Arquivo da categoria: Cena Contemporânea

Tão comum quanto extraordinária

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Jacy, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Cena Contemporânea 2015

Muito se fala sobre o crescente envelhecimento da população brasileira e seus desdobramentos sociais, mas pouco se escuta sobre as experiências de vida daqueles que, em meio a tempos que celebram a eterna juventude, já ultrapassaram a marca dos 60 anos. Interessados em tratar da velhice como tema de uma criação artística, os integrantes do Grupo Teatro Carmin, de Natal (RN), encontraram na trajetória de Jacy, uma mulher comum, nascida em 1920 e falecida em 2010, um caminho bastante frutífero para revisitar, de modo ao mesmo tempo crítico, poético e bem-humorado, quase um século de história do país e de seu povo.

Primeira aproximação do grupo em relação ao universo do teatro documentário, o espetáculo Jacy foi criado após consistente pesquisa em torno da personagem e de seus contextos de vida. “Descoberta” a partir de uma frasqueira abandonada na rua, ela é trazida à cena pelos atores Quitéria Kelly e Henrique Fontes, que, diante do público, reconstroem a trajetória de Jacy alternando-se com segurança e leveza entre registros dramáticos, narrativos e performáticos de atuação.

Ao longo do espetáculo, que conta ainda com irreverentes intervenções em vídeo de Pedro Fiúza, a personagem se revela tão interessante por suas singularidades quanto por suas características mais ordinárias, as quais remetem a experiências e percepções certamente comuns a uma geração que vivenciou importantes capítulos da história nacional. Cenário de boa parte dessa trajetória, a cidade de Natal também é apresentada ao público a partir de suas especificidades e suas características facilmente reconhecíveis em outras capitais brasileiras.

Pelos singulares olhos de Jacy, assistimos, por exemplo, à participação do Brasil na 2a Guerra Mundial. Distante da grande narrativa, entretanto, ela enxerga a guerra como um acontecimento capaz de movimentar a pacata Natal dos anos 1940, convertida em movimentada base aérea e naval do exército estadunidense. “Estou apaixonada pela guerra, me deu vontade de viver”, suspira a personagem, em uma das cartas lidas em cena.

Em passagens que reiteram o caráter político do espetáculo e a persistência histórica de questões ainda a serem enfrentadas pela sociedade brasileira, compartilhamos com Jacy alguns questionamentos sobre a instauração da Ditadura no país (“Será que com fardas e tanques se protege a liberdade?”), assim como somos lembrados, dessa vez a partir de um curioso exercício genealógico apresentado pelos atores, sobre as recorrentes ações entre amigos – e familiares – desde sempre praticadas no cenário político nacional.

É também com os olhos dela, que agora já começa a experimentar a velhice, que nos assustamos com a verticalização desenfreada das cidades brasileiras, cada vez mais propícias à solidão que progressivamente se estende da velhice a outras faixas etárias. É só depois de acompanharmos o “filme” de sua vida que temos, então, um comovente retrato da velhice de Jacy e podemos reconhecer, nesse retrato, as perdas que de modo implacável marcam a trajetória de qualquer pessoa que alcance tamanha longevidade.

E ainda que, no fim das contas, o interesse inicial pelo tema da velhice se veja imerso em outras discussões, é justamente a partir do trânsito entre a trajetória particular da nonagenária Jacy e uma história social compartilhada por todos nós que o espetáculo ganha complexidade, amplia seus sentidos e alcança um notável equilíbrio entre as dimensões afetivas e políticas da saga tão comum quanto extraordinária que lhe serve como eixo.

Publicado no site do Cena Contemporânea 2015:

http://www.cenacontemporanea.com.br/tao-comum-quanto-extraordinaria/

Morte e vida purpurina

Foto. Sartoryi.
Foto. Sartoryi.

Crítica a partir do espetáculo Desbunde, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Cena Contemporânea 2015

Celebrado representante do teatro brasiliense em meio a uma ampla safra de espetáculos brasileiros que, em momento histórico pra lá de oportuno, tomam para si a defesa da liberdade, da tolerância e da diversidade sexual, Desbunde encontra em nomes da contracultura das décadas de 1960 e 1970, como Dzi Croquetes (RJ) e Vivencial Diversiones (PE), inspiração para revisitar um momento histórico em que tal liberdade se via relegada às margens da sociedade e ainda mais ameaçada pelo conservadorismo.

