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Mostra Internacional de Teatro de São Paulo

Na pele do outro

Foto: Janosh Abel

Crítica a partir do espetáculo Black Off, de Ntando Cele, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MITsp 2017

Há muitas hipóteses que envolvem as origens do racismo no Brasil e no mundo. Geralmente associadas, em nossa cultura, à experiência da escravidão durante a colonização do país, tais origens podem remeter, no entanto, não a quinhentos anos, mas a algo entre seis e doze mil anos atrás. Foi nesse intervalo, segundo algumas hipóteses, que se deu o chamado processo de diferenciação racial: a partir de uma humanidade até então predominantemente negra, que ocupava pelo menos a África, a Europa, o Oriente Médio e a Ásia Meridional, teriam surgido os primeiros povos brancos e amarelos. Pouco mais tarde, possivelmente devido a disputas territoriais, surgiriam as primeiras narrativas que pressupunham algum tipo de superioridade genética de um fenótipo sobre outro, desembocando em um pensamento que racializou a humanidade e tem servido, em diferentes contextos e momentos históricos, como justificativa tácita para a manutenção de opressoras hierarquias raciais.

O combate institucional ao racismo, por outro lado, tem origens mais recentes e conhecidas. O Brasil, por exemplo, é apontado como o quarto país do mundo a enfrentá-lo a partir de políticas de Estado, intensificadas somente a parte de 2003, com o ensino da história africana nas escolas. Antes de nós, somente os Estados Unidos, durante as décadas de 1960 e 1970, Cuba, a partir de 1959, e África do Sul, a partir de 1992, haviam lançado reformas referentes à própria ordem sociorracial.

Levado à cena pela artista sul-africana Ntando Cele, o espetáculo Black Off talvez nos ajude a enxergar o pensamento racializador como construção presente em cada um de nós, assim como a problematizar atitudes cotidianas que nos impedem de superar esse pensamento. Inicialmente trajada e maquiada como a loiríssima Bianca White, Ntando usa e abusa, com propriedade, do seu lugar de fala, expondo ao público uma suposta ingenuidade branca cuja violência contra o outro ganha, em cena, ares de ironia, mas somente devido à pele negra que temporariamente se esconde por trás de muita maquiagem. A partir dessa suposta ingenuidade, Bianca reproduz sucessivos clichês relacionados a preconceitos raciais dirigidos, ali, tanto a negros quanto a brancos. Intencionalmente ou não, suas palavras muitas vezes provocam o riso da plateia, revelando algo da trivialização e banalização do racismo entre muitos de nós.

Por meio desse procedimento, no entanto, o que se alcança parece ser uma percepção nítida sobre o conteúdo extremamente frágil que, desde tempos imemoriais, têm sustentado o pensamento racista. À medida que tais clichês se acumulam cena afora, estendendo-se em muitos momentos às relações estabelecidas entre a artista e os músicos, assim como entre a artista e os integrantes do público, parece esvaziar-se por completo qualquer sentido associado ao pensamento racista, afirmando-o como uma construção essencialmente histórica que em muito limita nossas visões e relações com o outro, assim como, de parte a parte, nossa própria experiência social. “O que significa ser um artista negro?”, questiona, sem resposta.

Como traços evidentemente racistas de nossas relações e experiências sociais, Ntando chama atenção, por exemplo, ao discurso e à prática da filantropia, cuja presença é maciça em território brasileiro, mas certamente ainda maior quando se pensa no continente africano. Muitas vezes midiatizada, quase sempre revestida de valores como benevolência e solidariedade, a prática filantrópica, historicamente branca, é revelada pela artista a partir de seu caráter eminentemente conservador, uma vez que reforça relações de dependência, de subalternização e até mesmo de cooptação do outro e de sua visão de mundo.

A esse respeito, também os incensados programas de ajuda a crianças e famílias africanas são problematizados em cena, convertendo-se num possível complemento à xenofobia que continuamente ganha espaço em nosso dias. “Os negros devem ficar na África”, escutamos, à certa altura, a partir de um raciocínio que culpabiliza os povos historicamente oprimidos por reivindicarem, agora, a partir de diferentes estratégias e contextos, algum tipo de justiça e igualdade social.

Mais adiante, já despojada da alva personagem que nos recebe, a artista oferece ao público outras possíveis imagens de si mesma. Deixando de lado a aparente delicadeza de Bianca White e seu estilo stand-up comedy, Ntando atribui à própria presença outras qualidades, desempenhando uma série de ações performativas de grande simplicidade e potência, provocando, sem pressa, nos espectadores, reflexões, impressões, afetos e, quem sabe, atitudes em relação à humanidade que nos une e que precisa resistir e se impor a tantos séculos, quem sabe milênios, regidos e condicionados por pensamentos racistas.

Enquanto, com ares de princesa, Bianca White profere impropérios nas entrelinhas de sua aparente delicadeza e doçura, a voz de Ntando Cele passeia, no decorrer do espetáculo, por diferentes atmosferas. Entre tons que remetem a própria ancestralidade e ações silenciosas que muito nos dizem, a artista arrisca-se ainda em um pequeno concerto punk, quem sabe afrofuturista, no qual a aparente agressividade das palavras talvez nada tenha a ver com qualquer pulso de violência, mas, sim, com a urgência de fazer-se ouvir e reverberar sobre a pele e, principalmente, sobre a consciência histórica e social do outro.

Quilombos abertos

Foto: Nereu Jr.

Crítica a partir do espetáculo A Missão: 12 lições de descolonização em legítima defesa, do coletivo Legítima Defesa, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/ DocumentaCena)

MITsp 2017

Além de terem servido como refúgios e pontos de resistência contra a escravidão que, por mais de três séculos, com amparo da lei, vigorou em território brasileiro, os muitos quilombos criados ao longo de toda nossa história colonial tinham e seguem tendo como importantes funções resgatar a cosmovisão africana, assim como os laços familiares frequentemente perdidos durante o processo de escravização da população negra. Pois parece ser a um quilombo reinventado e extremamente contemporâneo que vemos pela fresta das cortinas do teatro, enquanto nos acomodamos para assistir ao espetáculo A Missão em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa, realizado pelo grupo Legítima Defesa.

Pela fresta da cortina, assistimos a um corpo coletivo que continuamente se move, sem sinais de exaustão, rumo a uma missão que, veremos mais adiante, também se constitui como causa essencialmente coletiva. Respiração consciente e pulso constante atestam a vida e a vitalidade dos corpos negros que vemos ali, os quais transitam com segurança e liberdade entre diferentes registros de atuação e presença, compondo, camada por camada, um espetáculo com ares de sarau que se propõe a visitar crítica e propositivamente a peça teatral A Missão, escrita em 1979 pelo dramaturgo alemão Heiner Müller.

