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Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia

Fiac segue na inquietude de seu tempo

Foto: Leonardo Pastor
Espetáculo Nós, do Grupo Galpão abriu o festival baiano de 2016. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

“Para onde ir?”, debate-se o Grupo Galpão, num movimento interno de autopurgação, que também provoca pequenos abalos sísmicos pelo país com o espetáculo Nós. Os atores vibram sobre convivência em grupo, diferenças, tolerâncias e afetos alçados ao limite. Mas também pulsam nas cordas da ambivalência, de um ethos desnudado frente ao público e que revela as contradições do mundo contemporâneo.

A peça Nós é a 23ª produção da trupe mineira em 34 anos de existência. O trabalho dirigido por Marcio Abreu – encenador da Companhia Brasileira de Teatro – com dramaturgia construída coletivamente e texto assinado por Eduardo Moreira e pelo diretor, traduz inquietações dos seus integrantes, os atores Eduardo Moreira, Antonio Edson, Chico Pelúcio, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara.

Já no início da peça, a trupe chama para a ideia de comunhão, quando Teuda Bara entoa “comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar”, versos de Lama, de Paulo Marques e Ailce Chaves, um dos sambas-canções mais celebrados no repertório de fossa, gravado por Linda Rodrigues, Gilda Valença (em forma de fado), Maria Bethânia e Núbia Lafayette.

Essa ideia de confraria se faz presente na preparação da sopa, na frase cênica de Teuda Bara “É pra refrescar!”, que salienta a importância do encontro. As conversas entrecortadas aceleram para outros caminhos, de repetições, perguntas, coreografias. Para conjecturar sobre o espaço da partilha, da confraternização, de estar junto, da vontade da maioria, do respeito à minoria. A encenação Nós também rasga os tecidos da violência que contagiou o mundo e toca na crise da esquerda brasileira.

Numa cena emblemática do espetáculo, a personagem de Teuda Bara é escorraçada, expulsa de forma agressiva, à base de sopapos e pontapés, apesar de sua resistência. É possível associar a cena ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff, mesmo que tenha sido criada antes do impeachment. É um momento angustiante que traça um arco da política do micro ao macro.

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Eduardo Moreira e Teuda Bara. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

A encruzilhada que a pergunta inicial suscita, reforçada pela expulsão de Teuda Bara, me incitou a seguir reflexões de pensadores para tentar entender questões caras cravadas em nossa carne pela eletrizante performance do grupo. Enxergo espelhada na cena uma crítica da ética indolor, na perspectiva do filósofo francês Gilles Lipovetsky, que vem na esteira do esgotamento dos ideais e do declínio da moral. Com o self interest do sujeito exaltado por Lipovetsky o dever é diminuído às rés do chão nessa sociedade pós-dever, sem obrigações difíceis.

Contra o minimalismo ético de Lipovetsky (fincado na exaltação dos desejos, do ego, do individualismo hedonista e narcisista), pulsam na cena lampejos do que o teórico da “modernidade líquida”, o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman chama de “ser-para”, de que existe uma responsabilidade para com o outro, da alteridade.

Então, mesmo diante desse cenário movediço de incerteza e de relativismo moral, de ligações e de desligamentos, em que as pessoas se constroem e desmancham-se, há uma corrente que defende que não somos meros objetos a serem descartados. A construção da democracia no jogo cotidiano se faz também do atrito entre figuras diferentes. A peça Nós pergunta antes de tudo terminar: como recomeçar ou começar algo novo? Alguma esperança na seara dos afetos, com o espelho refletindo o espectador antes do chamamento para a balada.

O espetáculo Nós abriu o Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia – Fiac, realizado de 25 a 30 de outubro de 2016, em Salvador, e que nesse ano reforçou a urgência de tomar posições críticas diante da realidade. Uma edição que assumiu a política no seu sentido mais franco e humano, a micropolítica de todo dia comprometida com o coletivo, com aquilo que nos é comum, nas palavras de Felipe Assis, um dos coordenadores gerais do Festival, ao lado de Ricardo Libório.

Ricardo Libório e Felipe Assis, curadores do Fiac. Foto: Leonardo Pastor
Ricardo Libório e Felipe Assis, curadores do Fiac. Foto: Leonardo Pastor
Provocação do Fiac. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Provocação do Fiac. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

Como posicionar discurso e ação, quebrando regras para criar outros jogos e novos modos de (re)existir em tempos de crise?, como convocar a participação coletiva?, foram disparadores da nona edição do Fiac Bahia. A proposta é de engajamento direto, em detrimento a esquemas de representação. Uma convocação à presença; ou seja, um convite para “meter mão”, tanto no sentido figurado, quanto literal.

Em conversa com o Felipe Assis, ele ressaltou a importância dos trabalhos que se apresentam como resultado, mas também as atividades de formação. A quebra da hierarquia foi um procedimento para valorizar também o processo. “Porque os resultados podem servir a uma lógica de mercado de produto. Mas a gente sabe que é o tempo contínuo de elaboração que também se conecta o processo da prática artística. E que nos últimos tempos se tem valorizado o lugar do processo em detrimento muitas vezes do resultado”. Por isso que, para ele, uma atitude, uma postura política pode ser em alguns casos mais relevante que o resultado estético muito bem-acabado e facilmente comercializável.