Dirigida por Juliana Drummond e Abaeté Queiroz a partir de texto de Sergio Maggio, a montagem convida o público às dependências de uma fictícia casa noturna habitada por cinco personagens que rapidamente se deixam conhecer. É Claudia Valeria espécie de líder e mentora histórica do grupo, que assume o fio da meada e costura os acontecimentos que testemunhamos em cena a partir de pontuações narrativas e breves interações com as demais personagens.

Logo de início, entretanto, ela dá o tom da encenação: por ali eles não respeitam quaisquer tipo de regras, nem mesmos as gramaticais. Tampouco supostas regras que separem palco e plateia são respeitadas, e não raro os personagens invadem as arquibancadas, arriscando-se em interações que, vale dizer, requerem certa disponibilidade do público.

Combinando registros dramáticos e narrativos, as demais personagens – Saquarema Satanás, Petit Du Buá, Savana Sargentelli e Marquesa – deixam ver bem trabalhados corpos, cantos, coreografias e paradoxos. Ganham complexidade ao apresentar suas histórias de vida ao público, a partir de performances que remetem à diversidade de trajetórias de vida escondidas por trás das festivas figuras que acompanhamos. Há aquele que cresceu freqüentando prostíbulos, o rapaz do interior “adotado” por um casal de classe média e ainda o que se preocupa com um filho deixado longe da boate, deixado sob a guarda dos avós. “Ser atual é encontrar beleza nas coisas”, explica Petit Du Buá, em passagem do texto que combina comicidade e lirismo.

Em outra passagem marcante, experimentamos juntos, atores e espectadores, o anti-climax provocado pelo Ato Institucional nº 5, em 1968, lembrando o fato de que àquela altura foram proibidas apresentações artísticas de travestis e transexuais, reduzindo ainda mais suas possibilidades de inserção social. Em uma das cenas mais cômicas e contundentes do espetáculo, em que se propõe nova interação com o público, Desbunde chama atenção à violência, aos preconceitos e à aleatoriedade dos critérios policiais para a identificação de suspeitos e possíveis contraventores ao sistema vigente.

Pontuado em diversos momentos do espetáculo, o uso de drogas pelas personagens ganha eficiente contorno cômico, sem moralismo nem promessas de redenção. Passada a Ditadura, no entanto, recebemos a chegada do vírus HIV como novo balde de água fria sobre a liberdade comportamental experimentada pela trupe, e ganha destaque à equivocada associação inicial entre o vírus e a homossexualidade.

Vítimas do vírus e de uma violência contra homossexuais que jamais cessou no Brasil (vale lembrar, aqui, que o país apresenta, ainda hoje, a maior índice do mundo de assassinatos motivados por homofobia e transfobia), as personagens se deparam com a vida intensa e breve que, àquela altura, já lhes estava reservada. “Quanta purpurina”, lamenta Claudia Valeria, desdobrando em poesia e estatística reiterada expressão popular sobre a morte de gays e travestis. Mais do que eficiente peça de entretenimento, Desbunde é resistência e realidade.

Publicado no site do Cena Contemporânea 2015:

http://www.cenacontemporanea.com.br/morte-e-vida-purpurina/

Personagens de si mesmos

Foto: Rodrigo Fischer.
Foto: Rodrigo Fischer.

Crítica a partir do espetáculo 2+2=2, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Cena Contemporânea 2015

Seja no Brasil ou na Geórgia, país ex-soviético situado na instigante fronteira entre o Ocidente e o Oriente, as relações estabelecidas entre valores e culturas tradicionais e o que se costuma chamar de modernidade ou mesmo globalização cultural têm despertado, já há algum tempo, a atenção crítica de pensadores e criadores contemporâneos. Pois é justamente a essas relações que se volta o espetáculo 2+2=2, produção realizada a partir de uma parceria entre o pesquisador e diretor brasiliense Rodrigo Fischer e artistas do Akmeteli Theatre, da Geórgia.