Trazendo como contexto histórico a experiência colonial jamaicana, tanto a peça de Müller quanto a montagem do grupo Legítima Defesa rapidamente nos sugerem paralelos com a história brasileira, ao tratar de uma negritude que se constitui em condição de subalternidade, longe das fronteiras do continente africano e sob a tutela legal de impérios europeus. Seja no Brasil ou na Jamaica, ocupamos todos lugares de subalternidade dentro de um sistema-mundo colonial fundado no século XVI, justamente a partir da invasão da América pelos impérios da Península Ibérica.

É a partir de uma composição entre múltiplas linguagens artísticas, no entanto, que temos acesso à obra de Müller e às perspectivas do coletivo sobre essa mesma narrativa, ali entreposta a canções, coreografias, relatos documentais dos atores e citações de importantes e diversificados nomes da resistência negra ante o contexto colonial, tais quais o político guineense Amílcar Cabral, a intelectual e ativista estadunidense Angela Davis e a escritora brasileira Carolina Maria de Jesus.

Diante de um jogo cênico de regras bem marcadas, no qual diferentes atores e atrizes se alternam na interpretação dos três personagens que conduzem a trama, vemos reforçada a dimensão coletiva das vozes que testemunhamos em cena. No melhor estilo microfone aberto, diferentes vozes ocupam o palco. Se o rap muitas vezes dá forma à narrativa e às vozes que a integram, também há espaço para outras expressividades musicais e visuais da cultura negra, deixando evidente que a condição de subalternidade e permanente necessidade de resistência muitas vezes, ainda que contraditoriamente, serviu – e ainda serve – como estímulo ao desenvolvimento de culturas híbridas, complexas e, pelos mais diversos caminhos, conectadas à própria ancestralidade e à noção de coletividade.

Enquanto acompanhamos os desdobramentos da possível revolução jamaicana, somos convidados também a rever outras revoluções. Ao apresentar-nos o “Teatro da Revolução Branca”, a montagem chama atenção aos limites da Revolução Francesa e de outras tantas que, sobretudo ao longo da história moderna, jamais alteraram substancialmente a ordem colonial que organiza boa parte do mundo em que vivemos. Conforme atesta a literatura decolonial e a própria realidade social que experimentamos no Brasil, não existe uma humanidade moderna sem uma sub-humanidade moderna.

Aos poucos percebemos, no entanto, que, ao contrário do que se poderia pensar, uma efetiva revolução não pode se dar pelo consumo, pela ascensão social ou mera inserção em um sistema colonial pré-definido, mas, certamente, na reinvenção desse sistema. Percebemos que a revolução pode se dar pelo acesso ao conhecimento, à ancestralidade, à capacidade crítica e à construção de novas narrativas. Pode se dar, quem sabe, pela capacidade de se “aquilombar”, de se organizar como força coletiva, criativa e propositiva de resistência e re-existência. Parece ser a partir do quilombo e de sua racionalidade, então, que talvez possamos alcançar, efetivamente, os prometidos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

Enquanto o patrimonialismo exacerbado da sociedade brasileira parece impedir que tais valores se concretizem para além das fronteiras dos quilombos, a lógica interna desses espaços, hoje desdobrados em outros, parece ser diferente. Apesar de a ancestralidade africana predominar na maioria dos quilombos, alguns estudos genéticos têm revelado haver ali também elementos de origem europeia e indígena, mostrando a histórica capacidade de integração e solidariedade do povo negro.

Como sul-americanos, legítimos integrantes do sul-global, talvez devêssemos todos nos aquilombar. Pois parece haver, nesse e em outros quilombos, espaço para negros que são negros e negros que não necessariamente o são. E talvez o que nos una seja o desejo de efetiva mudança. Por isso levemos essa carta aonde formos, e passemos a palavra adiante.

Voar e saber cair

Para-que-o-céu-não-caia

Texto sobre o espetáculo Para Que o Céu Não Caia, da Lia Rodrigues Companhia de Dança, escrito por Renan Ji (Questão de Crítica / DocumentaCena )

*OBSERVAÇÃO DO AUTOR: Este texto contém passagens que antecipam certos procedimentos fundamentais do espetáculo. Recomenda-se lê-lo, se possível, depois da apresentação.

MITsp 2017

O espaço é uma sala negra, câmara escura. O céu, portanto, descortina horizontes indefinidos, fechados, foscos. O título do trabalho de Lia Rodrigues e companhia nos adverte: o céu arrisca desabar sobre nossas cabeças. Alguém talvez dissesse: protejamo-nos. No entanto, essa não é a direção de Para Que o Céu Não Caia. O movimento do espetáculo é de expansão, de ocupação do espaço, de infiltração e porosidade entre dançarinos e plateia. A energia circula entre esses agentes para formar um bloco convivial que volte a inflar a cúpula do céu sufocante, enfrentando-a.

Em outras palavras, um pouco menos metafóricas: laços são estabelecidos entre nós e os bailarinos, numa relação energética que resiste ao enclausuramento. Para tanto, é necessário quebrar as barreiras civilizacionais entre os respectivos primitivismos (nosso e deles): os performers nos encaram e devolvem nosso olhar de estranhamento, demovendo nossa postura poluída, tóxica e ambientalmente tosca de bípedes racionalizados. Fazem-no contemplando a nós com o aroma telúrico do café, revestidos da farinha/poeira dos tempos. Eles nos confrontam e revelam nossa inadaptação ao primordial.

Em seguida, gritos e lamentos, balbucios chorosos, apontam para o caos no seio das coisas. Há algo que precisa ser esconjurado, posto para fora, expandido. Com os dançarinos abrindo um grande círculo entre os participantes, o espetáculo fornece uma única diretriz clara e verbal (em meio a uma dramaturgia que busca o contato entre corpos sempre de maneira muito sutil): devemos nos sentar. Creio que estar em contato com o chão, nesse momento, é indispensável: sentimos mais forte o cheiro do café; acompanhamos os rasantes dos bailarinos sobre nossas cabeças; sentimos na base da coluna o ritmo das passadas fortes no solo.

É notável como a coreografia ritual é menos um código de gestos e mais uma pulsação coletiva. A batida dos pés no chão dita o ritmo das sequências de movimento e une corpos numa mesma vibração hipnótica. Mas nem por isso o espetáculo se torna menos dança devido à forte influência ritual. Na ondulação do corpo, há um misto insondável de transe, sensualidade e técnica. Os bailarinos de Lia Rodrigues batem firmemente os pés no chão, jogam com os quadris e geram espaço com braçadas rápidas e precisas. O dionisismo dos gritos, contorções e arcos histéricos são entremeados por saltos e quedas calculados, rodopios finamente delineados de torso e braços, mãos e gestos conduzidos com leveza efêmera, renovando o vocabulário da dança contemporânea.