Aplicação variada de prática artísticas na curadoria como risco, presença, múltiplas tradições, narrativas fragmentadas, participação estiveram na mira do festival. E em 2016 o Fiac deu relevo à participação como princípio ativo. Para isso contou com um grupo gestor e curador ampliado, composta por 16 mãos que construíram a identidade do festival – coordenações geral, administrativa, técnica, logística e de atividades formativas, além da assessoria jurídica e de comunicação. A equipe fez com que essas ideias pulsassem em todas as ações do festival, das questões políticas e da coletividade.

Ao longo de seis dias, a pergunta que norteou as ações do Fiac Bahia foi como reinventar a participação coletiva diante de tantas rupturas? As respostas vieram de várias formas, principalmente nas tentativas de fortalecer vínculos comuns, entre artistas, produtores, público, sociedade. Tarefa difícil, mas engendrada nas microrrelações de empoderamento.

O festival se tornou “uma rede que se retroalimenta e estabelece vínculos com outras iniciativas interessadas mais em perguntas do que em respostas”.  Muitas ações foram feitas a partir dessa decisão: de criação e intervenção visual e algumas oficinas, ampliação do Seminário Internacional de Curadoria e Mediação em Artes Cênicas.

As peças de divulgação reforçam a proposta de horizontalidade. O público e os participantes do Fiac Bahia foram convidados a personalizar cartazes e programas nos ateliês abertos de serigrafia, carimbo, estêncil e xilogravura montados no Pátio do Goethe-Institut. A confecção desse material incorpora produção industrial e artesanal e foi possível a partir da parceria da TANTO Criações Compartilhadas com a Sociedade DA Prensa. O festival incentivou a “meterem mão” nesse processo e customizar ao mesmo tempo que provoca reflexões sobre autoria, gesto artístico, ser artista e ser público.

Festa em Casa: Casa Preta. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Casa Preta. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Ocupação Coaty. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Ocupação Coaty. Foto: Leonardo Pastor

O festival se espalhou por 12 espaços de Salvador. Com exceção do Teatro Castro Alves, com capacidade para mais de mil pessoas (mas que na realidade funcionou no palco para público mais concentrado), os outros espaços estão voltados para plateias de até 200 lugares, incentivando um convívio mais próximo da experiência cênica. Foram utilizados Teatro e Pátio do Goethe-Institut, e Teatro Vila Velha, Teatro Martim Gonçalves, Espaço Cultural Barroquinha, Teatro Martim Gonçalves, Teatro Experimental, Teatro Gregório de Mattos, Casarão Barabadá, Casa Preta, Coaty e Oliveiras.

Os sentidos de convivência, de se apropriar da cidade em seus casarões carregados de história, ganharam atitudes nos encontros noturnos do Fiac, com as “Festas em Casa”. Na rota de dialogar com os projetos de ocupação cultural de Salvador receberam artistas e público para contato mais próximo. Um impulso para essa reinvenção do coletivo, da possibilidade de compartilhamentos com instigação festiva. Bandas e Djs de vozes e ritmos variados animaram o Casarão Barabadá, Ocupação Coaty, Oliveiras, Casa Preta.

O exercício do pensamento crítico teve atuação da DocumentaCena, com a participação das casas Questão de Crítica (RJ), Satisfeita, Yolanda (PE)? e Horizonte da Cena (BH), e de outros profissionais como Antropositivo (SP), Agora (RS), Barril (BA) e Precisa-se Público (RJ).

A programação reuniu um leque de espetáculos posicionados de forma crítica frente às questões da contemporaneidade. Nessa 9ª edição, o Fiac quis sacudir o “espectador” para assumir um papel mais ativo, na cena ou fora dela. Chacoalhou.

Seguem comentários sobre outros espetáculos que assisti durante o festival:

O BOBO

Caio Rodrigo mistura Yorick, da peça Hamlet, e a figura do bobo de Rei Lear, ambas de William Shakespeare, para criar um personagem que dispara sua metralhadora giratória, contra tudo e todos. E ele está no meio. O espetáculo O Bobo, do Teatro Terceira Margem, se arvora a dizer verdades antes de um suicídio anunciado. O ator está em cena vestido apenas por uma cueca preta. A ironia que sai da sua boca e de seus gestos se esparrama pelo teatro e ele convoca trechos de obras de Albert Camus, Maquiavel, Caetano Veloso, fragmentos de ensaios filosóficos para reforçar sua munição acusatória.

O intérprete joga com as teorias teatrais e envereda em seu discurso pelas ruelas do ofício do ator, questionando filigranas e trocando de máscaras para defender seus pontos de vista.

Caio Rodrigo anuncia a si próprio como codiretor rejeitado duas vezes na pós-graduação, músico amador e maconheiro, figurinista que não teve trabalho, ator/criador meio frustrado e aspirante a professor da UFBA. Ficção com fundo de verdade?

