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Formas para as diferenças | Festival de Curitiba 2017 – parte 3

“Eu era a carne/ Agora sou a própria navalha”

“Negro Drama”, Racionais MC’s

Por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

“Farinha com Açúcar”. Foto de Leonardo Lima.

Mais, ainda

Retorno ainda outra vez ao Festival de Curitiba deste ano para rememorar outros espetáculos marcantes da programação desenhada pelos curadores Marcio Abreu e Guilherme Weber.  Nas partes 1 e 2 deste panorama, tratei especialmente de trabalhos artísticos nos quais as questões de gênero se faziam centrais. Nesta terceira parte, são as formas como a exclusão racial rompe a invisibilidade que me levam a refletir sobre os diferentes caminhos estéticos para o posicionamento ético e político de artistas brasileiros hoje – e da crítica.

Se há não mais que cinco anos um olhar interseccional para o teatro ainda era algo raro, uma vez que as questões de gênero e raça permaneciam marginalizadas nas discussões sociais e artísticas (o que não significa que não existissem e resistissem), hoje, a partir das transformações catalisadas por movimentos de rua e virtuais, tais abordagens se apresentam frequentemente inscritas dentro dos círculos de pensamento e prática artística comprometidos com um projeto de sociedade menos excludente. O que testemunhamos é o despertar de setores sociais silenciados historicamente, e se a atenção às suas vivências emerge à visibilidade da superfície dos discursos e dos corpos em cena, de modo que já chegam a parecer inescapáveis os recortes de raça, gênero e sexualidade em contextos como o do teatro de pesquisa belo-horizontino, podemos considerar que não se trata somente de uma tomada de consciência por parte de quem olha da plateia (crítico, pesquisador ou espectador), mas, até mais substancialmente, do quanto tais discussões têm sido assumidas pelos artistas como estruturantes de suas criações cênicas nos níveis dos discursos e das formas.

Essa proliferação reativa uma discussão complexa sobre as implicações entre ética e estética, que já muito (mas não suficientemente) ocupou o espaço mental de filósofos ao longo da história, e aqui invoco numa abordagem colada ao próprio exercício crítico que nós, profissionais da crítica ou apenas seres críticos que somos todos, praticamos diante desses espetáculos. A questão emergente seria: como, ou em que medida, diante de um trabalho que se sustenta na defesa de questões éticas e políticas urgentes sobre direitos humanos (a exemplo do combate ao racismo, à misoginia, à transfobia e à homofobia), não desconsiderar a dimensão estética em si?

A nódoa parece estar no temor de que o questionamento estético produza o efeito colateral de enfraquecer uma luta da qual reconhecemos a importância e a necessidade. Afinal, sabemos o quanto ainda são frágeis essas posições identitárias dentro da nossa organização social e como não faltam empreendimentos para desqualificá-las. Em contraponto, ao não reconhecer o valor próprio da estética, menosprezaríamos o que é próprio do ato artístico, o modo singular como proporciona experiências, como organiza afetos, sensações e significados, e como as formas criadas supõem visões de mundo. Nesse sentido, privar a arte engajada na defesa dos direitos humanos de uma apreciação de ordem estética significaria ignorar justamente como suas formas reconfiguram o mundo.

Isso não nos isenta de questionar o fundo ideológico dos nossos parâmetros estéticos e o quanto estão moldados por uma tradição que se perpetuou dentro daquele mesmo sistema de exclusões em que as manifestações negras, LGBT e de mulheres tantas vezes foram desqualificadas ou invisibilizadas. É atribuída à Virginia Woolf o aforismo “Ao longo da maior parte da História, anônimo foi uma mulher”. De modo análogo, embora singular, o desinteresse e o desconhecimento sobre as tradições das artes negras e suas expressões contemporâneas periféricas determinam os sistemas de valoração correntes nos palcos, na crítica e na academia.

Eis exposta apenas uma pequena parte dos problemas que esse cenário complexo nos coloca. No Festival de Curitiba, essa discussão se instaurou a partir da mesa de debate com artistas negros promovida na programação do Interlocuções (com curadoria de Giovana Soar), especialmente pela fala de Jé Oliveira, do Coletivo Negro, de São Paulo. Entre outras colocações, ele questionou justamente a falta de olhares propriamente estéticos sobre a diversidade de linguagens que constitui o “teatro negro”, o que seria um modo de subestimar a potência criativa dessas obras e se sustentaria na ausência (ou insuficiência) de conhecimento (e, antes dele, de interesse) sobre a história da arte para além da Europa e da faceta branca dos Estados Unidos. Ou seja, na falta de letramento racial. Nos palcos do festival, peças como a paulista “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, a curitibana “Macumba” e a portuguesa “Moçambique” mostraram um pouco dessa diversidade. Nos caminhos abertos por essa programação, optei por acompanhar a produção brasileira.

“Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, do Coletivo Negro. Foto de Leonardo Lima.

Masculinidade negra urbana

“Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, do Coletivo Negro, já esteve em Belo Horizonte, no contexto do Fan – Festival de Arte Negra. Fora de um recorte especificamente racial, lado a lado com outras peças de temáticas e linguagens diversas que compõem a programação da mostra oficial do Festival de Curitiba, o espetáculo reafirma que se são raras as criações de artistas negros em grande parte das curadorias brasileiras não é (reconheço o contexto racista que torna ainda possível ou necessário escrever isso) por faltarem trabalhos da mais alta qualidade poética.

“Farinha com Açúcar” é construída como um tributo ao Racionais MC’s, em reconhecimento à atuação do grupo de rap paulista no empoderamento de uma população negra e periférica que não se via nem se ouvia representada. Esse reconhecimento é de um verdadeiro letramento promovido pela música – afinal, para esses sujeitos, “música é livro também”, conforme repete Jé Oliveira. Tal como Malcolm X, o ativista negro norte-americano evocado na dramaturgia (“li Malcolm X como quem come com fome”), os Racionais aparecem como responsáveis por alimentar não só a consciência crítica contra o etnocídio negro mas a própria autoestima necessária à resistência e à luta.

Pela compreensão da importância dos discursos disseminados nas letras de rap e do quanto a forma de circulação desses discursos é determinante para furar os ciclos de exclusão, o Coletivo Negro busca na obra dos Racionais os elementos estruturantes para a criação teatral. A linguagem musical torna-se o esqueleto e a pele da dramaturgia. O teatro musical faz-se fora das convenções associadas à união dessas duas artes. O microfone, a postura, a atitude, a métrica, o engajamento do rap, além de seus modos de radiodifusão, são o veículo para a expressão das “experiências de ser preto na urbanidade”, colhidas e reescritas a partir de 12 entrevistas de homens negros de diversas idades e ocupações.

Fala-se sobre a negritude com a poesia da variante linguística da periferia, direcionada aos sujeitos negros infrequentemente posicionados como os interlocutores primários em arte. Desse modo, cabe aos espectadores brancos a posição de outros dessa experiência compartilhada – um deslocamento imprescindível.

Se no princípio era o som, e a luz, luzes e música criam o espaço cênico, dando densidade e tonalidades ao palco, ocupado ao centro por Jé Oliveira e, ao fundo, por uma banda – na apresentação em Curitiba, o DJ KL Jay (do Racionais) foi substituído pelo DJ Tano. “Imagine que isso aqui é uma favela”, sugere o ator, frente à composição visual com lâmpadas espaçadas que remete a um aglomerado de barracos. O que se vê em cena não se confunde com um tratamento cosmético para a pobreza, nem com uma estética da precariedade. Ao contrário: é a potência de cada vivência, com sua capacidade de produzir beleza e saber, que se mostra aos nossos olhos como afirmação do valor de todas as vidas. “Apesar de ficção, não teremos ilusão”, avisa Jé.