Além disso, é interessante perceber como a orientação desses movimentos revela menos uma ascensão e mais uma entrega ao solo. A expansão a que me referi anteriormente diz respeito mais a uma horizontalidade, a um preenchimento simbólico e energético da base física das coisas: paradoxalmente, ao céu que periga cair responde-se com pisadas fortes e mãos no chão, com o fortalecimento do corpo junto à terra, com saltos aéreos que sempre terminam no reencontro com a materialidade. Há movimentos súbitos que parecem clamar por uma verticalização espiritual, na direção dos céus. Porém, voar antes de tudo significa saber cair, reencontrar e fortalecer as raízes terrenas, que suportarão a abóboda do céu.

Suportar o céu, assim, é menos um esforço de ascensão (tão típico da metafísica ocidental) e mais um pouso na superfície, revelando a sabedoria da alma selvagem que todos esquecemos: curvar-se em direção à terra, fundá-la e torná-la densa para impedir a queda do cosmo. De forma análoga, é necessário então sair e retornar ao corpo, projetá-lo para os ares, mas trabalhá-lo na musculatura. É disso que se trata a última etapa do rito-dança: a cor amarela da cúrcuma é semeada no assoalho, substituindo o obscuro do café. Pequenos pontos de sol são semeados na terra e nos corpos, refletindo e alimentando a luminosidade celeste. É o solo rico que garante um céu aberto; o corpo aberto e deitado – enraizado – ao chão é aquele que mais se volta para o céu e se dedica a ele.

Por fim, caberia dizer mais uma coisa sobre a horizontalidade do universo de Para Que o Céu Não Caia. A expansão horizontal é um dado que se revela uma necessidade social e afetiva, pertinente à maneira como nos relacionamos com o outro, com o mundo e com o espaço. Verticalizados, olhamos com inveja para os mais altos e com desdém para os mais baixos. Horizontalizados, podemos desfazer essas dicotomias e nos deslocarmos em fricção e solidariedade com o outro. O espetáculo da Lia Rodrigues Companhia de Dança parece nos fazer um convite: olhe nos olhos, perceba, sente-se e se suje. Cheire e espirre por causa dos pós – o espirro não deixa de ser uma forma de esconjuro do corpo. Deitados e estendidos, resistiremos. É necessário voltar ao solo, ao enraizamento, à prática concreta, para salvarmos um céu carregado de maus agouros.

Entre o ceticismo e a vertigem

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Crítica do espetáculo Revolução em Pixels, de Rabih Mroué, por Renan Ji (Questão de Crítica/ Documentacena)

MITsp 2017
Imagens de um mundo em guerra povoam os recônditos da internet. O real está ali, inquestionável, não tanto por ser algo factual, mas porque corpos são alvejados e comunidades dizimadas. Acredito que a morte não nos permite a leviandade do ceticismo: o elo de humanidade, a sensibilidade diante de uma cena de morte, pressupõe que a encaremos como verdade, mesmo que somente a princípio, mesmo que por um breve momento. Passado o choque, contudo, nada impede que surja a questão de como se chega à representação da morte. De fato, vídeos e fotos possibilitam a construção de narrativas diversas sobre o real. Mortes podem ser justificadas, repudiadas e simuladas, distorcidas pela manipulação da imagem e pela condução da narrativa. Rabih Mroué nos mostra como as montagens do governo sírio, as cenas de violência crua e ritual dos grupos terroristas islâmicos e os vídeos amadores de rebeldes civis possuem certos códigos de representação. Se cada qual revela uma maneira diferente de narrar o conflito, estamos inevitavelmente em meio a uma disputa de narrativas. E se estas são veiculadas na internet, nos recônditos da dark web, da deep web ou simplesmente do Google, o conflito é ainda maior: imagens de guerra são disseminadas na zona de guerrilha em que a internet se tornou, disputando pela primazia de dizer a verdade que nos choca.

Sobre a guerra na Síria, Rabih Mroué deseja saber o que realmente aconteceu ali. Não importa que o ceticismo nos alerte da impossibilidade de recuperar uma reprodução do real. A intenção e a forma de olhar é o que conta. Mroué parece entender que as narrativas disponíveis nos afetam de maneiras diferenciadas, e que, portanto, não são todas equivalentes. A mise-en-scène dos jornais institucionais pró-Bashar al-Assad postulam uma estabilidade política que se traduz em enquadramentos nítidos, filmagens panorâmicas e ângulos calculados; já os vídeos de rebeldes civis partem da precariedade pixelada do equipamento amador, arma pessoal de captura do real em oposição ao arsenal técnico das grandes narrativas. Entre essas duas visões de mundo, Mroué adere decididamente à perspectiva do rebelde, submetendo-se ao fascínio pelos rastros digitais que ele imortaliza depois de um upload.

Ainda que podendo ser pensada esteticamente, em comparação, por exemplo, ao movimento Dogma 95, é a partir da técnica simplória da representação de um rebelde sírio que Mroué acessa um outro lado do conflito civil. O tripé mecânico que sustenta as grandes narrativas cinematográficas dos meios de comunicação encobre uma verdade que somente aparece no olhar daquele que sustenta o seu equipamento com duas pernas. Há algo de inequivocamente verdadeiro, orgânico, na imagem captada por um celular suportado por pernas hesitantes, braços trêmulos, junto ao olho injetado que contempla o olho do algoz atirador. Double shooting: gravar aquele que nos “grava” com o cano da arma. E gravar de forma a que o olhar do espectador se sobreponha àquele da câmera, colocando-se na mira do disparo.

A possibilidade de double shooting redobra nossa consternação diante da imagem da morte, porque, de forma inaudita, aproxima o espectador da fenda indizível que se instaura entre o viver e o morrer, a partir da experiência do cinegrafista. De forma paradoxal, essa aproximação se torna tão aterradora por se estabelecer em via negativa, por meio de uma ausência: não há possibilidade de captar esse pequeno e fatal momento entre estar vivo e morto. O que resta são fragmentos sonoros de agonia; a tela preta após a queda do pequeno equipamento de vídeo no instante em que o corpo é alvejado. Prova dessa impossibilidade talvez seja a vertigem nauseante diante da possibilidade de encarar o rosto do algoz, quando Rabih Mroué, buscando a identidade do atirador de um dos vídeos, aumenta em zoom o frame que o enquadra. Mroué aproxima a imagem até a desfiguração; porém, a mancha matizada desperta a profunda inquietude com a possibilidade de olhar aquele que nos mira com o fuzil. Nada mais que a vertigem diante do possível rosto da morte.