Criação conjunta de Caio com o diretor teatral Daniel Guerra, O Bobo é bom de provocações metateatrais. Dividida em quadros, a peça circula por várias poéticas e questiona o conceito da presença e a relação entre artista e público. Algumas instigam, outras nem tanto, como a “para quem se faz teatro?”, que se torna uma questão sem grande ressonância diante de todo o esforço de criar um mosaico inteligente e desafiador de pensamento cênico performado. A trilha sonora de Juracy do Amor (Beef), explora texturas, riffs de guitarra ao vivo e potencializa o clima do programa.

ENDOGENIAS

O título Endogenias traduz o processo de valorização dos próprios intérpretes do Balé Teatro Castro Alves como criadores da companhia baiana de dança contemporânea. O espetáculo é formado por três coreografias distintas (Generxs, de Leandro de Oliveira; Youkali, de Konstanze Mello; e Dê Lírios, de Tutto Gomes), apresentadas com a plateia sentada no próprio palco da sala principal.

Imagens e contextos do cotidiano são inspiradores da coreografia Generxs que cria um ambiente de embate para discutir o gênero, a identidade de gênero, a sexualidade, a relação de poder entre masculino e feminino, o machismo. A obra de Leandro de Oliveira produz potentes movimentos e fluxos de imagens nas articulações das cenas sobre a criminalização e o preconceito; a tolerância relativa; e a celebração. Em determinado momento da peça coreográfica, pessoas do público recebem bolinhas e são incentivadas a jogar em um personagem que assume sua homossexualidade. Em seguida, outro bailarino, montado em uma sandália plataforma, pega o microfone e parte para discutir com a plateia sobre o procedimento, questiona a ação e faz um discurso contra o preconceito.

Tudo é permitido sem censura ou julgamentos em Youkali, da coreógrafa Konstanze Mello. É um quadro bem sensual. O bar dançante se transforma em lugar utópico onde os seres podem realizar seus desejos. Lá não existe conflito, discriminação, nem qualquer tipo de censura. A peça é livremente inspirada na obra Cabaré Youkali, do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (1898-1956), e do também alemão, o compositor Kurt Weill (1900-1950). Sugere uma caverna pós-moderna para onde se pode fugir da realidade opressiva e perversa.

Dê Lírios, de Tutto Gomes, trata das desilusões amorosas e chega ao palco com um sotaque nordestino e as influências norte-americanas e europeias. Carrega um tom nostálgico reforçado pela música Chorando e cantando de Geraldo Azevedo. A coreografia também faz referências indiretas ao Movimento Armorial lançado pelo escritor paraibano Ariano Suassuna (1927-1914).

Mônica Santana questiona a invisibilidade, os estereótipos, o silenciamento e a hipersexualização da mulher negra
Mônica Santana questiona a invisibilidade, os estereótipos e a hipersexualização da mulher negra. Foto: Leonardo Pastor

ISTO NÃO É UMA MULATA – SOLO PERFORMÁTICO

No teaser do espetáculo Isto não é uma mulata, a atriz Mônica Santana queima uma edição de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, entre outros livros e revistas. Ela defende o procedimento como ação política contra a lógica da democracia racial. Na peça, a atriz cita a famosa frase “branca pra casar, preta pra trabalhar e mulata para fornicar”. É contra esse tipo de discurso que a intérprete levanta a performance, da invenção da mulher negra no Brasil.

Antes de começar a sessão, enquanto o público aguardava o chamado, uma moça circulava a limpar o chão. Achei estranho. Mas isso já fazia parte da performance, da demonstração de invisibilidade dos papeis subalternos.

O espetáculo se alinha com o processo de muitas mulheres negras e da própria atriz. Dos procedimentos que adotou para ser notada, para parecer branca. Do autoengano de que não é tão preta assim à consciência da beleza e forças negras, que não admite o exotismo, a animalização nem a hipersexualização.

A performance ironiza de forma potente a imagem da mulher negra nas artes e na mídia. Isto Não é Uma Mulata ataca clichês na representação da mulher negra. E é bastante contundente ao criticar os papeis redutores do trabalho doméstico, da sensualidade da passista carnavalesca e do corpo exuberante.

Como exercício de teatro político, a peça também cumpre a função de falar de afetividade e solidão, da feminilidade estilhaçada, de racismo. Enquanto prática política. Isto Não É Uma Mulata leva para o centro da discussão a invisibilidade, a visibilidade reduzida, os estereótipos, e o silenciamento. Num tom empoderado, agressivo até, de quem está pronta para o combate.

Antígona Recortada, do Grupo Bartolomeu de Depoimentos
Antígona Recortada, do Grupo Bartolomeu de Depoimentos. Foto: Leonardo Pastor /Divulgação

ANTÍGONA RECORTADA: CANTOS QUE CONTAM SOBRE POUSOS PÁSSAROS

Os clássicos são assim: têm fôlego para aceitar demandas contemporâneas, para afinar urgências políticas e crescer em poéticas. Ocorre com Antígona recortada: cantos que contam sobre pousos pássaros, montagem do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, que traz o mito grego de Antígona para os tempos atuais. A tragédia de Sófocles serve de base para mostrar meninas da periferia, que organizam uma ação contra o extermínio de seus irmãos pela ação do tráfico.