Nos jogos de luz à maneira dos shows musicais e nas variações de intensidade; nas rimas e aliterações do texto e no uso de gírias; na dramaturgia mixada seguindo a lógica própria de um DJ, misturando samples e sobrepondo textos, refrões e batidas, percebe-se a elaboração formal na construção de um espetáculo mobilizador pelo engajamento crítico e pela sensorialidade, capaz de envolver o espectador (seja este frequente ou arredio ao teatro) e arrebatá-lo. Essa forma como o Coletivo Negro conjuga teatralidade, musicalidade e oralidade (ou letra, corpo e som) se sustenta numa concepção de não separação entre as artes, que condiz com as tradições das manifestações artísticas negras e encontra com a cena expandida da arte contemporânea. Desfaz, assim, rupturas excludentes entre linguagens, tempos e matrizes culturais.

No coração da dramaturgia estão as violências repetidamente impostas à população negra. “Primeiro ato: morrendo”, anuncia Jé Oliveira. As histórias trazidas na voz do ator, em depoimento em off ou nas letras das músicas, testemunham um cotidiano em que a violência sofrida gera a violência infligida. Essa retroalimentação inclui uma série de fatores que se encadeiam em efeito dominó. A peça comum é a frustração diante da desigualdade econômica e do genocídio sentenciado pela cor da pele sem direito de defesa nem julgamento. “Isso te dá ódio, tira a poesia”, diz Jé. “Se é pra ser o pior, vou ser o pior mesmo”, resume a cadeia de brutalidade.

A fome, a humilhação e as carências agravadas pelo preconceito se revelam em dimensões que o conforto rotineiro da classe média geralmente não permite alcançar. Prova disso é o relato de um espectador curitibano na conversa pós-espetáculo: pela primeira vez, percebeu que um rapaz de periferia que rouba um par de tênis, diferentemente dele, nunca pôde ter o que desejava. A quem essa constatação não é novidade, talvez sentir o gosto de farinha com açúcar como única comida disponível em casa para matar a fome quebre algumas das fantasias que permanecem a sustentar nosso modo de viver, recobrindo com véu da ilusão ou do esquecimento a hierarquia social e racial vigente.

Outro fundamento da dramaturgia é a masculinidade, exercida como potência de virilidade em cena, e questionada na medida em que seu reforço, sob a lógica do “apanhou tem que bater”, obedece ao aprendizado da violência para a sobrevivência.

Nesse sentido, não coube no espetáculo uma visão intersecional que abrisse espaço para se pensar o que é esse homem em relação ao outro, à feminilidade. Não deixa de ser curioso como a proposta de refletir sobre essa masculinidade não tangencia outras expressões de gênero e de sexualidade na cultura negra e periférica (a exemplo do que faz a cena curta “Não Conte Comigo para Proliferar Mentiras”). As mulheres negras já deflagraram outro espetáculo do coletivo (“Ida”), mas seria interessante desenvolver um tensionamento entre esses recortes futuramente, sobretudo porque a violência no universo masculino também decorre de certa concepção de masculinidade, e as implicações entre as opressões são indissociáveis.

Com o vigor de uma revolta retesada há muito tempo e o rigor para transformá-la em experiência estética, “Farinha com Açúcar” nos confronta com nossa permissividade com o racismo. A notícia de jornal se repete: “111, 111, 111, 111 tiros”, “só porque é preto”, “só porque é preto”, “só porque é preto”, “será que mereciam?”, “5 tiros na cabeça”, “só porque é preto”, “o piolho era ladrão/ ainda assim/ será que merecia?”, “só porque é preto”? Reproduzir aqui essas frases, em refrão, está longe de reavivar a potência que ganham como música, tal qual rajada de metralhadora com munição poética ritmada na cadência do disparo, direto na razão e na emoção, para operar sobre ambas alguma transformação. A repetição, aliás, extrapola o domínio formal. Assim como em um dos trechos mais belos e contundentes de “Eras” (segundo espetáculo das Negras Autoras, de BH), a repetição é o signo daquilo que não para de acontecer. O risco no disco, o ponto onde travamos.

“Macumba – Uma gira sobre poder”, da Transitória. Foto de Lina Sumizono.

Negritude ao Sul

É de outro lugar que falo sobre “Macumba – Uma gira sobre poder”, espetáculo da companhia curitibana Transitória, apresentado também na Mostra Oficial. O que destaco, neste caso, é primeiramente o empreendimento de uma criação artística motivada pela afirmação de aspectos da cultura negra em uma cidade como Curitiba, onde até poucos anos atrás não só era raro alguma obra teatral com tal abordagem, como constituía 0 senso comum (e ainda o constitui, segundo relatos ouvidos nos Encontros com a Crítica) a ideia de que não há população negra significativa na cidade em decorrência da colonização predominantemente italiana, alemã, polonesa, ucraniana e japonesa. Contudo, já o Censo 2010 contabilizava 20% dos cidadãos como autodeclarados negros e pardos – ou seja, um a cada cinco habitantes. Certamente, um número ainda reduzido diante da realidade, por consequência do processo de “branqueamento” cultural desse sul “europeu”. É, portanto, significativo que o movimento de afirmação das identidades negras se manifeste no teatro curitibano, ainda tão branco – à exceção de artistas como a atriz e cantora Simone Magalhães, também participante do Interlocuções.

Outro ponto notável é que o espetáculo tenha nascido da companhia Transitória, a qual conheci quando ainda se dedicava a uma estética pop cheia de referências metateatrais, em registros completamente distintos, como “Elizaveta Bam” ou “Para Poe”. Com nova formação, e o intercâmbio com a Cia de Teatro Nata, da Bahia, o grupo curitibano assume a luta do empoderamento negro, pela valorização da herança cultural afro-brasileira. O empreendimento ressoa a pesquisa cênica da fundadora do Nata, a diretora Fernanda Júlia, sobre a ativação do movimento com base nos estudos da ancestralidade, especialmente dos elementos do candomblé transformados em matriz cênica.

A abordagem considera os aspectos antropológicos e performáticos do candomblé para construir um arcabouço de procedimentos para os atores, de modo que os vestígios do rito religioso deem forma ao rito teatral. Essa é a maior riqueza de “Macumba”, a capacidade de instaurar na relação teatral algo da energia contagiante do terreiro, sua corporeidade intensificada, a musicalidade vibrante, e, com isso, proporcionar ao espectador uma experiência que é própria dessa matriz afro-brasileira, mas que permanece distante das vivências centradas na tradição europeia.

Contribui para essa efetivação o fato de que as apresentações ocorreram na Sociedade 13 de Maio, reduto de resistência da cultura negra em Curitiba – cidade onde, apesar do referido branqueamento, a umbanda é uma religião com significativa inserção (no longínquo Censo 2010, Curitiba era a oitava capital com mais praticantes de umbanda e candomblé, à frente do Recife, por exemplo, e Porto Alegre era a primeira). Ao integrar esse espaço do cultivo da tradição negra ao roteiro de teatros da mostra oficial, o Festival de Curitiba cria uma interseção entre manifestações culturais que se mantêm, a maior parte do tempo, apartadas. Seria este, talvez, o lugar da encruzilhada, do qual trata o crítico e pesquisador Marcos Alexandre retomando um conceito cunhado por Leda Martins (2002): “Como espaço de trânsito e deslocamento, na encruzilhada, deparamos com um ponto de interseção, um lugar em que os corpos se cruzam e são cruzados, tocados. Nesse encontro com o outro – princípio da Alteridade –, algo de um se impregna no outro e vice-versa” (ALEXANDRE, 2014).