Nesta montagem, apresentada pela primeira vez no Brasil após estrear em março em Tbilisi, capital do país europeu, estão presentes elementos explorados pelo diretor em outras montagens, tais quais o uso intensivo da música e do vídeo, assim como uma encenação de caráter performativo marcada por atuações despojadas e frequentes interações com o público. Também se observa, em 2+2=2, um uso bastante livre e criativo de letterings, que servem tanto para traduzir as falas dos atores quanto para introduzir breves narrações, comentários e questionamentos lançados diretamente ao público.

Conduzido por quatro atores – ou performers – e por seu próprio diretor, que permanece todo o tempo à beira do palco, de onde estabelece recorrentes diálogos com a cena, o espetáculo se estrutura a partir de uma dramaturgia fragmentada em que as questões perseguidas pela montagem são, aos poucos, e de modo nem sempre muito claro, trazidas ao palco.

Chamados sempre por seus próprios nomes, Andria, Sopho, Giorgio e Gigi se revezam, então, no protagonismo da cena, oferecendo ao público relatos aparentemente documentais nos quais expõem seus conflitos em relação a pulsos de tradição e modernidade que nem sempre lhes parecem confortáveis. A esses relatos, às vezes claramente cômicos, às vezes um tanto solenes, são articulados quadros musicais, coreográficos e audiovisuais que corroboram o tom performático da montagem.

O que se sugere a partir desses depoimentos, no entanto, parece ser uma divisão binária entre o tradicional e o moderno, desconsiderando, em certo sentido, a complexidade e as matizes dessa relação, em permanente negociação e inevitável deslizamento. Com isso, tanto as personas apresentadas no palco, quanto seus conflitos e as resoluções propostas para estes conflitos correm o risco de reproduzir – mais do que problematizar – os estereótipos a que pretendem criticar.

Tais estereótipos, aliás, são reforçados por algumas situações dramáticas que, paralelamente à composição performática de 2+2=2, simulam diante do público o desenvolvimento de uma narrativa ficcional envolvendo os quatro atores, então convertidos em personagens um tanto simplificados de si mesmos.

Tendo em vista as reações da plateia, constantemente estimulada ao riso fácil e às palmas, o espetáculo parece funcionar na dimensão do entretenimento, apoiando-se em muitos momentos no virtuosismo e no despojamento de seus intérpretes, mas talvez não alcance, ainda, a problematização das questões que ambiciona compartilhar com o público.

Publicado no site do Cena Contemporânea 2015:

http://www.cenacontemporanea.com.br/personagens-de-si-mesmos/

Uma história indelicada

Foto: Miroslaw Koczkodaj.
Foto: Miroslaw Koczkodaj.

Crítica a partir do espetáculo The Mother, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Cena Contemporânea 2015

Grosseira, alcoólatra e à beira da loucura. É com essas e outras palavras de semelhante calibre que se apresenta ao público a personagem central de The Mother, peça escrita em 1924 pelo dramaturgo polonês Stanislaw Ignacy Witkiewicz – ou simplesmente Witkacy. Àquela altura, a Polônia ainda sofria os efeitos da 1a Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que celebrava cinco anos de independência após permanecer, por mais de um século, dividida entre os impérios russo, alemão e austríaco.

Mas enquanto uma onda de otimismo parecia tomar conta da nação recém-empossada, a peça de Witkacy, como se previsse a tragédia que viria apenas 15 anos depois, com a eclosão da 2a Guerra a partir da invasão da mesma Polônia por exércitos russos e alemães, traz à cena um quadro marcado pela deterioração afetiva de uma família para a qual o futuro parece muito pouco promissor. “O ser humano já não faz mais sentido”, repete a mãe, em diferentes momentos do espetáculo.

Nesta montagem, assinada pela atriz polonesa Jolanta Juzskiewicz em parceria com o diretor tadjique Anatoly Frusin, todos os personagens são vividos pela mesma intérprete, que se apropria de elementos do texto, tais quais o alcoolismo, o uso de drogas e permanente ameaça da loucura, para transitar, sobretudo, entre os papeis da mãe, Nina, que conduz boa parte da peça, e de seu filho, Leon, qualificado pela própria mãe como inútil, idiota e sonhador – adjetivos ali tratados como equivalentes.