Já faz 13 anos que o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos surgiu com o intuito de traçar fluxos entre a cultura hip-hop com o teatro épico. O grupo é formado por Claudia Schapira, Eugênio Lima, Luaa Gabanini e Roberta Estrela D’Alva.

No texto original de Sófocles, Antígona defende o direito de enterrar o seu irmão Polinices com todas as honras fúnebres. Isso vai de encontro às ordens de Creonte (a figura do Estado), que decidiu que somente o outro filho de Édipo, Etéocles é merecedor de tais honras, pois foi morto em combate pela defesa Tebas, cuja sucessão do trono foi motivo da batalha entre os irmãos.

Antígona recortada pega do original grego a discussão do direito de as periferias sepultarem dignamente seus mortos exterminados pelo tráfico e com isso se insurge contra os chefes.

As atrizes-MCs Luaa Gabanini e Roberta Estrela D’Alva expressam com o corpo e a voz o trabalho de recolher os corpos dos meninos para promover o justo descanso. A palavra pronunciada ritmicamente (“spoken word”) pelas duas intérpretes é cercada, trancada e comentada nas batidas sintetizadas e misturadas pelo DJ Eugênio Lima, provocando uma potente experiência sensorial. E nessa mistura sonora entram diversos sons, falas – como as de Juscelino Kubitschek e Lula – e músicas de vários matizes, do MPB ao funk.

Com texto e direção de Claudia Schapira, a peça mira a violência exercida nas periferias e favelas, mas remete para as reivindicações de injustiças praticadas na ilegalidade ou ainda sob a capa da legalidade.

Artistas falam de um lugar que não existe mais
Artistas falam de um lugar que não existe mais. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Sanja Mitrović, junto à tela, e Vladimir Aleksić, deitado no chão. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Sanja Mitrović, junto à tela, e Vladimir Aleksić, deitado no chão. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

NÃO ME ENVERGONHO DO MEU PASSADO COMUNISTA

Sanja Mitrović (1978) e Vladimir Aleksić (1977) nasceram em Zrenjanin, na República Socialista Federativa da Iugoslávia, atual Sérvia. Ela trabalha atualmente entre Bruxelas e Amsterdã. Ele voltou à Sérvia para reconstruir sua vida. Amigos de infância, eles comungam da mesma memória de um país que não existe mais. A partir dessas lembranças pessoais, do passado socialista, do sentido de comunidade e da história do cinema iugoslavo, eles ergueram o espetáculo Não me envergonho do meu passado Comunista (I Am Not Ashamed of My Communist Past).

O sentimento de perda desses dois artistas é mostrado na peça numa mistura melancólica do auge ao colapso das empresas socialistas e o avanço do conservadorismo. Sanja e Vladimir traçam um diálogo entre cinema e teatro e utilizam uma série de estratégias – de comentários em áudio, sincronização simultânea para criar uma cena física e elucidar / embaralhar o que é fictício ao entrelaçar suas experiências de vida com as dos filmes, que formam um mosaico da história do território iugoslavo.

Partindo da autobiografia da dupla, a peça expõe as transformações geográficas e afetivas impostas pelas guerras, o pós-socialismo, o neoliberalismo. A devastação da cidade natal dos artistas, que era uma potência econômica, atingiu a vida pessoal de cada um deles. Com arquivos de filmes que refletem uma multiplicidade de posições políticas e culturais, eles projetam as contradições da sociedade em que viveram.

Os testemunhos reais estão repletos de humor e de crítica ao capitalismo desenfreado, dos perigos do nacionalismo, do racismo e do ódio, da iconografia da destruição do Leste Europeu, e as identidades europeias numa época de grandes migrações globais.

Ator Eduardo Okamoto. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Ator Eduardo Okamoto. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

OE

Um poema para a cena que sintetiza 28 imagens oscilantes entre a tradução do sonho e memória, vivência e imaginação, palavras e silêncios. O espetáculo Oe tem essa pretensão grandiosa, apesar de sua aparência simples. Traz um corpo altamente emotivo em gestos e expressões, mesmo as mais suaves. Esse solo com dramaturgia inspirada na obra do escritor japonês Kenzaburo Oe – vencedor do Nobel de Literatura de 1994, mais especificamente no livro Jovens de um novo tempo, despertai! trabalha com urgências e impossibilidades. Ao identificar a ameaça da morte, um homem escreve para o seu filho primogênito, que possui  deficiência intelectual, um livro contendo a definição de todas as coisas existentes no mundo.

O ator Eduardo Okamoto encara a vertigem terrível de um pai dividido entre amor e culpa em relação ao seu primogênito, um menino que sofre de uma deficiência intelectual congênita e se supõe eternamente dependente.

O diretor Marcio Aurelio utiliza poucos recursos: cenário reduzido a alguns objetos, uma movimentação desenhada e breves oscilações na voz. A dramaturgia de Cássio Pires ergue episódios que não seguem uma ordem lógica ou temporal.

O filho só desenvolveu a fala depois dos seis anos de idade, aprendendo com o som dos pássaros. O menino aprendeu a tocar piano e, hoje, é compositor respeitado no Japão e fora dele.

