularizada, dentro da qual recursos cênicos como geração de imagens, operação de som e até mesmo contrarregragem estão sempre visíveis e são operados pela própria performer, acessamos um ambiente que aos poucos se configura como uma espécie de laboratório de revelação fotográfica. Paralelamente a narrativa que remete a trajetória de Deeb Al-Asmar, nosso mártir fictício, o que se constitui neste laboratório, no entanto, é um processo inverso ao que conhecemos: ao serem mergulhadas em um tanque de água, os retratos manipulados pela artista, que trazem imagens de si mesma em diferentes momentos da vida, progressivamente se apagam, gerando certa atmosfera de incerteza em relação aos documentos e memórias que constituem nossas histórias pessoais e nacionais.

Iniciada tom distanciado, sereno e por vezes irônico, a narrativa que nos apresenta ao personagem central dessa ficção ganha, pouco a pouco, ares de realismo fantástico. Por meio de um radical exercício artístico de imaginação social, a dramaturgia concentra, na curiosa trajetória de Deeb, seguidas reviravoltas que vez ou outra remetem a histórias de mártires que conhecemos, ou ainda a alguma das versões que desdobram cada uma dessas histórias. Revisitamos, ao longo dessa narrativa, imagens conhecidas como a multidão que vai ao funeral, a grande imprensa e sua exagerada cobertura, a família que se mobiliza para organizar um dossiê sobre o morto e a praça que ganha uma estátua com sua fisionomia. “Um mártir que seja capaz de unir as pessoas”, escutamos, a certa altura.

Instalada no centro da cidade, entretanto, a estátua que homenageia o mártir pouco a pouco revela-se, também, como uma narrativa ficcional, a exemplo de tantas outras que não raro trazem imagens e discursos muito mais heróicos – e menos complexos – do que os episódios e personagens a que se referem. Somos convidados, então, a imaginar uma paisagem bastante familiar: a praça cívica esvaziada de seu potencial político, refém de uma narrativa hegemônica, instrumento de estabilização de uma dinâmica histórica e social em permanente transformação. E somos convidados também, quem sabe, a decifrar os significados de nossas estátuas, dos corpos mortos que mantemos vivos entre nós.

Mais adiante, quando o suposto martírio de Deeb, assim como a própria estátua, se revelam como farsa, somos provocados a vislumbrar outras imagens, dessa vez menos realistas e mais relacionadas ao caráter fantástico da narrativa. Ouvimos, por exemplo, sobre o mártir diante da estátua, diante do próprio túmulo e, finalmente, convertido, ainda em vida, em estátua de si mesmo. Fenômeno que, ali, acomete a seres humanos, mas que possa também, talvez, atingir a nações inteiras, quando, muitas vezes, em cenários de guerra, se mostrariam mais interessadas em preservar estátuas, monumentos e santuários de outros tempos do que em defender aqueles que estão vivos e lutando. “Somos todos projetos de mártires”, proclama a performer, continuamente revendo, ao longo da narrativa, os possíveis significados do termo.

Vencedores, perdedores, prisioneiros e presos libertados são personagens dessa história, cuja distância geográfica e geopolítica não necessariamente nos furta de traçar paralelos com nossa experiência sul-americana. O que se estabelece, em cena, afinal, parece ser um debate sobre algumas vidas que supostamente valem mais, e outras que, segundo a mesma lógica, talvez valham menos – e isso acontece em toda parte. Ao problematizar a personalização da história, a montagem de Rabih Mroué e Lina Majdalanie toca, ainda que de relance, nas recentes revoluções árabes, celebradas, em cena, como momento histórico em que o povo, não somente nos países árabes, finalmente se mobilizou “por si mesmo” e ocupou, quem sabe, aquela e também outras praças antigamente habitadas por estátuas de herói mortos.

Manifesto pela crítica

Reunidos em Curitiba, dos dias 8 a 13 de novembro de 2016, para o Idiomas – Fórum ibero-americano de crítica de teatro e para a Mostra DocumentaCena, nós, críticos, artistas e pesquisadores de teatro atuantes na Argentina, no Uruguai, em Portugal, na Espanha e no Brasil, com representantes das cidades de Belo Horizonte, Florianópolis, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Porto Alegre, decidimos pôr no papel, em poucas palavras, reflexões sobre a importância deste encontro e das ideias que nele circularam.

Antes de outra coisa, um encontro sobre crítica de teatro é um encontro sobre crítica. Sem deixar de lado ou em segundo plano nossas diferenças, nos reunimos a partir do interesse pela crítica e pelo olhar crítico que atravessa nossas criações artísticas, produções acadêmicas, escritos de artista, textos jornalísticos e, por que não dizer, também nossa existência fora do campo da arte e da escrita. Nos reunimos para alargar as fronteiras da ideia de crítica, redimensionando-a para muito além da erudição, do discurso de especialista, do lugar de autoridade, do capital cultural de classe e da esfera do acesso restrito.

Tendo a consciência de que todos nós, seja no norte ou no sul global, somos igualmente capazes de produzir pensamento, conhecimento e crítica, escrevemos para afirmar que o espírito crítico é inerente ao ser social, que jamais pode perder sua dimensão e seu valor, considerando, sobretudo, um contexto social de evidente desvalorização do pensamento crítico e negação da pluralidade de perspectivas que nos caracteriza.

Escrevemos para afirmar que esse espírito, presente em cada um de nós, não seja diminuído diante da ideia de um único crítico ou do crítico juiz, que policia, que impõe autoridade e autoritarismo e se consolida a partir de negociações entre nomes, instituições e poderes. Para afirmar que o espírito crítico não seja confundido com esta outra ideia de crítico. Para afirmar que somos, todos nós, sujeitos políticos, estéticos, éticos, artísticos e essencialmente críticos. A não ser que nos recusemos a tomar parte ativa da vida social, rendidos às formas de controle de uma sociedade normativa – sabendo que a abstenção nunca nos fará inocentes.

Escrevemos para fazer um elogio ao pensamento que se coloca entre o olhar de cada um e um mundo que clama por outras epistemologias, para fazer um elogio ao espírito crítico, e por isso, à atitude crítica, à potência crítica, criativa e transformadora presente em todos nós. Escrevemos para dizer que o espírito crítico é necessário, pois a reprodução de um discurso acrítico é o que tem nos levado à mera manutenção de um status quo evidentemente desconfortável e desequilibrado. Escrevemos para afirmar que a defesa de um anticriticismo, ou então da desimportância da crítica, não pode se dar fora de um paradoxo.

Escrevemos em defesa e enaltecimento do óbvio: do sujeito crítico que todos nós somos.

Ou que podemos ser.

Antonio Duran, Bernardo Borkenztain, Daniel Guerra, Daniel Toledo, Daniele Avila Small, Edelcio Mostaço, Fábio Prikladnicki, Francisco Mallmann, Greice Barros, Ivana Moura, Jorge Dubatti, Jorge Louraço, Luciana Romagnolli, Marco Vasques, Marcos Alexandre, Marcia Moraes, María Esther Burgueño, Mariana Barcelos, Michele Rolim, Óscar Cornago, Patrick Pessoa, Paula de Renor, Pollyana Diniz, Renan Ji, Rui Pina Coelho, Soraya Belusi, Sueli Araujo, Welington Andrade, participantes do Idiomas – Fórum Ibero-Americano de Crítica de Teatro.