Se, nos primeiros instantes, a partir de uma visualidade quase escultural, a encenação se anuncia como uma espécie de instalação montada ante ao público, o texto de Witkacy rapidamente se converte no principal motor da cena, apresentando-se, de início, como um fluxo de pensamentos em voz alta que ressaltam a solidão da personagem. “Tenho certeza de que não há ninguém aqui”, afirma Nina, em uma de suas primeiras provocações ao público, constantemente desconcertado pelas irônicas observações da indelicada senhora.

Aos poucos, contudo, outros personagens são sugeridos, tal qual Leon, seu famigerado filho, e Dorothy, uma espécie de ajudante a quem Nina vez ou outra pergunta ou pede alguma coisa. O monólogo inicial passa a incluir, então, pequenos diálogos que atribuem complexidade à encenação e à relação da intérprete com o público, conquistando a cada instante novas camadas e novas possibilidades de fruição. “Talvez eu esteja morta”, sugere ela, em dado momento. “Talvez já esteja ficando louca”, pondera, algum tempo depois. “Ninguém sabe quem é”, sentencia, por fim.

Entre um gole de vodka e outro, Nina entoa alguns cantos católicos e conta encontrar no tricô o precário sustento da família, dando a ver alguns traços marcantes da cultura polonesa traduzidos em uma cenografia mínima, filiada ao chamado Teatro Pobre que, não por acaso, teve origem naquele país. Após deixar escapar desajustados traços relacionados ao próprio comportamento e à relação com o filho, ela pede desculpas ao público e atribui à própria história a perda dos bons modos. “As boas raças nunca ficam grosseiras”, observa, novamente entre o lamento e a ironia.

Relações de proximidade e distância

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo E se elas fossem para Moscou?, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Cena Contemporânea 2015

Trabalho apresentado simultaneamente como espetáculo e filme produzido ao vivo, “E se elas fossem pra Moscou?”, da Cia. Vértice, tem como ponto de partida um dos principais clássicos do dramaturgo russo Anton Tchekov, “As Três Irmãs”. Assim como na obra original, o que se tem, em cena, são três irmãs que, após a morte do pai, desejam, cada qual à sua maneira, dar novo rumo à própria vida.

A ausência paterna surge, então, como fato que parece afastar essas irmãs do mundo que existe fora das paredes e janelas da casa que habitam. Dentro dessas paredes, por sua vez, o que testemunhamos e ouvimos, a todo tempo, são impressões sobre a passagem do tempo, o esvaziamento da vida cotidiana e o permanente desejo de estar em outro lugar.

O desejo de mudança e a dificuldade de mudar são, assim, rapidamente anunciados como grandes temas do espetáculo, identificados como conflitos centrais de Olga, Maria e Irina, personagens que progressivamente conhecemos ao longo da encenação, em instigantes relações de proximidade e distância, potencializadas de diferentes maneiras pelas linguagens do teatro e do cinema.

No teatro. Logo no início do espetáculo nos entendemos como convidados um tanto “genéricos” da festa de aniversario de Irina, que completa 20 anos no mesmo dia em que se lembra um ano da morte de seu pai. Mas apesar de sermos, até então, completos estranhos àquelas personagens, assim como à vida e às relações humanas que se estabelecem naquela casa, somos tratados como amigos da família, com os quais as três irmãs não hesitam em compartilhar histórias, conflitos e sentimentos que de sua intimidade fazem parte.

Assistimos, da plateia do teatro, a uma encenação multifocal, com constantes interrupções entre as personagens, que se revezam na lida com o público e o aparato cinematográfico, exposto sem ressalvas. Enquanto Olga e Irina esforçam-se para entreter os convidados, Maria deixa ver desde o início seus conflitos com a festa ali anunciada, reconhecendo a estranheza da situação e aproximando-se, em certo sentido, da percepção do público em relação ao caráter supostamente festivo do evento que, juntos, construímos.