A revolução do título da palestra-performance de Rabih Mroué talvez esteja precisamente no atravessamento afetivo que os vídeos de double shooting dos rebeldes sírios proporcionam ao espectador. Esses vídeos revolucionariam porque, de acordo com o artista, gritam em meio ao tiroteio propagado por um Estado antes bélico que social. A partir desses pequenos filmes, há a esperança de que seus autores tenham sobrevivido, pois é inegável que eles foram jogados na rede por alguém. Se não, ao menos, a cada repetição deles, pode-se reencenar constantemente seus atos de resistência fatal. Reviver e morrer, resistir. Cabe lembrar que afirmei anteriormente que essas imagens eram dotadas de “verdade orgânica”. Mas o certo é que nossa atenção e sensibilidade se voltam a esses vídeos por causa da narrativa e dos enquadramentos possibilitados pela técnica e pelo olhar proposto em Revolução em Pixels. É o olhar de Rabih Mroué que nos ajuda a refigurar tais rastros digitais e recuperá-los de sua obscuridade. A importância do artista nesse processo, portanto, é cabal. Nesse sentido, a revolução em pixels passa pelo crivo da arte. A arte ganha guerras? Com a arte, não há somente um rever cenas; nos vídeos de que fala Rabih Mroué, revivemos e morremos. O artista nos ensina novamente a viver e a morrer. E a não esquecer. A revolução passa por aí.

Em busca de novos monumentos

Foto: Jeva Griskjane
Foto: Jeva Griskjane

Crítica a partir do espetáculo Tão Pouco Tempo, de Rabih Mroué, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MitSP 2017

Logo de início, parece importante ressaltar, somos informados através de legendas de que estaremos diante de personagens e situações ficcionais. Com direção de Rabih Mroué e atuação de Lina Majdalanie, o espetáculo com ares de palestra-performance Tão Pouco Tempo se volta a capítulos recentes da historiografia libanesa para, através de um personagem fictício, problematizar a criação de mártires e heróis, questionando a personalização que, seja no Oriente Médio, na América ou em outros cantos do mundo, costuma caracterizar as narrativas que construímos para compreender e explicar as histórias da qual fazemos parte.

A partir de uma encenação relativamente simples e decididamente não espetacularizada, dentro da qual recursos cênicos como geração de imagens, operação de som e até mesmo contrarregragem estão sempre visíveis e são operados pela própria performer, acessamos um ambiente que aos poucos se configura como uma espécie de laboratório de revelação fotográfica. Paralelamente a narrativa que remete a trajetória de Deeb Al-Asmar, nosso mártir fictício, o que se constitui neste laboratório, no entanto, é um processo inverso ao que conhecemos: ao serem mergulhadas em um tanque de água, os retratos manipulados pela artista, que trazem imagens de si mesma em diferentes momentos da vida, progressivamente se apagam, gerando certa atmosfera de incerteza em relação aos documentos e memórias que constituem nossas histórias pessoais e nacionais.

Iniciada tom distanciado, sereno e por vezes irônico, a narrativa que nos apresenta ao personagem central dessa ficção ganha, pouco a pouco, ares de realismo fantástico. Por meio de um radical exercício artístico de imaginação social, a dramaturgia concentra, na curiosa trajetória de Deeb, seguidas reviravoltas que vez ou outra remetem a histórias de mártires que conhecemos, ou ainda a alguma das versões que desdobram cada uma dessas histórias. Revisitamos, ao longo dessa narrativa, imagens conhecidas como a multidão que vai ao funeral, a grande imprensa e sua exagerada cobertura, a família que se mobiliza para organizar um dossiê sobre o morto e a praça que ganha uma estátua com sua fisionomia. “Um mártir que seja capaz de unir as pessoas”, escutamos, a certa altura.

Instalada no centro da cidade, entretanto, a estátua que homenageia o mártir pouco a pouco revela-se, também, como uma narrativa ficcional, a exemplo de tantas outras que não raro trazem imagens e discursos muito mais heróicos – e menos complexos – do que os episódios e personagens a que se referem. Somos convidados, então, a imaginar uma paisagem bastante familiar: a praça cívica esvaziada de seu potencial político, refém de uma narrativa hegemônica, instrumento de estabilização de uma dinâmica histórica e social em permanente transformação. E somos convidados também, quem sabe, a decifrar os significados de nossas estátuas, dos corpos mortos que mantemos vivos entre nós.

Mais adiante, quando o suposto martírio de Deeb, assim como a própria estátua, se revelam como farsa, somos provocados a vislumbrar outras imagens, dessa vez menos realistas e mais relacionadas ao caráter fantástico da narrativa. Ouvimos, por exemplo, sobre o mártir diante da estátua, diante do próprio túmulo e, finalmente, convertido, ainda em vida, em estátua de si mesmo. Fenômeno que, ali, acomete a seres humanos, mas que possa também, talvez, atingir a nações inteiras, quando, muitas vezes, em cenários de guerra, se mostrariam mais interessadas em preservar estátuas, monumentos e santuários de outros tempos do que em defender aqueles que estão vivos e lutando. “Somos todos projetos de mártires”, proclama a performer, continuamente revendo, ao longo da narrativa, os possíveis significados do termo.

Vencedores, perdedores, prisioneiros e presos libertados são personagens dessa história, cuja distância geográfica e geopolítica não necessariamente nos furta de traçar paralelos com nossa experiência sul-americana. O que se estabelece, em cena, afinal, parece ser um debate sobre algumas vidas que supostamente valem mais, e outras que, segundo a mesma lógica, talvez valham menos – e isso acontece em toda parte. Ao problematizar a personalização da história, a montagem de Rabih Mroué e Lina Majdalanie toca, ainda que de relance, nas recentes revoluções árabes, celebradas, em cena, como momento histórico em que o povo, não somente nos países árabes, finalmente se mobilizou “por si mesmo” e ocupou, quem sabe, aquela e também outras praças antigamente habitadas por estátuas de herói mortos.

Território de disputa por voz e escuta

Crítica a partir dos espetáculos vistos na MITsp 2016, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2016

15 de abril de 2016

Momentos de crise, seja ética, política ou financeira, como o que vivenciamos agora podem colocar em movimento as placas tectônicas que estavam acomodadas e promover as mudanças necessárias. Ou, ao menos, dar a ver as falhas, as lacunas, tornar visível o que estava antes camuflado. Tornar dizível o não dito. Foi o caso da 3ª Mostra internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, realizada de 3 a 13 de março de 2016, na capital paulista. Em ano de alta do câmbio e baixa nos patrocínios, a programação de espetáculos diminuiu numericamente, assim como as ações artísticas e reflexivas, inclusive as planejadas para debater questões relativas à condição do negro na sociedade. Contudo, a constrição propiciou terreno fecundo para que as discussões sobre discurso, perspectiva, representatividade, lugar de fala, colonialismo e racismo ganhassem força. É por esses caminhos que traço aqui um percurso pela mostra deste ano.