O espetáculo propõe um chamado para novas formas de cidadania, baseadas na responsabilidade intransferível de cada ser sobre suas ações: “[há uma] conexão existente entre a violência em escala mundial, representada por artefatos nucleares, e a violência existente no interior de um único ser humano”, escreve Kenzaburo Oe.

Para dar vida a tão profundo personagem, o ator Eduardo Okamoto realizou um estágio em 2014, no Kazuo Ohno Dance Studio, localizado no Japão, transportando sensações aos movimentos do corpo tirados do Butoh, dança japonesa criada por Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno.

Novos sujeitos de uma nova política

"Isso não é uma mulata" (Mônica Santana). Foto: Leonardo Pastor
“Isto não é uma mulata” (Mônica Santana). Foto: Leonardo Pastor

Crítica a partir dos espetáculos “Nós” (Grupo Galpão/MG), “Isto Não é Uma Mulata” (Mônica Santana/BA), “Antígona Recortada” (Núcleo Bartolomeu de Depoimentos/SP), “Mamba Negra” (Diego Alcântara/BA), “Trilogia Antropofágica Ato 1: Permanecer” e “Trilogia Antropofágica Ato 2: Resistir” (Perro Rabioso/Uruguai), “Villa + Discurso” (Teatro Playa/Chile), “I Am Not Ashamed of My Communist Past” (Sanja Mitrovic e Vladimir Aleksic/Sérvia) e “Amadores” (Cia. Hiato/SP), por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

FIAC Bahia 2016

 

I

Há quem diga e acredite que tempos de crise política e social, como esses que vivemos agora, são também oportunidades de amadurecimento e, quem sabe, transformação. Enquanto alguns sujeitos apostam suas fichas, energias e atenções à macropolítica que diariamente ocupa as ruas e capas de jornais, outros, por sua vez, encontram na micropolítica do cotidiano – ou, quem sabe, das artes – a possibilidade de interferir com os próprios corpos e discursos sobre a realidade e o imaginário social que permanentemente construímos juntos.

Segundo o cientista político indiano Ranabir Samaddar, com quem nos encontramos ao longo deste texto, é característico aos nossos tempos, sobretudo no que se costuma chamar de sul-global, a emergência de sujeitos políticos que abandonam a atuação por tortuosas vias institucionais e especializadas para agirem por conta própria, tornando-se, assim, representantes de si mesmos. Em vez de alienados escravos de uma política guiada por outros, tais sujeitos tornariam-se, assim, autores da própria política, trazendo, em suas ações, presenças e discursos, miragens, desejos, vias de escape e atos de resistência em direção a formas de existência que escapam aos discursos hegemônicos, e são afirmadas, a partir de então, como igualmente possíveis.   

Declaradamente interessada em participar desse processo, a curadoria do 9º Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia (FIAC), realizado em Salvador, entre os dias 25 e 31 de outubro de 2016, adotou o lema “meta a mão” como eixo político e ofereceu ao público um panorama bastante diverso de criações contemporâneas que, não por acaso, pressupõem presença, participação e engajamento como base das relações entre artistas e público, deixando quase sempre de lado as ideias de ilusão e representação que em muitos imaginários ainda se associam diretamente à experiência do espectador das artes cênicas.

Reunindo trabalhos relacionados aos campos do teatro, da dança e da performance, o 9º FIAC ultrapassa em muito a ideia de um festival como mera mostra de espetáculos, constituindo-se, ao mesmo tempo, como um amplo circuito de ações e práticas de convivência, colaboração e participação, seja dentro ou fora das salas de teatro. Trata-se, nesse sentido, de um festival cuja programação prevê também sucessivas e variadas situações para o encontro, tais quais ateliês coletivos, conversas entre artistas e espectadores e até mesmo dinâmicas relacionadas ao sistema político das artes cênicas, além de festas realizadas em diferentes espaços públicos e semipúblicos da capital baiana.

Seja antes, durante ou depois dos espetáculos, o que se percebe ao longo do festival são múltiplas situações que ressaltam a dimensão coletiva da existência humana e a permanente possibilidade de troca com o outro, abrindo variados caminhos à experimentação de novas políticas de encontros e relações entre os múltiplos sujeitos que integram o sistema da arte.

II

Pesquisador de temas relacionados à justiça e aos direitos humanos, Samaddar defende que esses novos sujeitos de uma nova política podem ser entendidos, em um primeiro nível, como cidadãos militantes. Podem ser entendidos, portanto, como aqueles que lutam em barricadas, engrossam manifestações, reúnem massas, eventualmente organizam partidos e lideram, a partir de diferentes estratégias, ataques aos poderes instituídos.

Pois parece, em certo sentido, ter sido esse o movimento realizado pelo Grupo Galpão (MG) durante a criação do espetáculo “Nós”, que abriu a programação do FIAC 2016. Geralmente lembrados pela adaptação de conhecidos nomes da clássica literatura dramática europeia, assim como por figurinos, imagens e acontecimentos de força espetacular, os integrantes do Grupo Galpão trazem, em “Nós”, reverberações de seu próprio cotidiano, repleto de pequenas tensões e profundas reflexões fundadas na política do dia a dia, as quais se articulam em uma dramaturgia original que leva assinatura de Eduardo Moreira e Márcio Abreu.