Nesse território de trocas simbólicas e afetivas, o poder se torna objeto de investigação cênica. É a raiz do neologismo “empoderamento”, derivado do termo inglês “empowerment”, que se transformou em conceito central dos movimentos negro e feminista contemporâneos, como ato e efeito de promover a tomada de consciência de um grupo oprimido sobre sua própria força de ação, por meio da educação (o letramento), do resgate histórico e da autoestima, e pela valoração positiva de seus atributos e tradições. Em “Macumba”, o poder dos orixás é evocado como manifestação da força da população negra. Quando essa presentificação se efetiva, sobretudo pela música, o espetáculo alcança seus momentos mais arrebatadores. Na via oposta, a dicção dos atores nem sempre permite que suas falas sejam compreendidas pelo público.

Na interseção da matriz religiosa afro-brasileira com a cultura do consumo que sustenta o sistema econômico capitalista vigente, homens e mulheres negros poderosos são também nomeados como exemplos afirmativos do que podem os negros mesmo numa sociedade em que a concentração de renda tem entre seus principais fatores de exclusão a raça ou a cor. Razão pela qual a dramaturgia comunica com veemência incontestável a necessidade de se “empretecer os espaços midiáticos”. Trata-se, afinal, da representatividade como propulsora de empoderamento, ou, em negativo, da falta da representação da negritude em espaços sociais cruciais como desencadeadora da retirada do poder dessa população.

A questão que coloco ao grupo, como provocação, é a escolha pelo discurso da riqueza como campo de legitimação social quando enumera os negros mais ricos do mundo. Não há dúvida de que somente 10 dos 2.043 bilionários serem negros é um dado quantitativo impactante capaz de capturar a atenção e demonstrar os extremos da exclusão racial na distribuição de renda. É quando o discurso se direciona ao desejo de enriquecer (haver mais negros e negras entre os bilionários e milionários do mundo) que a lógica capitalista suplanta a crítica ao sistema, preservando a partilha desigual dos recursos de modo que não se combata a estratificação financeira pela qual 1% da população global detém a mesma riqueza dos 99% restantes. Se compreendemos por “racismo estrutural” que a exclusão de parte da população, pelo critério de raça, é alicerce desse modelo econômico, o que se está propondo não atingiria a estrutura de exclusão. Eis uma relação de forças complexa, considerando que a população negra é 1% desse 1% mais rico. A contradição está posta.

Todas essas discussões colocam o crítico (de arte ou da sociedade) em uma contenda. No caso do teatro, penso ser possível inscrever a questão em um contexto mais abrangente, que é o das formas de “irrupção do real” em cena, ou seja, dos procedimentos que convocam elementos (corpos, depoimentos, testemunhos, notícias) da realidade para a construção do espetáculo, dando a eles o tratamento de índices do “real” como uma forma de legitimação. Não pretendo aqui mais do que apontar um problema que emerge desse cenário (e que começamos a debater internamente entre os integrantes do Horizonte da Cena recentemente): Como exercer uma crítica que não se petrifique diante da legitimidade dessas vivências quando elas se tornam um argumento de autoridade embasado num suposto critério de “verdade” – mas sem destituí-las? Em outras palavras, como reconectar o saber originado da vivência às demais formas de produção de conhecimento, sem adotar uma atitude hierarquizadora entre elas, mas de modo a considerar a complexidade da experiência?

"Protocolo Elefante"; Foto de Lina Sumizoto

“O Que Podemos Dizer do Pierre”, de Vera Mantero, e Protocolo Elefante“, do Cena 11. Fotos de Leonardo Lima e Lina Sumizono.

Pensando as diferenças

Esgotar a apreciação de um festival em um texto panorâmico é impossível. Mesmo dividido em três partes, relativamente longas, resta a consciência do quanto falta ser dito, do quanto clama por atenção – por mais críticos, mais olhares, mais tempo. Na edição 2017 do Festival de Curitiba, haveria ainda a destacar espetáculos vistos no Fringe, como “Chão de Pequenos”, primeira peça da Cia Negra, de Belo Horizonte, que propõe uma linguagem na qual dança e teatro se encontram, e sobressai pela cumplicidade das atuações de Felipe Soares e Ramon Brant, dirigidos pelo coreógrafo Tiago Gambogi e por Zé Walter Albinati (da Luna Lunera), numa partitura que dá forma e textura aos afetos entre dois personagens órfãos, cujos destinos são atravessados, mais uma vez, ainda, pelo preconceito racial.

Na programação oficial, certamente merecem mais reflexão – e circulação – trabalhos apresentados dentro do Movva, evento dedicado à dança, como os da bailarina e coreógrafa portuguesa Vera Mantero, “Olympia” e “O Que Podemos Dizer do Pierre” (sobre os quais recomendo ler no jornal português “Público“), e o modo como ela sobrepõe formas de pensamento discursivo e dançante, por exemplo, quando no segundo solo realiza uma coreografia desencontrada da projeção em vídeo na qual Gilles Deleuze se refere aos tipos de conhecimento segundo Espinoza.

Também no campo da dança, sobressai “Protocolo Elefante“, espetáculo em que o grupo catarinense Cena 11 experimenta expressões físicas da possibilidade de se desprender das identidades fixas e de deixar coexistirem as singularidades dos corpos, dentro da contradição que é um conjunto de figuras isoladas para poderem se diferenciar. Disso resulta uma cena completamente estranhada e hipnótica, de formas “inadequadas”, atravessadas por uma iluminação maciça, que divide longitudinalmente o espaço do teatro e envolve a plateia numa imersão física, enquanto o sentido de temporalidade se esgarça com o ritmo (e o posterior esvaziamento) dos movimentos.   

Neste percurso pela mostra oficial do Festival de Curitiba, fica evidente a eleição de projetos artísticos ocupados em expandir a experiência humana a partir da afirmação das singularidades, em oposição ao cenário nacional e internacional que forças políticas e econômicas vêm se alinhando no esforço de dizimar as diferenças. Nesse sentido, cabe ainda ressaltar a presença de “Nós”, espetáculo do Grupo Galpão, com direção de Marcio Abreu, que nos coloca diante justamente da questão do convívio, a partir da experiência de 35 anos de um coletivo teatral, transformada ficcionalmente na situação cênica do preparo de uma sopa, durante o qual se revelam a intimidade, as divergências, o envelhecimento, a estagnação e a resistência daqueles sujeitos, refletindo também problemas políticos contemporâneos (sobre o espetáculo, já tratei mais detidamente neste artigo).

“Nós”, do Galpão. Foto de Annelize Tozzetto.

Adiante

Diante de um panorama tão estimulante de proposições teatrais e de discussões possíveis, o Festival de Curitiba mostra que terá muito a crescer em qualidade se a coordenação investir na continuidade da valorização artística e reflexiva. Para tanto, as conquistas precisam ser mantidas nas próximas edições – mesmo quando se encerrarem os três anos previstos de curadoria de Weber e Abreu – e estendidas às áreas ainda resistentes da programação. Cito duas velhas conhecidas de quem vem refletindo sobre o festival ao longo das décadas: a necessidade de atrair público por intermédio de celebridades televisivas e o modelo de gestão do Fringe. São questões que, de tão repisadas e gastas, já parecia não haver esperança de modificação, mas a capacidade de se reinventar que o festival vem demonstrando faz com que valha a pena, mais uma vez, voltar a elas como possibilidade de encontrar encaminhamentos que contemplem uma ideia de democratização da arte menos submetida aos ditames do consumo – afinal, já vimos no cenário político brasileiro recente como a democratização e a inserção social somente pelo consumo não se sustentam.