Olhando em retrospectiva, o espetáculo de abertura, “Cinderela”, do encenador francês Joël Pommerat (o mesmo autor de “Esta Criança”, montado pela Companhia Brasileira de Teatro), já chamava a atenção para as limitações do diálogo e as armadilhas do discurso. A fábula da garota maltratada pela madrasta que encontra redenção no amor do príncipe após conquistar a beleza com ajuda de uma fada madrinha é reconfigurada fora do modelo machista de representação da mulher. À madrasta é que cabem os sonhos românticos, como se Pommerat os situasse em uma geração anterior, legando à juventude de hoje uma visão crítica do modelo patriarcal. Cinderela já não precisa do casamento com o príncipe (andrógino) para ser feliz: o encontro dos dois serve como detonador de um processo de autoconhecimento que permitirá a ambos se desvencilharem das dores do passado.

Mais importante do que o baile é a construção da identidade a partir da elaboração dos traumas de infância – ainda que esses traumas comportem ilusões. A inabilidade para lidar com a morte da mãe gera nos dois jovens processos de culpabilização e autoengano. Quais histórias contamos a nós mesmos há tanto tempo que sobre elas se fundaram nossas próprias identidades? Quais mal-entendidos estão na base do modo como nos relacionamos com os outros? Esse lugar da narrativa na constituição de uma ideia linear de sujeito – a cola dos nossos fragmentos de vida – concede à fábula redesenhada por Pommerat uma atualidade inesperada. “Cinderela” aponta para a surdez metafórica que rege a comunicação humana, materializada na performance de um bailarino que estiliza movimentos à semelhança da linguagem de sinais, em intervalos entre as cenas do conto de fadas subvertido.

Há uma espetacularidade onírica e macabra no cenário (uma casa de vidro onde as pombas se chocam contra as paredes invisíveis e morrem) contrastante com a fragilidade das figuras humanas. Na conversa com espectadores realizada pelo eixo reflexivo da MITsp, Pommerat disse buscar uma simplicidade nas atuações porque “adoraria que o espectador visse mais pessoas do que personagens nesses trabalhos”. As pessoas e suas formas de diálogo, ou de desentendimento: eis o centro das inquietações dos dois espetáculos que apresentou.

Em “Ça ira”, o potencial de desentendimento da comunicação adquire contornos mais políticos e sintonizados às disputas sociais e econômicas em ebulição no país. Pommerat recria as tensões precedentes à Revolução Francesa, contrastando as perspectivas dos três agrupamentos sociais em que a França se dividia: a nobreza, o clero e o povo, que finalmente se organizava para reivindicar voz e direitos. Em certo aspecto, “Ça ira” lembra “Villa“, do chileno Guillermo Calderón, na medida em que recusa a espetacularidade para concentrar a atenção nos discursos que põem em embate posicionamentos sobre um aspecto da histórica cujas implicações ainda se fazem sentir hoje.

O debate entre as três esferas sociais, e o debate dentro de cada uma dessas esferas, ocupa todo o espaço do teatro. A posição do espectador como observador, embora não desfeita, é abalada. Figurantes falantes de francês espalham-se entre os espectadores e vibram com os discursos, aplaudem, vaiam, pedem a palavra, fazendo circular pela plateia a energia de uma tribuna e, em consequência, transformam os espectadores em figurantes também da encenação. Somos colocados na posição de integrantes da mesma tribuna, porém como aqueles que em situações de crise social se mantêm protegidos no silêncio, acovardados ou à espera da melhor oportunidade de agir.

O mais impressionante em “Ça ira” é que, mesmo se um espectador se identificar a priori com um dos grupos – digamos, com o povo –, é exposto às instabilidades dos seus discursos, suas incoerências e rachaduras, de modo a ser instado a criticar também os modos de expressão, os argumentos e as estratégias da posição na qual se encontra ideologicamente. Pommerat, por mais que em última instância isso seja impossível, aproxima-se do ideal de um encenador-onisciente, evita tomar partido. Assim, permite que as motivações de cada perspectiva sejam expressas, e expostas as incompatibilidades vigentes. Faz do entrecruzamento de pontos de vista um espetáculo realmente polifônico primando pela autonomia discursiva dos vários sujeitos sociais representados.

Daí a complexidade que “Ça ira” assume, dando a ver algo mais do que discussões tais como as correntes na disputa de classes da realidade lá fora: a dinâmica dos discursos, a pragmática (campo de investigação da prática da utilização da linguagem, no ato da enunciação), quem tem voz, como se legitimam as vozes, o que enfraquece uma fala, as armadilhas do poder e das emoções. A contraposição de posicionamentos propiciada pelo jogo cênico resulta não em um relativismo inócuo pelo qual oprimidos e opressores se igualariam – nunca se igualam: eis a falsa simetria. O que essa cena enfrenta é a recusa à simplificação.

Quando se fala, então, em complexidade, é no sentido a ela atribuído por Edgar Morin em sua defesa do pensamento complexo. Para o autor francês, o pensamento simples é aquele que tenta se apropriar da realidade de modo simplificador e, para tanto, restringe-se a uma parte, um segmento do todo, operando por disjunção e redução: “um pensamento mutilador conduz necessariamente a ações mutilantes”[1]. O pensamento complexo, ao contrário, aprofunda as questões e, principalmente, as interliga. Assim, consegue se aproximar da realidade, mesmo que sem ambição de completude, pois os fenômenos reais não são simples, mas sim compostos por emaranhados de informações. Daí a importância da articulação, de colocar as coisas em relação, tal como o faz Pommerat.

Apesar de envolvido pelos figurantes e, portanto, dentro da tribuna e atravessado por impulsos e tensões, o espectador também assiste a esse embate de fora. Diante dele, o que se encena é, sobretudo, como os discursos discursam. Um exercício de distanciamento especialmente significativo no atual momento político brasileiro, mas que transpõe o aqui e agora e interessa para pensar toda a articulação de grupos conflituosos em sociedade. Com “Cinderela”, forma um duo de trabalhos muito distintos, mas ambos iluminam os desafios da comunicação humana como zona de negociações entre sujeitos.