Os conflitos apresentados pelas personagens, no entanto, muitas vezes se dissolvem na relação com o público, que, justamente por não dominar a profundidade dos dilemas postos em cena, rende-se à espontânea comicidade da convivência entre elas e responde com o riso à sucessiva exposição de traumas e frustrações. Se em alguns momentos esse desarranjo produz potentes atmosferas de constrangimento, em outros termina por provocar desvios – intencionais? – em relação à densidade do texto de Tchekov e do próprio espetáculo.

A esse respeito, o momento em que as irmãs convidam o público a participar de uma pista de dança improvisada no palco parece trazer ao primeiro plano esse permanente jogo de proximidade e distância entre personagens e espectadores. Ao promover, em cena, uma celebração entre pessoas que não se conhecem, ressalta-se a superficialidade das relações construídas entre palco e plateia, ao mesmo tempo em que se revela a profunda solidão das personagens e se reconhece, por fim, a falta de sentido daquela comemoração.

Não por acaso, o que se tem a partir do momento em que os espectadores, com certo constrangimento, se retiram do palco é um nítido recolhimento das personagens e dos espectadores. “Ficou vazio de repente, né?”, observa Olga, algum tempo depois, em uma espécie de anúncio sobre clara curva de adensamento do espetáculo.

No cinema. Parece curioso perceber, nesse sentido, que na situação de co-presença, ou seja, na situação teatral, o riso se coloca de modo mais recorrente e irresponsável: rimos das personagens e de seus conflitos mais íntimos sem muito pudor, como se nós – ou elas – ali não estivéssemos presentes. Enquanto isso, quando estamos a sós no cinema, o que se tem é uma atmosfera mais sóbria, mais concentrada e, em certo sentido, mais cuidadosa em relação aos conflitos e ideias apresentadas em cena.

Se, na plateia do teatro, somos inseridos desde o início na casa das três irmãs, a experiência cinematográfica de E se elas fossem pra Moscou? nos sugere uma aproximação mais paulatina em relação à intimidade da família. Primeiro, vemos o interior da casa como quem observa através das janelas, como se testemunhássemos algo que, em verdade, não devêssemos ver. Aos poucos, assumimos também a perspectiva de câmeras que circulam entre as personagens, como se acessássemos vídeos caseiros produzidos por elas ou ainda reflexões bastante íntimas direcionadas especificamente ao público do cinema. Assumimos, de igual modo, em alguns momentos, a perspectiva de alguns convidados específicos da festa, enxergando detalhes de relações que, na experiência teatral, acabam ficando em segundo ou terceiro planos.

A partir de recursos tipicamente cinematográficos, como closes, minuciosos enquadramentos e poéticas composições entre áudio e imagem, ganham complexidade e lirismo os universos íntimos de cada personagem, assim como certas relações estabelecidas entre elas. Mais imersos em sutilezas dessa rede de relações entre as personagens, deixamos em muitos momentos de ouvir as reações do plateia, acessando com mais clareza palavras, silêncios, gestos e olhares que muito dizem sobre as três irmãs e seus conflitos.

“O tempo passa”, avisa Irina. “Rápido”, completa Olga, em tom de lamento. Aprisionadas por si mesmas a situações que já não desejam viver, as personagens de “E se elas fossem pra Moscou?” abandonam, aos poucos, a fachada festiva. Deixam, então, transbordar ao público vícios, obsessões e paixões desmedidas que as impedem de superar o indesejado estado presente das coisas e dar o passo necessário à mudança que tanto desejam e defendem ao longo do espetáculo.

Publicado no site do Cena Contemporânea 2015:

http://www.cenacontemporanea.com.br/e-se-elas-fossem-pra-moscou-relacoes-de-proximidade-e-distancia/

Como será o amanhã?