Refiro-me à opção por espetáculos que tragam rostos conhecidos do grande público sem descuidar da dimensão artística, como são os próprios trabalhos de Marcio Abreu com Renata Sorrah e os de Guilherme Weber, e contribuam para a construção e ampliação do público de teatro, que encontra suas referências nesta arte e não na televisão (menos por uma questão de ser melhor ou pior, mas para que ambas possam continuar a existir com suas singularidades). Se o gosto desenvolvido for por teatro e não só pelo fetiche de estar diante do artista da TV, há de gerar interesse por outras peças da mostra oficial e do Fringe, favorecendo um modelo menos episódico de relação da cidade com o teatro.

E o Fringe é a outra questão, evidentemente. No fim da década passada e início desta, as mostras especiais como a Novos Repertórios e a mineira renovaram em parte o fôlego do festival, na medida em que concentravam trabalhos com interesse na pesquisa de linguagem continuada. Mas o que se vê agora é o enfraquecimento dessas mostras e o retorno à diluição do Fringe, como um imenso agrupamento de peças dentre as quais uma enorme quantidade são produções caça-níqueis (não gosto da expressão, mas não acho outra mais justa diante de títulos como “Eu te levo pro teatro, mas depois vamos pro motel?” – seria piada se não fosse mesmo uma peça).

É notável, também, a presença cada vez menor das principais companhias curitibanas (que voltarão a se encontrar na Mostra Novos Repertórios, agora em edição independente e desvinculada do festival, de julho a agosto deste ano). A Curitiba Mostra, com a proposta de encenar escritos de autores paranaenses, fica sendo um espaço privilegiado para se ver o teatro da cidade, embora ainda não tenha atingido sua potencialidade (a julgar por outros trabalhos dos mesmos artistas), talvez por carecer de maior tempo de maturação da forma cênica a partir do texto literário tomado como deflagrador do processo criativo. Para 2018, será importante repensar como fazer do Festival um espaço interessante para se ver mais do teatro curitibano.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 

ALEXANDRE, Marcos A. “O teatro negro no Brasil: perspectivas críticas”. Revista Araticum Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes v.10, n.2, 2014. 

Panorama crítico do Festival de Curitiba 2017 – partes 1 e 2

Por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

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Foto de Lina Sumizono

Pelo segundo ano, escrevo um tempo após encerrado o Festival de Curitiba sobre o percurso que fiz através da vasta programação apresentada em março na capital paranaense. Também pela segunda vez, participei do festival pela DocumentaCena – Plataforma de Crítica, formada por este site, o Satisfeita, Yolanda e o Questão de Crítica, em Encontros de Crítica realizados com artistas e público logo depois dos espetáculos da Mostra Contemporânea. A ação me permitiu permanecer o período todo do festival, o que está longe de significar qualquer totalidade diante das centenas de espetáculos e debates. A análise que se segue, portanto, e nunca é demais frisar, corresponde a um percurso particular, ainda que atento ao que escapa à trilha traçada.

Na edição 2017, o Festival de Curitiba adentrou o caminho que começou a se abrir no ano passado, quando Guilherme Weber e Marcio Abreu assumiram a curadoria, e que tem restituído a importância do festival como espaço de visibilidade e reflexão para o teatro brasileiro. Neste ano, vimos os passos adiante tanto da curadoria de espetáculos, ao reunir um conjunto de trabalhos que nos colocam questões sociais urgentes do país e experiências estéticas desbravadoras do que podem ser as artes presenciais (“Gaymada”, “Amadores”, “Farinha com Açúcar”, “Nós”, “Nossa Senhora da Luz”, “Mata Teu Pai”, “Protocolo Elefante” etc.), quanto no investimento em reflexão crítica: o Interlocuções, programação paralela proposta por Giovana Soar, que inaugurou um espaço inédito para o debate de ideias dentro do festival; os Encontros de Crítica; e as duas mesas do seminário Crítica e Curadoria planejadas por Daniele Avila Small e Sonia Sobral.

Desse modo, Curitiba agora se alinha à Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp e ao Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos na compreensão – ainda que em maior ou menor grau – de que as atividades formativas, críticas e reflexivas devam ser componentes estruturantes de um festival de teatro que se pense como mais do que uma feira de entretenimento ou um expositor de produtos culturais. Quando produtores, artistas, espectadores, críticos e teóricos se encontram, se veem e se escutam, todo o circuito da arte se fortalece.

Sabemos que dentro de um sistema capitalista, submetido às vontades dos departamentos de marketing das empresas patrocinadoras num país onde são estas quem define o destino dos recursos públicos, um festival é um evento regido pela lógica produtiva, focada em números, metas, resultados, facilmente traduzíveis por faturamento. Por essa perspectiva, um festival de teatro seria basicamente um concentrado de espetáculos destacados num recorte de tempo e espaço, planejado para o máximo rendimento do espectador. O Festival de Curitiba ainda se mantém nessa toada – pela qual, em anos anteriores arriscou-se a perder na grandiosidade o critério de qualidade –, a diferença é que hoje o faz buscando o equilíbrio entre o mercado e a arte.

O movimento de subverter a lógica mercantil para contemplar, também, o pensamento artístico desde o ano passado já modificou o desenho de forças da programação. Hoje, o caráter de evento de grande porte concorre com a possibilidade de atravessar as duas semanas do festival como uma vivência realmente transformadora. E essa é outra maneira de se conceber o que é um festival: um espaço privilegiado – concentração de corpos no tempo e na geografia – para que a experiência artística opere seu potencial de afetação e de transformação. Nesse sentido, o Festival de Curitiba 2017 foi o mais interessante dos últimos anos.

Parte disso se deve a como os contrastes estiveram evidentes. No ano passado, a abertura do Festival foi o momento de aguçar a sensibilidade com a leitura poética de Maria Bethânia em “Bethânia e as Palavras”. Espetáculo que, se não tratava frontalmente do contexto político em ebulição, devolvia à xenofobia cultivada por parte do Sul contra o Nordeste um belíssimo repertório de poesia popular brasileira colhida em rincões da região por onde o processo de colonização e exploração por portugueses começou. Neste ano, porém, a cerimônia tomou rumo estranho ao teatro, com longuíssimas falas de patrocinadores que não se furtaram nem a fazer propaganda de design de automóvel, o que demonstra no mínimo o despreparo desses departamentos de marketing para produzir discursos mais adequados à situação, considerando a “oportunidade” de “agregar valor à marca”, como diria o jargão. Mais que isso, o discurso dos artistas convidados para a abertura propagava a ideia de que o teatro seria algo apartado do “mundo lá fora”, alienação que destoa de um panorama artístico cada vez mais vibrante com as urgências do nosso tempo como temos visto recentemente – e que o próprio festival contemplou em sua curadoria.

Outra nota dissonante foi a escolha das crônicas de Nelson Rodrigues lidas por Fernanda Montenegro para o Teatro Guaíra lotado. Esse “Nelson por ele mesmo” concentra o teor mais reacionário e machista do dramaturgo, um discurso perigoso de se propagar acriticamente sobretudo em um dos ambientes mais conservadores do país no momento – a “República de Curitiba”. As palavras de Fernanda ao anunciá-lo, defendendo que importa a obra, não o pensamento do autor, pareceram não considerar que as crônicas tratam do pensamento do autor mais do que qualquer outro gênero de escrita. Como poderiam ser tomadas como apolíticas só por serem ditas num teatro?