Ser sujeito, contudo, depende do acesso à voz. Os revolucionários franceses vindos das camadas populares o sabiam e batalharam por esse direito.  Antes de analisar como esse aspecto encontrou outras repercussões na MITsp, porém, cabem algumas observações sobre o espetáculo “(A)polônia”, do diretor polonês Krzysztof Warlikowski, que faz um movimento análogo ao de Pommerat de revisitação de um dos episódios determinantes do passado do seu país (com conseqüências mundiais) para colocar em choque questões éticas e políticas contemporâneas.

As soluções dramatúrgica e cênica, nos dois casos, são absolutamente distintas, embora ambos absorvam o espectador em experiências prolongadas de quatro horas de duração. Warlikowski molda uma dramaturgia repleta de arestas desencontradas, composta de partes estranhas entre si. Trechos de tragédias gregas, como o sacrifício de Ifigênia, e outros de obras contemporâneas, como a controversa analogia entre o abate de gado e o Holocausto feita em “A Vida dos Animais”, do sul-africano J. M. Coetzee, sucedem cenas mais imagéticas deslocadas do centro do palco e intervenções de uma banda ao vivo. Um tipo de encenação-monstro diante da qual se sente a impossibilidade de síntese.

É difícil (e as diferenças culturais não devem ser ignoradas aqui, nem as limitações da atenção durante a rotina extenuante de um festival) cumprir um percurso de recepção através do espetáculo sem a sensação forte de perda das múltiplas camadas do jogo de sentidos. No entanto, sempre há fios a puxar, mesmo que não desvelem todo novelo. Neste caso, chama a atenção outra vez a pluralidade de perspectivas acerca das relações entre sacrifício, justiça, bem comum e instinto de sobrevivência. A estrutura multifocal, nisto semelhante a “Ça Ira”, coloca em questão vítimas e carrascos em situações-limite, como o Holocausto (ou o genocídio indígena, a escravidão de africanos, as ditaduras na América-Latina etc.), investigando no âmbito do indivíduo como a tomada de decisão ética entre a autopreservação e o justo impacta o indivíduo e aqueles ao seu redor. No sistema jurídico, há o direito de não se produzir provas contra si. Há também a distância entre a Justiça e o justo.

O que se problematiza, então, são as escolhas éticas. Numa situação em que as vidas de milhares estão ameaçadas, quem haveria de salvá-las em troca da própria morte? Ou da morte de uma pessoa amada? E quem trairia a todos para salvar a própria pele? Quem se sacrificaria para salvar um filho? Ou não cederia a própria vida, mesmo na velhice, para poupá-lo? Ou ainda, quem se sacrificaria para salvar um desconhecido? E como ficariam aqueles que dependem de você diante desse altruísmo? Em outras palavras: onde está a fronteira entre altruísmo e egoísmo? Em última instância, quais os limites éticos quando a própria vida, ou a própria morte, é objeto de negociação?

Tais questões, resultantes das contraposições entre os fragmentos de histórias apresentados, acenam para uma discussão não esgotada e ainda urgente sobre colaboracionismo, necessária para que se compreenda como essas situações se perpetuam além das simplificações maniqueístas. Mais do que condenar os grandes “monstros”, como Hitler, general Costa e Silva ou algum político que, no momento, lidere e personalize uma ofensiva violenta contra a democracia, interessa investigar como tais figuras se sustentam no poder, qual a rede de colaboracionismo que as suporta, como cada um de nós compactua, quais as nossas tímidas monstruosidades – a corrupção e a tirania não brotam no alto escalão, têm raízes mais comezinhas. Com isso, outra vez não se pretende o relativismo, mas situar o conflito ético no concreto e ao alcance das nossas ações, onde não é possível terceirizá-lo, e sem reducionismos ilusórios.

Interditos, inter-ditos

Até aqui, tratamos de visões e experiências europeias de mundo, tão formadoras das nossas próprias visões num planeta onde até os mapas são desenhados a partir do “velho continente”, o Grande Colonizador. Eis outra questão que explodiu durante os dez dias da MITsp, e o momento em que ficou mais evidente foi diante da artista e teórica portuguesa Grada Kilomba, que vive na Alemanha, onde é curadora no teatro Maxim Gorki (casa do espetáculo “The So-Called Outside Means Nothing to Me, visto no FITBH 2014). Ela apresentou a palestra-performance “Descolonizando o Conhecimento” (leia o texto) a convite dos curadores Leda Martins (UFMG), José Fernando Azevedo (Teatro de Narradores) e Eugênio Lima (Núcleo Bartolomeu de Depoimentos) dentro da programação do ciclo internacional de debates Discursos sobre o Não Dito, dedicado à visibilidade da condição do negro.

É até difícil expressar a potência do acontecimento proporcionado pela artista usando recursos tão simples, centrados na fala empática, ponto de convergência de tensões sociais complexas. É o tipo de trabalho capaz de deflagrar insights em quem já vem se permitindo transformar pela quebra de paradigmas promovida por vozes negras e feministas que têm conquistado escuta num contexto de reconfiguração das formas de comunicação social pelas novas mídias. Uma batalha árdua contra as estruturas de silenciamento.

Escuta, aqui, é palavra-chave. Num sentido mais estrito do que audição: é a capacidade efetiva de prestar atenção e compreender o que é dito. Retomo a afirmação de que ser sujeito depende do acesso à voz – ou seja, de ser ouvido. É sobre isso que Grada fala, com igual doçura e contundência, e nos faz escutar. É uma mulher negra falando – e essas marcações de gênero e raça são cruciais numa sociedade em que historicamente homens brancos ocuparam as posições de poder e de saber, perpetuando uma confusão entre as noções de universal e dominante. “Descolonizar o conhecimento significa criar novas configurações de conhecimento e de poder. Então, se minhas palavras parecem preocupadas demais em narrar posições e subjetividade como parte do discurso, vale a pena relembrar que a teoria não é universal nem neutra, mas sempre localizada em algum lugar e sempre escrita por alguém, e que este alguém tem uma história”, diz a performer, defendendo o seu próprio lugar de produção de conhecimento, e também o de seus pares.

O que salta dessa posição é a compreensão de que as bases da desigualdade estão no sistema de valoração/legitimação que constitui nossa cultura, erigido por uma perspectiva específica, mas dominante – e, por isso, tomada como universal, forçando uma imensa parcela da humanidade a ser identificada como o “outro” de um suposto “centro” não natural. Descolonizar, então, significa des-naturalizar aquilo que foi introjetado e já não é percebido como estranho, é desconstruir essas estruturas.  O território dessa disputa são as imagens e as palavras, são as formas que o pensamento assume para expressão no campo coletivo da construção social.