Despidas de personagens ou de um enredo que os leve a outro lugar que não o próprio acontecimento teatral, as figuras com quem nos encontramos em “Nós” nos convidam a epifanias existenciais, breves apocalipses e acidentes sob medida, revelando faíscas que, em tempos como os nossos, entre nós, não custam a surgir. Do alto de suas histórias de vida e de anos de convivência, os atores e atrizes que regem o espetáculo constituem-se como presenças que progressivamente tensionam a si mesmas e ao outro, e assim revelam ainda tensões em relação ao ambiente humano e social que recriamos – ou deixamos de recriar – a cada instante.

Propondo aos seus atores-personagens o desafio da coexistência em um contexto de nítidas diferenças, “Nós” nos acolhe pelo universo social que reconhecemos ter em comum com seus intérpretes, assim como nos provoca pelos contrastes e impasses que sucessivamente leva à cena. Entre excelências e precariedades, entre explosões e contenções, nos vemos ante a presenças que se tensionam a partir de repetições, reiterações de discurso e, sobretudo, da insistente e desafiadora presença diante do outro.

Se, numa primeira mirada, o espetáculo ressalta evidentes individualidades dentro do grupo, o que se constitui, ao longo do tempo, parece ser, de fato, uma espécie de presença coletiva. Percebemos, aos poucos, inclusive, que talvez também façamos parte deste coletivo, à medida em que as questões que lhes tocam, vez ou outra, igualmente parecem nos tocar. Transitando quase sempre entre os limites do indivíduo e as demandas do coletivo, convivemos, em “Nós“, com perguntas que se perdem no ar, respostas que se encontram aos poucos e artistas que buscam em cena, diante do público, afirmar a própria presença e a própria voz.

III

Enquanto “Nós” talvez se apresente como uma guinada do tradicional Grupo Galpão em direção à complexa realidade social brasileira e aos dilemas políticos que ao nosso povo se impõem, outras criações trazem recortes e perspectivas mais específicas em relação à nossa sociedade. Seguindo a conversa com Sammadar, nos aproximamos, então, de outra percepção possível sobre o sujeito político: aquele que está “sujeitado” a uma certa configuração política, mas, consciente da própria sujeição, busca submeter a política à sua própria visão, tornando-se, de algum modo, autor dessa política.

Em “Isto Não é Uma Mulata”, trabalho concebido e realizado pela artista Mônica Santana (BA), o que se tem é uma nítida inversão da perspectiva sob a qual geralmente se narra a história colonial e contemporânea do Brasil. A partir de recursos performáticos, dramáticos e narrativos, o espetáculo revê a participação da mulher negra na construção da história e, sobretudo, do imaginário social brasileiro. Recusando a condição de objeto, assim como os infindáveis estereótipos negativos que há muito contribuem para a manutenção de uma situação de subalternidade, a artista reivindica e afirma a mulher negra como sujeito legítimo de uma história a ser urgentemente recontada e reescrita.

Para tanto, ao longo do espetáculo, a atriz empresta seu corpo a diferentes imagens e presenças comumente associadas à mulher negra em nossa sociedade. Se, de início, nos deparamos com a invisibilidade de uma faxineira uniformizada, logo somos surpreendidos por algumas imagens embranquecidas desse mesmo corpo, fazendo referência a um fenômeno que, por muito tempo, tem condicionado a inserção de artistas negros em espaços de poder historicamente reservado aos brancos.

Ainda que uma camada crítica e extremamente irônica acompanhe boa parte do espetáculo, sobretudo no que se refere à apresentação desses estereótipos a serem negados e combatidos, há também momentos em que a atriz traz a própria voz à cena, rompendo, sem meias palavras, com um processo de silenciamento e objetificação iniciado séculos atrás.

Realizado pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (SP), o espetáculo “Antígona Recortada”, por sua vez, encontra seu esteio na linguagem do rap, que empresta à cena sua força política e contestadora. Tendo o mito grego de Antígona como eixo a ser apropriado e, de modo bastante contundente, aproximado à realidade brasileira, a montagem se volta às situações que remetem a diferentes periferias urbanas do país, nas quais não raro se constitui uma espécie de sub-humanidade privada de toda sorte de direitos e assistência estatal.

O espetáculo chama atenção, assim, ao fato de que nesses contextos, tal como na mítica história de Antígona, muitas vezes a irmãs, irmãos, pais, filhos e cônjuges, ainda é negado o direito de enterrar seus mortos. Em vez de se submeter a essa política, no entanto, a criação do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos a converte em uma espécie de concerto cênico no qual tais condições de vida são contestadas e, como é de costume no universo do rap, transfiguradas em poesia.    

Acrescentando um outro espectro à série de relações de exclusão e subalternidade que fundam a lógica colonial, tal qual o machismo e as relações centro-periferia, a montagem “Mamba Negra”, realizada por Diego Ancântara (BA), se volta a aspectos da cultura e da religiosidade africanas, igualmente relegadas a um lugar marginal em nossa sociedade.