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Fotos de Annelize Tozetto/ Festival de Curitiba

Gaymada

A resposta a essa sociedade que perpetua discursos de ódio e políticas de exclusão, como se alheia à relação entre estes e o fato de serem brasileiros alguns dos mais altos índices internacionais de assassinatos de mulheres e transexuais, veio de Belo Horizonte, com o coletivo Toda Deseo, que apresentou o “Campeonato Interdrag de Gaymada” e “Nossa Senhora (da Luz)”. Duas criações determinadas a romper com o regime de invisibilidade das travestis, transexuais e lésbicas, recusando os guetos sociais, a partir dos códigos de duas instâncias caríssimas ao status quo: a família e o esporte.

A “Gaymada” é esse jogo de excluídxs, resgatado da infância, quando o esporte torna-se espaço de segregação no ambiente escolar, onde o bullying é arma de coação e rebaixamento. Na formação dos times (como na queimada ou caçador), todos aqueles que não se encaixam no modelo de virilidade masculina ou de performance feminina ficam de fora. Daí a sacada que é criar um jogo cênico no qual “as gay, as bi, as trans e as sapatão” são as donas da bola. E do microfone. Rafael Lucas Bacelar, David Maurity, Cristal Lopes, Ronny Stevens e Thales Brener Ventura conduzem as partidas disputadas por corpos diversos, com diferentes formas e modos de expressar o masculino e o feminino, cuja medida comum é a alegria. Nessa abertura ao outro, colocam em cena “times” alinhados no ativismo artístico, como em Curitiba é a Casa Selvática, numa soma de forças.

O pensamento estético que estrutura o jogo é o da performance no que esta contém de potência de ruptura da lógica binária. Contra uma visão de mundo dividida entre homem e mulher, original e cópia, verdadeiro e falso, alta cultura e baixa cultura, mente e corpo, vida e arte como pares opositores excludentes, nos quais os primeiros termos seriam hierarquicamente superiores, a Toda Deseo faz uma intervenção urbana que é jogo e teatro, é arte e vida, não se prende a definições de gênero e sexualidade normativas nem de alta ou baixa cultura. Aliás, utilizam-se dos materiais do universo pop sem apego à originalidade. Assim, as músicas de Britney Spears, Beyoncé, Xuxa e outros ícones que não reconhecem barreiras entre a cultura hétero e a gay compõem a dramaturgia sonora como referências comuns capazes de colocar aqueles corpos diversos em movimento. O visual, as músicas, a energia trabalham para contaminar todxs ao redor com uma mesma alegria que é desejo de vida.

O recurso à dublagem, próprio do campo artístico das drag queens e travestis, mas também de um teatro contemporâneo que explora a dissociação entre vozes e corpos, identidades e sujeitos, reforça uma estética em que aquelas qualidades antes dicotômicas se confundem. Mais do que isso, deixam de interessar enquanto oposições e hierarquias, assim como o critério de “originalidade” se esvazia de sentido. O pensamento político que essa forma materializa, então, é o da recusa ao original e à veracidade como valores – na legitimação artística e na legitimação cotidiana dos corpos, que não deverão ser determinados pelo nascimento (derrubando discursos fóbicos como o de que uma mulher trans não seria “de verdade”). Portanto, a performance de gênero sai da posição de inferioridade em relação ao gênero biológico. Eis a profunda coerência entre forma e discurso, que os torna indissociáveis – embora nossa tradição lógico-discursiva insista em separá-los, como aqui nestas linhas.

O que a Toda Deseo realiza é, ao mesmo tempo, um teatro escancaradamente popular e completamente contemporâneo, sustentado por procedimentos criativos de pós-produção – quando a criação não se faz a partir de matéria-prima (“original”), mas como montagem que reinterpreta produtos culturais pré-existentes (Nicolas Bourriaud, 2009) – e pela concepção de arte como campo expandido, que extravasa para o jogo, a festa e formas cotidianas de sociabilidade. Com isso, transgride o senso comum de que o contemporâneo seria necessariamente elitista e atravessa zonas apartadas do nosso estrato social.

Outro gesto nesse sentido é a apropriação da festa como forma performática com potência crítica, o que dá o tom da “Gaymada” e aparece ao fim de “Nossa Senhora”. Em Belo Horizonte, onde o coletivo reside, este é um movimento mais amplo, visto também em ações das Bacurinhas (Calor na Bacurinha), Nina Caetano (Obscenidades da Pista) e Guilherme Moraes (Duelo de Vogue), entre outras. A ideia de que o corpo é uma festa, expressa por Eduardo Galeano em “As Palavras Andantes” contra os ditames da igreja, da ciência e da publicidade, talvez seja a melhor síntese dessa relação carnal entre a festa e a libertação do corpo das normatividades sociais opressoras. O que há de arte nisso é a invenção de outras sensibilidades, outras performances possíveis.

E outras imagens. Num regime de invisibilidade, a disputa dá-se sobretudo no imaginário. E quanto dos nossos preconceitos decorre de uma ordem social pragmática que estrangula uma parte imensa da experiência humana que é a imaginação por não atender às normas de produtividade? E mais: se não há “tempo a perder” com aquilo que não é produtivo na ordem do dia, quanto dos nossos preconceitos não virão de certas imagens não fazerem parte desse cotidiano? Quando as gays, as bi, as trans e as sapatão não são corpos visíveis à luz do dia, na rua, na praça, no trabalho, no campo esportivo, na intimidade familiar, a exclusão se retroalimenta. A Gaymada é esse espaço de visibilidade e de convívio, regido por um princípio de prazer. Na contramão dos pessimismos e paralisias diante de uma realidade social terrível e complexa, a alegria é combustível para ação e transformação desde já.

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Fotos de Leonardo Lima/ Festival de Curitiba 2017

Nossa Senhora (da Luz)

Outro espetáculo da Toda Deseo apresentado na mostra oficial do Festival de Curitiba foi “Nossa Senhora (da Luz)” – versão local de “Nossa Senhora (do Horto)”, criado como um percurso pela zona leste de Belo Horizonte, com dramaturgia de Daniel Toledo e direção de Raquel Castro. A história da decadência do estilo de vida da viúva Romina (Rafael Lucas Bacelar), confrontada pela moral libertária de sua prima Soraia (Thales Brener Ventura), arrastou um numeroso público pela paisagem urbana noturna da rua Saldanha Marinho, em Curitiba, desde a praça Santos Dumont até a frente da Catedral. A escolha do lugar já diz sobre alguns sentidos em jogo: re-habitar o centro da cidade, essa região marginalizada fora do horário comercial por onde transitam os seres também marginalizados por um modelo econômico e moral de controle determinado a produzir indivíduos em série e a estigmatizar as diferenças.

A Toda Deseo cria fissuras nesse sistema de exclusão ao convocar o público teatral para estar nessa região da cidade e ao posicionar a travesti no centro do drama dessa “família patriarcal burguesa”, debochando da hipocrisia puritana e transgredindo as imagens da tradicional família mineira. Para além de Minas Gerais, reflete tradições familiares opressoras presentes nos diversos estados brasileiros, como ninhos onde se reproduzem valores morais supostamente cristãos, onde o patriarcalismo confinou o desejo da mulher, onde a exploração de classe é naturalizada (Ju Abreu, única atriz cisgênero, faz Vera, empregada de Romina) e onde se sufocam os desejos desviantes da “norma” heterossexual.