Foto: Júnior Aragão
Foto: Júnior Aragão

Crítica do espetáculo Tomorrow, da Vanishing Point Theatre Company, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2014

30 de agosto de 2014

Se houver amanhã, ele será decrépito. Sem apelação. Sem melodramas. Cruel? Talvez. C’est la vie. Tomorrow, da escocesa Vanishing Point Theatre Company, traduz esse vaticínio. O espetáculo foi inspirado em estudo sobre o envelhecimento da população mundial. Graças à tecnologia, os humanos passaram a viver mais tempo e com isso, o número de idosos triplicou nos últimos 50 anos. A previsão é de que em 2050 o total de velhos no mundo chegue a dois bilhões. Mas essa longevidade não é garantia de saúde. Pelo contrário, traz ameaças de doenças, sendo a demência (o Alzheimer é uma delas) a que deve atingir um terço da população.

Primeira coprodução internacional do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, Tomorrow, toca nessas feridas abertas, que nega a humanidade e as relações amorosas (fraternas ou filiais) entre jovens e velhos, quando as limitações dos segundos exigem atenções especiais dos primeiros.

Antes do início da apresentação, o jovem diretor Matthew Lenton explicou que o cenário da peça ficou retido na alfândega, em São Paulo, e que este era o maior desafio da estreia. Lançar-se com uma cenografia arranjada em três dias.

Lenton também sugeriu ao público a não ficar preso às legendas (a peça foi apresentada em inglês com legendas em português), porque os atores poderiam improvisar algumas frases e, principalmente, que era melhor entrar na viagem sonora das palavras casadas com as imagens exibidas.

De fato, as imagens são impactantes. Principalmente porque conta com um projeto de luz que esfria, esquenta, indica, esconde, clareia, enfim, uma iluminação criativa que se torna um elemento imprescindível da encenação. Uma luz deslumbrante que dá a medida das situações, trabalhando inclusive com efeitos de “fade in” e “fade out” semelhante ao cinema.

Pela temática, não há como não lembrar da montagem Sobre o Conceito do rosto do Filho de Deus, da companhia teatral Socìetas Raffaello Sanzio, com direção de Romeo Castellucci, que esteve no Brasil durante a 1ª Mostra Internacional de Teatro – MITsp, em março. Mas enquanto a obra do italiano é carregada de culpa cristã e referências à fé e sua negação, parece que Tomorrow está esvaziada dessas problematizações.

Matthew Lenton faz uma brilhante articulação do teatro com quadrantes de espaços e inversões e supressões de tempo em Tomorrow. Mas a cena é fria, no sentido de não apelar para sentimentos mais melodramáticos do espectador. Com maestria o encenador agrupo componentes que desestabilizam o espectador.

Atroz, bárbaro, desumano é seu contexto – dos velhos “abandonados” em asilos sob a responsabilidade de cuidadores profissionais. E esses cuidadores da encenação se aproximam muito dos profissionais da saúde – médicos e paramédicos – quando tratam de doentes em hospitais e ostentam sua atitude técnica ao lidar com aqueles corpos frágeis, indefesos, ao dispor deles.

Presumo que o diretor equalizou para o mínimo a pulsação do afeto na cena para produzir um outro efeito inquietante. Penso ser proposital e calculadas as opções do encenador, para não tocar na emoção mais à flor da pele, que a matéria em si já incita.

Ele expõe um quadro duro, difícil de encarar, mas ao mesmo tempo avisa que aquilo ali pode acontecer com qualquer um de nós, espectadores. Não há consolação para a perda de liberdade e o sofrimento dos internos daquele lugar. E muito menos sacrifícios dos filhos deles.

A ironia perpassa a cena na hora das “brincadeiras internas”, as conversas de intervalo, quando um cuidador pergunta para o outro qual dos velhos escolheria para “ficar”.

A montagem é muito plástica e se resolve com os poucos artefatos, cadeiras e mesas basicamente. As máscaras de borracha, fabricadas nos Estados Unidos, são elementos de destaque na composição dos personagens. Aliás, o elenco é de uma afinação de orquestra. Os atores que interpretam os velhos ostentam uma técnica segura e eficiente. Os cuidadores fazem um contraponto, dando leveza ao ambiente, também com interpretações convincentes.

A primeira cena é de uma potência dura e bárbara. Um velho caminha pelas ruas geladas de um determinado lugar, carrega flores consigo. Esbarra em George, um jovem que está muito apressado para chegar ao hospital onde sua mulher pariu a filha do casal. No primeiro momento ele procura ajudar o velho, que cai, e George volta a ajudá-lo. Mas aí o velho se agarra às pernas do jovem e dois travam uma luta desesperada, quase um abraço de afogado. É uma cena forte.