Em cena, no entanto, o que se vê é a criação de um universo bastante próprio, no qual se combinam ancestralidade e apocalipse, lixo e luxo, passado e futuro. Chamando atenção às múltiplas ancestralidades que nos constituem, assim como à permanente possibilidade de reinvenção dessas ancestralidades, a montagem propõe ao público um significativo deslocamento de pontos de vista e campos de referência, fazendo-nos experimentar, por alguns instantes, uma realidade bastante distinta do quadro hegemônico que geralmente encontramos do lado de fora do teatro.

A partir de um uso não convencional do espaço cênico, no qual atores e público são dispostos em relação de grande proximidade, “Mamba negra” constitui-se como um espetáculo essencialmente performático no qual elementos da cultura africana e afro-brasileira ganham um tratamento contemporâneo, estabelecendo diálogos com discussões de gênero, entre outros temas e estéticas insurgentes.  Em vez de construir uma linha reta, pura e essencial em direção a um futuro cristalizado e pré-conhecido, a montagem parece defender uma lógica mais afeita a contaminações e “zigue-zagues”, apostando na imaginação radical da arte como esboço de um futuro emergente, ainda por ser construído.

IV

Mais adiante, por sua vez, Samaddar nos esclarece que o conceito de sujeito político não necessariamente se refere a militantes individuais, mas também a fenômenos coletivos, geralmente associado à ideia de multidão. Tal sujeito, em sua visão, poderia ser entendido tanto como um produto de regimes autoritários quanto de democracias, a partir de pontos-cegos que, em cada contexto, não tardam a se revelar. De um modo ou outro, tal processo de subjetivação certamente não costuma se dar no âmbito das instituições formais, como o governo, por exemplo, mas, sim, em meio a uma política que passa a se estender também ao povo, constituindo-o como sujeito capaz de alterar a própria história.

Criada a partir de uma interlocução do grupo Perro Rabioso (Uruguai) com o artista brasileiro Marcelo Evelin, a montagem “Trilogia Antropofágica Ato 1: Permanecer” nos apresenta uma obra sem atores, convocando o próprio público a ocupar uma plataforma vibratória coberta por carvão. Como se formássemos uma rede temporária de voluntários, somos convidados, no entanto, a nos alternar, um de cada vez, sobre a plataforma que recorrentemente se agita, não se sabe se devido a movimentos tectônicos ancestrais ou insurgências sociais contemporâneas. Como se habitássemos um deserto coberto por carvão, talvez o espaço residual de algum projeto de exploração mineral, somos convocados a permanecer de pé, afirmar a própria presença e o próprio desejo de permanência em meio a forças externas que continuamente nos expulsam para fora e nos impulsionam a bater em retirada.

Amparado em linguagens como a performance e a dança contemporânea, o espetáculo “Trilogia Antropofágica Ato 2: Resistir”, levado à cena pelo mesmo coletivo, se dá em meio a escombros de um cenário que simultaneamente remete a processos de construção e demolição. Juntos, nesse contexto um tanto insólito, os cinco performers atribuem aos próprios corpos uma vibração que, outra vez, não se sabe exatamente de onde vem – mas da qual,  ao mesmo tempo, não se pode negar a existência. Sozinhos neste cenário apocalíptico, os performers atuam como força coletiva, encontrando quase sempre no outro o amparo por vezes necessário aos terrenos instáveis que habitamos, dentro e fora do teatro. Nesse fluxo, os intérpretes despojam-se, mais adiante, das próprias roupas, assim como de outros traços e atitudes que remetem ao que costumamos entender como civilização.

Também se propõem a uma espécie de revisão civilizatória os artistas sérvios Sanja Mitrovic e Vladimir Aleksic (Sérvia), autores e atores do espetáculo “I Am Not Ashamed of My Communist Past”. Baseada em ações e diálogos estabelecidos entre os dois a partir de um extenso material videográfico referente ao período de consolidação da Iugoslávia, após a 2ª Guerra Mundial, a montagem igualmente recusa a lógica da representação, assumindo uma perspectiva assumidamente performática e autobiográfica. Despojados de personagens, os atores reveem as próprias trajetórias pessoais e profissionais, chamando atenção a infância e juventude vividas em meio ao regime comunista, assim como à condição “estrangeira” que os acompanha desde a fragmentação do país em que cresceram.

Ao longo do caminho, a conversa entre amigos por vezes se converte em debates históricos, políticos e econômicos que se estendem também a discussões sobre  autonomia e subalternização, levantando questões certamente pertinentes também a artistas, espectadores e cidadãos de outras origens. Quase duas décadas após o fim do comunismo no país onde cresceram, os artistas nos expõem à sua força e atratividade, recorrendo, para isso, às próprias experiências de vida. Diante de um contexto marcado pela consolidação de uma imagem fútil, corrompida e imoral sobre o Ocidente, “I Am Not Ashamed of My Communist Past” nos apresenta um retrato afetivo do famigerado mundo comunista, defendendo-o, em certo sentido, como legítima fonte de imaginação social.