A casa, historicamente território “feminino”, é transposta para a rua, esse terreno de domínio masculino (ainda hoje, quando o medo da violência sexual permanece), enquanto as personagens mulheres são corporificadas por atores que, por baixo dos vestidos e da maquiagem que portam, numa classificação binária enxergamos como “homens”. Isto é, corpos biologicamente masculinos, mas com performances de gênero desencaixadas da construção social do macho, reencenam a liturgia familiar. Mais do que isso: corpos trans, nos papéis tradicionais da viúva, da mãe e da filha que reproduzem modelos de opressão, subvertem os padrões repressores de gênero e sexualidade.

Quando se abre espaço para a presença das travestis na família, uma variedade de gêneros e desejos ariscos à norma também encontra possibilidade de existência. Nesse sentido, faz toda diferença a aparição de uma atriz transgênero, Cristal Lopez, numa espécie de epílogo no qual a ficção incorpora o real daquele corpo e daquela vivência. Como na “Gaymada”, o que se opera então diante dos olhos dos espectadores é a criação de imagens suprimidas da rotina da “normalidade” – essa doença da padronização dos desejos. Mais uma vez, os artistas confrontam os mecanismos de invisibilidade. Só que em “Nossa Senhora” isso se infiltra nas formas mais convencionais do teatro – a personagem, o drama, a peça de rua.

É cabível dizer, portanto, que a Toda Deseo faz um teatro de ocupação dos territórios sociais geralmente negados às travestis, alterando o regime do visível. Inscrito no campo da arte, esse trabalho não é literal (ou sociológico no sentido estrito), mas de ocupação do imaginário, dentro de uma política das imagens que reconfigura a paisagem urbana e familiar, de modo a agir esteticamente sobre a nossa constituição de sentidos e imagens do mundo e sobre os nossos afetos.

Muito da complexidade alcançada por “Nossa Senhora” vem do atrito entre as camadas semiótica e fenomenológica.  Ou seja, entre as ficções criadas por textos, figurinos, cenários etc. e a presença mesma dos corpos daqueles atores, por si só impossíveis de serem ignorados – mas também explicitados em momentos específicos da peça. A nota dissonante gerada por essa fricção entre o drama burguês das personagens, a physique du role (a “adequação” física a um papel) e a performance de gênero dos atores cria um estranhamento constante que dá forma a uma experiência estética desrepressora.

A crítica à hipocrisia do puritanismo e à crueldade que essa moral camufla guarda proximidade assumida com a “Crônica da Casa Assassinada” de Lúcio Cardoso. E, em certa medida, também com a obra para teatro de Nelson Rodrigues. Mas com a Toda Deseo não há “anjo”, uma vez que a lógica cristã do pecado, se perpetuada pela família de Romina, é alvo do deboche de Soraia e do espetáculo; e talvez nem haja “pornográfico”, porque o corpo e o sexo deixam de sê-lo quando livres do puritanismo.

A posição política escancarada é de afirmação da dignidade LGBT e de resistência contra a onda reacionária brasileira e internacional, em consonância com os demais movimentos de militância feminista e negra – embora essas sejam questões subjacentes. Alguns estereótipos em relação à mulher sobrevivem (e recordam o universo rodriguiano), em especial o elogio à “outra” como única verdadeiramente amada, o que ainda coloca a traição como antídoto ao aprisionamento no casamento sem desconstruir os alicerces dessa estruturação falocêntrica.

Em compensação, a ausência de personagens homens radicaliza a recusa à hierarquia da masculinidade.  E desfaz-se o sistema de controle comportamental pela culpa cristã, reabilitando o desejo e o prazer. Outra vez, a festa aparece para reconfigurar as relações entre os corpos, as sensações, os afetos – e celebrá-los. “Nossa Senhora” termina com pagode no boteco, misturada à vida noturna da mais numerosa classe social brasileira.

Ao colocar em convivência atores, público e os sujeitos que habitam as madrugadas do centro da cidade também nos dias em que não há teatro, as contradições e as dificuldades desse encontro de diferenças ficam ressaltadas. Assim como em uma das apresentações da “Gaymada” um dos jogadores foi atingido por uma pedrada, em um ataque homofóbico; ao fim de “Nossa Senhora”, durante a conversa entre os presentes (o Encontro de Crítica), ouviram-se falas machistas de um espectador e outra espectadora teve o braço torcido por um homem bêbado. Dois episódios que dizem do quanto são necessárias todas as ações políticas, entre elas as experiências estéticas, que sensibilizem contra as diversas formas de violência social, misoginia, transfobia, lesbofobia e homofobia.

Com esses dois trabalhos, o que chega a Curitiba é um recorte de uma cena teatral engajada que tem se fortalecido em Belo Horizonte nos últimos cinco anos. Experiências cênicas em que a poesia dos corpos e das palavras antes silenciadas se faz ouvir, explodindo a camada de invisibilidade que recobria questões que sempre foram determinantes na estruturação de sentidos e na partilha dos sensíveis da nossa vida social e artística. Dessa produção, também esteve presente no Fringe “Rosa Choque”, trabalho dirigido por Cida Falabella, com Cris Moreira e Guilherme Théo, um dos marcos de um teatro feminista gestado em Minas Gerais, sobre o qual já tratamos aqui e aqui. E pouco depois, em abril, durante a Mostra Cena Breve, o público curitibano pôde ver também “Calor na Bacurinha”, outro marco. Como esse conjunto de espetáculos transforma o teatro mineiro é questão que ainda merece uma investigação mais demorada e alguma distância temporal a favorecerá.

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Fotos de Annelize Tozetto/ Festival de Curitiba 2017

O gesto de reinterpretação do mundo por perspectivas deslocadas da centralidade masculina heteronormativa, visto nos trabalhos da Toda Deseo, move também a apropriação da narrativa mitológica em “Mata Teu Pai”, espetáculo apresentado na mostra oficial do Festival de Curitiba, em março deste ano. 

“Mata Teu Pai” traça o caminho da mitologia grega ao feminismo contemporâneo, reconectando dois pontos distantes da história mundial à luz de Medeia, personagem vista pela dramaturga Grace Passô como a encarnação da força da mulher de qualquer tempo. Desprendida das palavras com as quais Eurípedes (480-406 a. C.) eternizou o mito da feiticeira infanticida, a autora reimagina, mais de vinte e quatro séculos depois, a figura trágica da mulher traída e abandonada pelo marido, dando novos contornos às suas paixões – o amor e a fúria. “Deixa eu mesma me contar”, diz sua Medeia.

Na versão de Grace, já publicada em livro pela editora Cobogó, Medeia aparece febril, cercada de mulheres migrantes como ela. Essa condição de estrangeira tanto é um comentário que a autora imprime no texto sobre as relações políticas contemporâneas, especialmente contra o seu quinhão de xenofobia, fascismo e racismo, quanto pode ser vista como metáfora da própria condição da mulher em sociedades patriarcais, seu sentimento de inadequação e não pertencimento quando assume como naturais formas de vida que lhe são impostas.

Uma das qualidades da escrita é essa temporalidade tensionada entre o atual e o atemporal, que preserva a potência arquetípica do mito, mas a redireciona às urgências de uma sociedade específica, concreta, viva, atingida por clamores de refugiados e das lutas pelos direitos ao próprio corpo.