Nesse sentido, um dos pontos nevrálgicos de desconstrução são os pares de oposição que sustentam nosso sistema de valores. “Quando eles falam, é científico; quando nós falamos, não é científico. Quando eles falam, é universal; quando nós falamos, é específico. Quando eles falam, é objetivo; quando nós falamos, é subjetivo. Quando eles falam, é neutro; quando nós falamos, é pessoal. Quando eles falam, é racional; quando nós falamos, é emocional. Quando eles falam, é imparcial; quando nós falamos, é parcial. Eles têm fatos, nós temos opiniões”, compara Grada. Essa valoração determina o que é considerado conhecimento ou não, quem tem direito à fala ou não, quais os discursos ditos e quais os interditos.

A efetividade do gesto de Grada está não somente no conteúdo semântico do seu discurso, mas também na forma. Desde o início, a conceituação de uma palestra-performance abala a dicotomia entre arte e teoria (análoga ao modo como a performance aproxima arte e vida). Grada reconecta o pessoal ao coletivo e – se a razão é atribuída ao masculino e ao branco; e a irracionalidade passional, ao negro e à mulher –, adota um tom ao mesmo tempo objetivo e afetivo, como quem reconcilia paixão e razão.

O princípio da não exclusão não seria justamente esse? Conceber o mundo não em termos de “ou”, conjunção polarizadora e excludente, mas em termos de “e” (que o Houaiss o define como uma conjunção que “une vocábulos ou orações de mesmo valor sintático”), enfrentando a complexidade do convívio das diferenças e contradições.

Descolonizar, descentrar

Semelhante impulso de descolonização esteve presente em diferentes gradações nos trabalhos do dançarino congolês Faustin Linyekula (“A Carga”), do músico sul-africano Neo Muyanga (“Revolting Music”) e do grupo paulista Teatro de Narradores (“Cidade Vodu”).

Linyekula faz do próprio corpo a encruzilhada cultural onde se atravessam a experiência congolesa e a europeia, a dança tradicional de seu povoado de origem e a contemporânea, como pares opostos irredutíveis, inconciliáveis talvez, mas uma contradição com a qual é necessário viver. O dançarino nasceu no Congo, estudou no Quênia e na França, e já mostrou seu trabalho pela Europa e pela América do Norte. Há dez anos, optou por fundar os Studios Kobako em Kisangani, no interior da República Democrática do Congo, onde um de seus projetos para o futuro próximo é construir uma estação de tratamento de água que seja também um centro criativo para crianças praticarem atividades artísticas. Sem abrir mão das turnês mundiais ou de criar coreografias em outros países (é o Artista do Ano em Lisboa, neste 2016), sua escolha foi por descentrar: fortalecer a periferia – seja o Congo em relação à Europa ou Kisangani em relação a Kinshasa (capital congolesa).

Assim como Grada Kilomba, ele dispensa a espetacularidade grandiosa. Concentra a obra artística no próprio corpo, em um encontro com a plateia no qual se privilegia a escuta. Narrar e dançar: duas formas de expressão complementares com as quais impregna os espectadores. Quando fala, em tom coloquial, compartilhando memórias da infância e a experiência frustrada de voltar a um povoado em busca da dança que ouvia quando criança sem poder dançar, e hoje já não é praticada, Linyekula cria uma ponte para que o espectador se aproxime daquele universo empaticamente e faça o exercício racional e afetivo de considerar o outro e repensar a si a partir desse deslocamento.

Quando dança, com movimentos que buscam aquela dança perdida da infância congolesa num corpo marcado pela aprendizagem da dança contemporânea europeia, transmite saberes outros, mais arredios à tradução em palavras, outros modos de afetação, sinestésicos, sensoriais, energéticos e imagéticos. A imagem de um corpo colonizado, detentor de uma origem e uma tradição, perpassado por outra cultura que também o constitui, num embate físico e estético com o que seria a sua própria identidade: já não há como voltar ao que se era antes da colonização, o que foi expropriado está perdido, a colonização também nos constituiu, somos fruto dela, não há essencialidade, não há ação no passado, o que nos move é a re-elaboração de tudo que nos atravessa. É como Linyekula disse em uma entrevista ao jornal português “O Público”: “Ainda hoje nos vemos através dos olhos europeus”. A arte dele e de Grada Kilomba investiga modos de “olharmos para nós com a nossa perspectiva”.

A descolonização também foi a centelha que acendeu a discussão no Dia Crítico – Jornada sobre a crítica teatral em plataformas digitais no Brasil e no mundo, realizado pelo site de crítica teatral Agora, um projeto mantido pelo Goethe Institut, sob a orientação do crítico alemão Jürgen Berger, com planos de expansão por toda América Latina. Destaco dois pontos do debate, levantados pela plateia após o alemão apresentar em sua fala um conjunto de regras estreitas sobre o fazer crítico: 1) a indagação feita pela crítica Daniele Avila Small (Questão de Crítica) sobre como evitar que o projeto assuma um caráter imperialista e colonizador, e 2) a afirmação do crítico Patrick Pessoa (Questão de Crítica e Agora) de que os critérios de qualidade não são universais. Jürgen respondeu com uma negativa à possibilidade de ser colonizador e com a incompreensão da segunda questão: “Não entendo o que você quer dizer com ‘os critérios de qualidade não são universais’”, disse. Para aquele que goza da posição de centro, as questões periféricas nem são questões. Era sobre isso que Grada Kilomba falava: só “tem” voz quem é ouvido. Na segunda parte da jornada, quando coletivos críticos brasileiros[2] subiram ao palco para discutir e o crítico estrangeiro ocupou seu lugar na plateia, não havia tradução do português para o alemão.

A falta de tradução, em outro contexto, foi um complicador para a experiência de “Revolting Music – Inventário das Canções de Protesto que Libertaram a África do Sul” transpor a barreira idiomática e cultural e realizar a potencialidade crítica dos hinos da luta armada contra o apartheid na África do Sul entoados por Neo Muyanga. Sem o conhecimento prévio daquele repertório, a memória dos acontecimentos ou a vivência da situação aludida pelo artista, nem uma mediação que permitisse a escuta da esfera discursiva das canções e a transmissão daquele saber, os propósitos do trabalho ficaram nublados, de árduo acesso. Restou a fruição pelas vias sensoriais da experiência propriamente musical.

Outra experiência fragilizada por questões de escuta e tradução foi a de Cidade Vodu, espetáculo dirigido por José Fernando Azevedo com o grupo Teatro de Narradores e imigrantes haitianos. Cito-o por ser um projeto gestado como crítica à colonização e ao racismo, dando voz a homens e mulheres haitianos que representam a si mesmos. Contudo, não posso aprofundar a análise porque os problemas técnicos ocorridos na estreia e nos dias subsequentes foram obstáculos para a apreensão de uma dramaturgia que parecia potente no deslocamento do olhar para a perspectiva do explorado, colonizado, escravizado.