O passado igualmente serve como ponto de partida ao díptico “Villa + Discurso”, realizado pelo Teatro Playa (Chile). Enquanto a primeira peça, “Villa”, emprega recursos dramáticos para se voltar às dificuldades de dar forma a memórias e espaços relacionados ao longo período ditatorial enfrentado pelo país, a segunda, “Discurso”, explora, a partir da reprodução de um pronunciamento oficial, questões relacionadas à trajetória da ex-presidenta chilena Michelle Bachelet, vítima direta e indireta da ditadura de Pinochet.

Assim como às atrizes, parece caber a cada um de nós, espectadores, decidir em que transformaremos experiências que nos tocam, em maior ou menor medida, como indivíduo e, também, como povo. Entre as alternativas levantadas ao longo do espetáculo, contudo, estão tanto uma alienação permeada por boas doses de cinismo quanto certa exacerbação dos traumas, ali associadas a sentimentos como obsessão e vingança. Se somos autores de nossas próprias histórias e agentes de nossa própria política, assumimos, então, a responsabilidade de selecionar, examinar e reconstruir, quase sempre sob novas perspectivas, as narrativas que nos explicam como indivíduos e também como povo.

V

Talvez tenha surgido dessa inquietação o movimento realizado pela Cia. Hiato (SP), convidada a encerrar o FIAC 2016 com o espetáculo “Amadores”. Após realizar, nos espetáculos “Ficção“ e “Duas Ficções”, exercícios de fabulação a partir das histórias de vida de seus integrantes, o grupo se abre, agora, a trajetórias de vida que expandem em muito, sobretudo do ponto de vista social, o leque de experiências, temáticas e universos até então abordados e compartilhados em seus trabalhos.

Incorporando ao elenco de “Amadores” corpos, presenças e memórias cujas origens remontam a diferentes gerações, classes sociais, ocupações, etnias e visões de mundo, o grupo constrói, em cena, um panorama que muito nos diz sobre a cidade de São Paulo e, em certa medida, sobre o próprio país em que vivemos. Ao reunir em cena 18 atores, dentre os quais apenas quatro atuam profissionalmente e fazem parte da companhia,  a montagem convoca os espectadores a enxergar, no palco, fragmentos de uma realidade social muito diversa e, por outro lado, muito parecida com o que experimentamos fora do teatro.   

Reunidos, em cena, pelo interesse em participar de uma montagem teatral profissional, assim como por trajetórias de vida que os colocam na condição de “artistas amadores”, os atores não profissionais que participam do espetáculo parecem se constituir como sujeitos políticos à medida em que desestabilizam hierarquias relacionadas tanto ao universo das artes cênicas quando à própria sociedade, como a conhecemos. Estruturado a partir de performances artísticas individuais e coletivas, combinadas a depoimentos que remetem a contrastantes experiências e momentos de vida, “Amadores” conduz o público – e também seus intérpretes – a entrar em contato com um amplo e complexo leque de emoções e vivências, ali trazidas, em matéria e epistemologia, pelos próprios sujeitos que as experimentaram.

São certamente muitos e muito variados, como se pode ver, os caminhos para o surgimento e a ação de novos sujeitos políticos, seja dentro ou fora do campo das artes. Na visão de nosso companheiro Samaddar, agir politicamente seria, essencialmente, agir em nome da liberdade, enfrentando, às vezes, normas e códigos legais, assim como regras políticas que vigoram em diferentes dimensões do ser, do saber e do poder. Seja por meio de evidentes rebeliões ou ainda de subversões mais ou menos discretas, o pesquisador encontra no desafio a soberanias exclusivistas e a relações de subalternidade alguns dos caminhos próprios à conformação de novos sujeitos políticos e de novas políticas, sejam elas referentes ao funcionamento da sociedade, à criação de uma obra artística ou, ainda, à concepção de um festival de teatro.   


Referência bibliográfica

SAMADDAR, Ranabir. Emergence of the political subject (New Delhi: Sage, 2009).

Crítica presente no FIAC 2016

Debate após o espetáculo "Isto não é uma mulata", de Mônica Santana (BA). Foto: Leonardo Pastor.
Conversa após o espetáculo “Isto não é uma mulata”, de Mônica Santana (BA). Foto: Leonardo Pastor.

Realizada durante a programação do 9º Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia (FIAC 2016), entre os dias 25 e 30 de outubro de 2016, a atividade Crítica Presente teve como intenção provocar conversas entre espectadores, artistas e críticos logo após os espetáculos do festival, prolongando, assim, o seu tempo de fruição. Ao envolver todos num ambiente em que o exercício da crítica fosse o ponto de partida, os encontros fomentaram a partilha de diferentes visões e experiências a partir de cada trabalho assistido, desdobrando as conversas em questões pertinentes à prática da crítica e suas reverberações.

Após o término do FIAC 2016, os críticos participantes da atividade –  Daniel Toledo (Horizonte da Cena), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?) e Mariana Barcelos (Questão de Crítica) – publicarão, em seus respectivos sites e revistas, textos críticos sobre a experiência vivida no festival. Entre os espetáculos que receberam a Crítica Presente, figuram criações como “Isto não é uma mulata” (BA), “Antígona Recortada” (SP), “Oe” (SP), “Villa + Discurso” (Chile) e “Trilogia Antropofágica – Ato 2: Resistir” (Uruguai).