À sua maneira, “Mata Teu Pai” ecoa uma condição de estrangeira no próprio corpo explorada por Grace em “Vaga Carne”, sua criação anterior. Contamina-se pela mesma inquietação de perscrutar identidades, desestruturar e contrapor os modos de subordinação do sujeito – no caso, a misoginia que aprisiona as identidades femininas. Sua Medeia é a afirmação do desencaixe desses padrões, um corpo de mulher com sua força aflorada, em sua máxima insubmissão.

Parir e amar, competências associadas à constituição feminina, são celebradas no discurso dessa Medeia arquetípica como potências extremas do corpo da mulher, provas de sua força que não devem ser transformadas em obrigações que a oprimam – como as concebe a cultura da maternidade compulsória e do amor incondicional da mãe ou da esposa disposta a tudo sofrer, acolher e perdoar. “De nós esperam os filhos, de nós esperam amor e amor e amor, de nós esperam a força descomunal, o trabalho, dentro e fora de casa, de nós esperam o gozo, a beleza, até o mistério. E nós acreditamos nisso. É ridículo. Tanto que adoecemos de amor por pessoas que nem amamos”, diz Medeia. Na condição limite de desespero em que se encontra, a personagem leva tais capacidades às últimas consequências: se pode dar à luz, também pode “tirar a luz”.

Esse discurso poético-político é lapidado com ecos e repetições que revestem seu discurso com a aderência dos refrões musicais. Configura-se como uma situação de encontro teatral com uma plateia, a quem Medeia afetuosa e provocativamente interpela, atribuindo a posição de suas filhas. A teatralidade dessa proposição ressoa outras estruturas armadas por Grace ao longo de sua trajetória desde o Espanca! para produzir pela dramaturgia uma forma específica de relação palco-público. Cria, assim, uma implicação dos espectadores como agentes da mesma sociedade, compartilhando responsabilidades éticas para que, juntos, possamos “revisar” o mundo.

Eis o que a autora executa. Ao revisar a história de Medeia, revê-la por outro ângulo, a partir da perspectiva de outro tempo, outro gênero e outro corpo, as reações e ações dela se alteram. Não cabe mais o ódio à amante ou à madrasta, ao qual hoje sabemos ser produto da misoginia. É Jasão o responsável, é contra ele que Medeia se insurge com toda visceralidade de que é capaz e sem temer as contradições decorrentes de suas paixões.

É justamente nesse destemor, nesse sem limite da imaginação de uma Medeia indomável, que a escrita de Grace encontra sua força artística. É quando o gesto político se recusa a obedecer aos contornos da racionalidade ou a estar a serviço da defesa de um ideal de modo simplista ou maniqueísta que a arte pode se realizar em sua extrema potência de perturbação e disrupção. Uma afetação muito além da experiência cotidiana, das zonas por onde nossas percepções e afetos costumam trafegar.

Na montagem dirigida por Inez Viana, Medeia confronta-se com a plateia a quem dirige diretamente seu discurso. O espaço cênico se modifica pela iluminação criada por Nadja Naira, ora acendendo a luz sobre o público, e nos incluindo como parte da cena, ora disparando os refletores como bombas que fazem do palco uma região de conflito. Dão à encenação o tom de gravidade e de grandiosidade necessários ao mito, sem qualquer espetacularização que esvaziasse sua humanidade.

A atriz Débora Lamm, tantas vezes vista à vontade em personagens cômicas, sustenta a tragicidade furiosa de Medeia. Em torno dela, gravita um grupo de senhoras da sociedade local, não atrizes. No Rio de Janeiro, onde “Mata Teu Pai” estreou, eram moradoras da região da Gamboa. Em Curitiba, outras senhoras – e dois senhores – atenderam à chamada pública. A presença delas povoa o palco com imagens femininas de uma faixa etária com baixa representatividade social mas alta significação para os discursos de empoderamento e emancipação da mulher que perpassam a peça. Carregam, ainda, a latência de um coro (de inspiração grega) ainda um tanto indefinido em sua função e na relação com a protagonista.

Nos dois momentos em que as interações se intensificam, na forma de um beijo e do amamentar, criam-se algumas das cenas mais belas do espetáculo, como coágulos de sentidos e sentimentos de processamento não óbvio, e as discrepâncias de idades, corpos e imagens geram um curto-circuito em nossas pré-concepções. Entretanto, caso sejam essas senhoras representantes das vizinhas refugiadas de Medeia – a síria, a paulista, a haitiana citadas no seu discurso –, tais singularidades ganhariam expressividade se marcadas em suas aparências, em vez da uniformidade dos tons de pele da imigração europeia que constituiu Curitiba.

Trabalhar com não atores, como as senhoras do coro, tem sido um recurso recorrente no teatro contemporâneo, como desenvolvimento de pesquisas que exploram as tensões entre a presença e a representação, o real e o ficcional da cena ou, mais amplamente, a vida e a arte. Esses corpos que não passaram pelos processos de formação de ator, não praticaram previamente nem assimilaram técnicas de voz, presença, jogo e atuação, não estão habituados com a posição de evidência em cena, eles compensam tais inabilidades com suas imagens e personalidades singulares e com uma carga de vivência, de história pessoal, que transparece nos modos de agir. Suas presenças tendem a conferir um efeito de realidade à encenação, e o que não é menos sensível ao público, de proximidade, familiaridade e carisma, que pode ser trabalhado a favor da dramaturgia.

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Fotos de Annelize Tozetto/ Festival de Curitiba 2017

Blank

É carisma o trunfo de “Blank”, jogo cênico concebido pelo iraniano Nassim Soleimanpour (“Coelho Branco, Coelho Vermelho”). O dramaturgo comanda a peça com as indicações para a encenação: a cada apresentação, um ator ou atriz diferente deve ser chamado a atuar sem conhecer o texto, que só chegará às suas mãos já diante do público. Ele ou ela deve seguir as indicações escritas nas páginas impressas, preenchendo as lacunas com ajuda da plateia. Basicamente, a orientação é para que se construam – em diferentes graus de superficialidade – biografias do autor, do ator e de um espectador escolhido.

Na apresentação realizada por Du Moscovis, a simpatia do ator – e a simpatia prévia do público por ele – funcionou para que conquistasse a plateia rapidamente. É interessante observar que a seleção de atores e atrizes famosos por seus trabalhos na televisão para participar de um espetáculo de experimentação formal é um modo inteligente de suprir uma demanda da coordenação do festival por artistas com apelo de público. A escolha, entretanto, esbarra nos próprios limites de “Blank”. E estes são bem anteriores às variações de carisma ou desempenho do ator surpreendido pelo texto ou dos espectadores convidados a participar.

Embora aparente ser um exercício democrático de criação coletiva em que o público torna-se coautor, o jogo proposto é completamente dominado por Soleimanpour. Não há espaço, tempo, ambiente ou dinâmica para que outros agentes, sejam ator ou espectadores, realmente coloquem-se como criadores, porque estão alheios aos propósitos maiores que conduzem a dramaturgia. São como o gerente da fábrica e os operadores do maquinário, respondem a comandos de um sistema maior do qual estão alienados. Na apresentação vista, o resultado foi uma profusão de boas tiradas vindas de uma plateia aquecida, até que a dramaturgia fosse perdendo potência ao longo do preenchimento de suas lacunas.