Durante 90 minutos acompanhamos inquietos essa passagem das horas, dias, meses, na ficção. Crianças chegam, brincam, os velhos olham. A passagem do tempo. O tempo que se confunde. Apesar de expor situações humilhantes dos velhos, já tão limitados em seus corpos, a peça não despertou comiseração, pelo menos não em mim. Mas esse trabalho perturbador invade a consciência e sem pedir licença brada forte sobre o que queremos para o futuro.

 

Grupo bom é grupo morto

Foto: Júnior Aragão
Foto: Júnior Aragão

Crítica do espetáculo Adaptação, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2014

29 de agosto de 2014

A companhia Teatro de Açúcar, de Brasília, “morreu” em 2012. Mas depois disso montou alguns espetáculos, inclusive o criativo Adaptação, monólogo defendido por Gabriel F., que foi exibido na 15ª edição do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. (Adaptação estreou em Brasília em janeiro de 2013, financiado pelo Ministério da Cultura do Distrito Federal. E no início deste ano participou do Janeiro de Grandes Espetáculos, no Recife). Os motivos do óbito são fáceis de adivinhar: dificuldades financeiras para manter as atividades da equipe – sintomas que acometem outros conjuntos Brasil à fora.

O monólogo leva ao palco uma transexual, atriz, que ensaiou durante três ou quatro meses com um encenador de ideias vacilantes e hoje é sua estreia. Precisa improvisar.

E para falar de ameaças de desaparecimento, o bando institui paralelismos dentro da cena com personagens que buscam driblar a extinção. No caso um diretor que vive uma crise de criação do espetáculo e já pensa em mudar de profissão, uma atriz que veio do interior e precisa se acostumar ao novo estilo na capital, uma transexual – que por sinal é a atriz- às voltas com sua nova identidade e um dinossauro de futuro incerto.

Os procedimentos para tratar de todas essas questões são inventivos. O que fica é que todos querem sobreviver.

Para formar o quadro estão na cena um minúsculo piano, um microfone com pedal, uma caixa de equipamentos sonoros, uma mesa coberta por toalha, um dinossauro de brinquedo e uma taça. No chão, um jarro.

Entra uma figura estranha, mas bonita. Traz flores. Peruca loura, sapatos vermelhos de salto alto e um ar que mistura uma personagem interiorana com uma figura que vai sobreviver. Mesmo que para isso precise adaptar-se.

O verbo que faz referência ao fato de ajustar uma coisa à outra. Então, se acomodar a diversas circunstâncias e condições. A personagem faz bem isso e o registro do intérprete a esse processo é o meio-tom em que alguém vai expondo sua situação, seus limites, e ao dizer coisas com tanta sinceridade dribla o ato ridículo e consegue a cumplicidade da plateia.

É um progressivo conquistar do público, ao falar da crise do teatro, das estacas do contemporâneo, das técnicas ironizadas pelo ator.

A primeira parte de Adaptação é uma sequência de justificativas sobre o vazio da cena, com frases de inteligência mordaz e pelo menos dois momentos de uma beleza crítica desconcertante. Quando ele mostra, com as mãos, um dinossauro (e neste caso a iluminação é determinante) e a evolução disso quando o ator explora gestos e finaliza com uma frase de que adora dança contemporânea.

Esse discursar sobre o vazio é redirecionado para a música (Gota de Sangue, de Angela Rô Rô e uma outra autoral) e para uma pequena fábula de um encontro quase amoroso e sua impossibilidade diante das convenções sociais. No caso, da atriz transexual e seu professor de piano na sua cidade do interior.

O registro interpretativo, num tom de negociação, vai conquistando o seu interlocutor aos poucos, também me parece um pouco dessa camuflagem como mecanismo de defesa da qual fala a personagem sobre o camaleão que engana os possíveis predadores.