Desta vez, o efeito de realidade da espectadora chamada ao palco, no lugar de atuante, e o carisma dos envolvidos não bastaram para levar o jogo além das ligeirezas, aquelas primeiras respostas que podem trazer alguns insights, mas carecem de reflexão para ultrapassar o lugar comum. Talvez em um teatro menor, onde a proximidade entre palco e plateia permitisse a instauração de um ambiente criativo, fosse possível outra abordagem. Mas isso dependeria de testar o quanto a dramaturgia de Soleimanpour é capaz de se abrir àqueles que a operam, em vez de manipulá-los.

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Fotos de Lina Sumizono/ Festival de Curitiba 2017

Amadores

“Amadores” é o primeiro espetáculo em que a Cia. Hiato, dirigida por Leonardo Moreira, trabalha extensivamente com cidadãos não atores, escolhidos a partir de anúncios de jornais e de audições. A cena é armada como uma espécie de show de talentos dividido em rounds durante os quais esse grupo de pessoas apresenta-se, seja mostrando uma habilidade (cantar, dançar, tocar um instrumento, lutar etc.), seja relatando a si mesmas.

A Hiato avança sua investigação sobre as relações entre o real e o ficcional depois de absorver histórias pessoais dos atores na construção dramatúrgica da peça “O Jardim” (2011) , cruzar relatos pessoais e ficcionais em depoimentos em primeira pessoa, que assumiam o caráter de testemunhos, no conjunto de solos “Ficção” (2012) e colapsar os limites da ficção de encontro às suas balizas éticas em “2 Ficções” (2014). No “solo” de Thiago Amaral, aliás, ele convidava ao palco o pai para reparar uma relação cindida pela homofobia. Aí já estava a semente de um atuante não ator assumir uma posição de autoexposição numa narrativa de superação, como vemos em “Amadores”.

O novo espetáculo do grupo paulista desestabiliza a balança ao colocar em cena meia dúzia de atores e dezenas de amadores, cuja característica amorosa, denotada no título, reverte-se em um tipo de carisma próprio da identificação com figuras que não escondem suas falhas, seus limites nem seus desejos, enquanto dão o melhor de si para impressionarem os outros – nós. As escolhas do diretor miraram os candidatos com habilidades artísticas a exibir e, especialmente, aqueles com histórias de superação – o critério “dramatúrgico”. Mas valorizaram também a simpatia e a singularidade de corpos variados, alguns com inerente qualidade de presença ou competência para manejar simbologias, tempo, espaço e a atenção alheia em suas narrativas, a ponto de ganharem protagonismo – ou seja, o critério “cênico”.

Essas performances amadoras sustentam-se na crença de que qualquer vida é passível de ser contada como ficção. Mais do que isso, o processo de dar sentido à vida, em nossas sociedades ocidentais ao menos, é sempre uma prática narrativa regida por elementos ficcionais. É o que permite, por exemplo, a construção do “personagem” de uma reportagem de jornalismo literário, que empresta da literatura os recursos ficcionais para fazer da irredutibilidade que é uma pessoa algo cabível numa história. Ou no caso da narrativa em primeira pessoa, quando somos nós mesmos a relatar-nos por procedimentos ficcionais, destacando sentimentos e ações em busca de alguma coerência, algum propósito para a existência, como fazem os amadores do espetáculo.

Entretanto, o relato de si mesmo é sempre parcial e preserva pontos cegos, “assombrado por algo para o qual não posso conceber uma história definitiva”, como observa a filósofa Judith Butler (2015, p. 55). Depende da perspectiva desse “eu” que narra sempre submetido aos limites perceptivos, cognitivos, geográficos e históricos de sua própria vivência. É, portanto, um relato cingido pela insuficiência, posterior aos acontecimentos que fazem possível o “eu” e sua história se inscreverem na linguagem, de modo que cabe a esse “eu” recuperar, reconstruir e fabular origens e circunstâncias que não pode conhecer. “Na construção da história, crio-me em novas formas, instituindo um ‘eu’ narrativo que se sobrepõe ao ‘eu’ cuja vida passada procuro contar”, diz Butler (2015, idem). Essa opacidade do eu em relação a si mesmo, ou sua “transparência parcial”, evidencia a relacionalidade que vincula o sujeito à linguagem (na qual se concebe), à alteridade (o eu só se constitui diante do outro) e ao mundo social (com suas normas que nos precedem).

De algum modo, esse limite do relato pessoal paira como questão sobre “Amadores”, na tensão entre o que os não atores ambicionam mostrar de si e o que os espectadores são capazes de ver. Essa diferença é ressaltada pela condução dramatúrgica, que inscreve a autoexposição desses “personagens” de si mesmos na linguagem hollywoodianos da história de autosuperação. O filme “Rocky”, de Sylvester Stallone, é convocado como exemplo das narrativas com as quais o sistema cultural nos impregna e que modelarão nossa compreensão do mundo, das biografias e dos indivíduos, para dar sentido e coerência às experiências belas, terríveis e triviais de uma vida e que de outro modo não se unificariam num corpo em constante transformação.

Ao assumir criticamente os contornos de um roteiro de superação e refletir sobre os efeitos dessas formas narrativas ventiladas pela indústria cultural na nossa compreensão de mundo – ao mesmo tempo em que o acúmulo de apresentações provoca nos atuantes amadores a percepção crescente sobre os seus processos de elaboração e enunciação de suas próprias histórias, desfazendo ingenuidades por trás da ideia de “depoimento verdadeiro” -, a dramaturgia favorece uma tomada de consciência sobre as narrativas que se cria (que criamos) para justificar uma identidade e um destino. E, ao atrair nosso olhar para o palco, nos redireciona à vida mesma.

O modo como um recorte social diverso é colocado em cena e desperta nosso interesse antropológico em “Amadores” faz lembrar “100% São Paulo”, peça do coletivo suíço-alemão Rimini Protokol apresentada na MITsp 2016, mas com abordagem verticalmente distinta. Se lá eram os números que regiam o show – as pessoas sobre o palco correspondiam às estatísticas do censo da cidade e respondiam a questionários ao vivo, submetidas a um dispositivo que não lhes concedia espaço ou tempo para expressão de singularidades -, aqui são as vivências singulares que se mostram, rompendo as pré-concepções que as primeiras impressões fornecem. Não só aquelas associadas à visão de mundo reacionária, mas – escapando dos maniqueísmos – também contra preconceitos que possamos ter diante da mulher burguesa, por exemplo, que descama sua história trágica de abortos involuntários sucessivos e sua força não adivinhável por quem julgue o estilo da bolsa que ela carrega.

Assim como “Rocky”, outras referências pop quase onipresentes na constituição dos habitantes deste pedaço do planeta, como Xuxa, são empregadas para conseguir mais que a adesão, a identificação do público em relação a essas narrativas impostas massivamente sobre uma sociedade. São os discursos que nos vestem, nos absorvem na vida cotidiana, e impelem a refletir sobre quais outras formas de compreensão do ser no mundo seriam possíveis. (Algo semelhante ao que “Blank” almeja ao lançar a atenção sobre a escrita biográfica, sem contudo construir relações formais e simbólicas suficientes para deflagar.)

Como na “Gaymada”, a alegria dos amadores está a serviço de uma reflexão que nos liberte de preconcepções sobre os outros e sobre nós mesmos. Há um celebrar da vida feito com a consciência crítica e o deboche de quem insiste em desfrutar, não se abater nem se submeter. Ainda que seja por influência da narrativa do lutador. Assim, a Hiato atinge um ponto excepcional na investigação contemporânea sobre as relações entre real e ficção, em que já não interessa tanto estabelecer a realidade no teatro, mas desvelar a ficção na vida.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. Martins Fontes, 2009.

BUTLER, Judith. Relatar a Si Mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.