É uma encenação que destaca a ironia desse viver contemporâneo, sem lições de moral. Tem potência, mesmo quando parece falar do nada. É uma dramaturgia original, com humor sutil, uma peça divertida para falar do medo do fim. A caracterização do ator é ponto alto da montagem.

Dispensaria apenas o cigarro fumado em cena.

Cacá Carvalho brinca com máscaras da aparência

 

Foto: Cena Contemporânea/Divulgação
Foto: Cena Contemporânea/Divulgação

Crítica do espetáculo umnenhumcemmil, com Cacá Carvalho, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2014

28 de agosto de 2014

O monólogo umnenhumcemmil, com o ator Cacá Carvalho, é a terceira peça de uma trilogia que o artista desenvolve a partir da escritura de Luigi Pirandello. Os três espetáculos (O homem com a flor na boca, A poltrona escura e umnenhumcemmil) foram apresentados na 15ª edição do Cena contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, e tem assinatura do diretor italiano Roberto Bacci. Um nenhum cem mil é o último romance de Pirandello e trata de assuntos caros e recorrentes na obra do escritor italiano, o “ser” e o “parecer”, a sobrevivência de identidades e no fundo o próprio teatro e seu leque de simulacros.

O romance Um, nenhum e cem mil, de 1926, é desconcertantemente atual nos questionamentos das identidades a partir do olhar do outro, que nessas épocas são cada vez mais manipuláveis. A encenação explora as sutilezas desses motes num monólogo de 80 minutos, verborrágico e cativante.

Um dos principais teóricos da modernidade líquida, o polonês Zygmunt Bauman atesta que a identidade é um “beco sem saída”. E defende que é um “conceito altamente contestado”. E que a palavra remete à batalha. Já o sociólogo francês Michel Maffesoli fala de sistemas de significação e representação cultural que são multiplicados.

Para trabalhar esses pontos complexos, a montagem conta com um magnifico ator, com domínio de diferentes estéticas e formas cênicas plurais, por onde Cacá Carvalho desliza com sobriedade.

umnenhumcemmil é um drama existencial de Vitangelo Moscarda (o Genge), 28 anos, casado com Dida, sem filhos, dono de um banco e de Bibi, uma cadela. Ele mora na cidade de Richieri e tem dois amigos fieis, Quantorzo e Stefano Firbo, que cuidam de seus negócios. Uma figura ordinária, comum.

Um belo dia, um comentário da esposa sobre seu nariz, que se inclina para a direita, desencadeia uma crise sem precedente. Genge não é, nem para Dida, aquilo que imaginava ser. Isso provoca a investigação de outros defeitos físicos: descobre que tem sobrancelhas semelhantes a dois acentos circunflexos “^^”; que as orelhas são mal grudadas; que em uma das mãos o dedo mindinho exibe desproporcionalidade; além de outras pequenas “anormalidades”.

O protagonista conclui, então, que cada pessoa que o enxerga vê̂ um Moscarda diferente. E esse indivíduo não suporta o peso da opinião pública. Ele quer uma unidade, mas ao mesmo tempo não aguenta ser mais um.

O sujeito mergulha num abismo de reflexões. E diante da situação bizarra, abandona sua vida vulgar, funda um asilo, onde vai trabalhar. Se livra da identidade pública e abraça o anonimato.

As máscaras vão caindo. Com poucos recursos cenográficos de Marcio Medina (uma poltrona, algumas cadeiras, balde), o ator assume essa figura que limpa o chão, que treme em nervos expostos numa interpretação visceral de Cacá Carvalho. Ele constrói um personagem patético, ridículo, poético. Seus gestos e vozes se transformam em lâminas de corte para essas pulsações contemporâneas. Tão vibrantes em suas identidades descartadas. Metateatro erguido com competência diante dos olhos do público.

Ao convidar alguns espectadores a se sentarem no palco, acompanhando de perto a encenação, a montagem explora mais um link da superexposição da vida íntima. Uma pertinente metáfora. A luz de Fábio Retti e a música de Ares Tavolazzi compartilham desse processo.

A inteligência cênica da parceria entre ator e diretor joga no palco um intérprete de vários personagens, fragmentado em diversas vozes, multifacetado. Numa atuação luminosa de Cacá Carvalho.