Em tempo

O mesmo José Fernando Azevedo, na mesa de abertura dos Discursos sobre o Não Dito, diante de muito menos público do que o merecido, disse uma das frases mais lúcidas desta MITsp: que a questão do negro não pode estar à margem ou em guetos, por ser “estrutural e estruturante da vida e da sociabilidade brasileira”. É simples e terrível: o sistema de exclusão – por cor, por gênero, por classe social – está na base de toda nossa organização social. Ignorar isso é consentir e perpetuá-lo.

É curioso notar, contudo, como essas relações de poder não saltam aos olhos diante do dispositivo armado pelo coletivo suíço-alemão Rimini Protokoll em “100% São Paulo”. No espetáculo criado com cem habitantes da capital paulista, eleitos segundo as estatísticas do último censo demográfico, a “representatividade” é ambiguamente endossada e questionada na execução do projeto, já realizado em dezenas de outros países (há “100% Berlim”, “100% Tóquio”, “100% Austrália” etc.). Pela maneira com o jogo cênico é conduzido, reproduz o senso comum. Cada cidadão atuante responde (com uma placa ou movendo-se no palco) a uma série de perguntas que vão de questões ideológicas e políticas a banalidades. Tudo num ritmo acelerado de programa de calouros. A crítica Beth Néspoli analisa mais detidamente essa construção cênica; aqui, cabe apenas observar como um dispositivo que coloca em cena representantes das mais diversas camadas da população logra não dar voz a nenhuma.

Enquanto ainda se calavam os aplausos a “100% São Paulo”, o mesmo Theatro Municipal foi consentidamente invadido pela performance poético-política “Em Legítima Defesa”. Uma ação do artista Eugênio Lima com os atores que fariam “Exhibit B” (controverso espetáculo-instalação dirigido pelo sul-africano Brett Bailey, previsto para esta edição da MITsp mas cancelado por falta de recursos financeiros). A performance foi realizada após algumas apresentações da MITsp, como parte integrante da programação da mostra – e uma maneira de nela abrigar o dissenso. Vestidos de preto, dezenas de atrizes e atores negros entraram pela plateia e ocuparam os corredores do teatro, sustentando uma atitude combativa e olhares incisivos ante o público, enquanto repetiam um refrão dos Racionais MC (“A cada quatro pessoas mortas pela polícia no Brasil, três são negras”) e davam voz às suas próprias narrativas. Indescritível o alto contraste com o que havia sido encenado antes no palco do teatro. A representatividade agora ganhava peso e sentido: os performers contaram quantos negros havia na plateia; em 1.739 poltronas, mal chegavam a 15.

 

[1] MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007. p. 15.

[2] Inclusive a DocumentaCena – Plataforma de Crítica, formada por este Horizonte da Cena, pela Questão de Crítica, o Satisfeita, Yolanda? e o Teatrojornal.

QUANTAS NOTAS TEM UM ATOR? A LÍNGUA DE QUEM FALA EM JAZZ

 

Crítica a partir do espetáculo “An Old Monk”, por Soraya Belusi (Horizonte da Cena)

MITsp 2016

“Dance, dance, otherwise we are lost”

(Pina Bausch)

Há quem fale em alemão, inglês, holandês, espanhol, japonês, russo, português e até todas elas ao mesmo tempo. Mas alguém que consegue falar em jazz, só conheço mesmo Josse de Pawn. Fomos apresentados recentemente, em um encontro de experiência inaugural, por motivo de sua apresentação, ao lado dos músicos Kris Defoort, Lander Gyselink e Nicolas Thus, no espetáculo An Old Monk. Não há legendas para traduzir esse idioma, formado ao mesmo tempo por palavra, som e corpo, com o qual o criador belga me leva a perguntar: quantas notas pode ter um ator? Por quantas vozes ele pode ser atravessado? Quantos espaços e tempos ele pode transportar em si e dar a ver ao outro? Quem é esse homem que fala de si e de tantos outros diante de mim?

An Old Monk, espetáculo apresentado na III Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp – permite evidenciar, a partir das escolhas formais de Josse de Pawn – que assina também  o texto e a direção -, uma maneira singular de se lidar com os materiais e linguagens da experiência teatral, guiados pelo trabalho da atuação do artista belga. Na maneira como lida com a palavra, o corpo-voz, os elementos de cena, com os outros artistas e linguagens, ele amplia de forma considerável o exercício que o teatro contemporâneo nos força, como espectadores, a repensar sobre o trabalho do ator e, consequentemente, a própria noção de teatro.

Autor, diretor, bailarino, ator-performer, Josse de Pawn condensa, em 1 hora e dez minutos, o tempo de uma existência. As fases da vida de um homem são apresentadas como melodias passageiras, nas quais se estruturam o improviso, o solo, a repetição sobre um mesmo tema: o envelhecimento. O “Monk” do título remete-se, igualmente, ao pianista e gênio do jazz Thelonius Monk, inspiração para a criação do espetáculo, ao próprio De Pawn, que afirmou ter tido esse desejo de se tornar um monge, e ao “personagem” da narrativa, esse homem que dança rumo ao envelhecimento.

Não se pode dizer que o espetáculo é sobre o pianista Thelonius Monk, embora seja também sobre ele. É também sobre De Pawn, mas não se constitui como biografia. É sobre o homem, um homem que dança. Monk, sem dúvida, está presente – e dizem que intercalava suas apresentações com longos momentos dançantes. Ele e De Pawn falam a língua do jazz.

Pensar a maneira como o artista belga executa tal tarefa é também refletir sobre o ator-performer do nosso tempo, capaz de utilizar-se de todo seu instrumental para romper com as barreiras das categorias de linguagem e assumir uma multiplicidade de vozes  que dialogam e se tensionam – na sintonia e na dissonância. A quantos tempos e espaços somos mobilizados na cadeira do teatro? Ao tempo do agora, do encontro, do acontecimento-show, ao da narrativa, que navega em uma existência como se num sonho ou num “filme” de memórias, ao da música, em que cada canção nos transporta para um universo completo? Monk é como um velho Krapp, que revê sua existência pelos momentos mais marcantes, condensa sua existência em uma última gravação ou em uma última nota.

Se dissermos, sobre An Old Monk, que vamos a uma peça de teatro, não estaremos dando uma resposta mentirosa, mas uma definição, no mínimo, limitada. Segundo o criador, trata-se de um concerto teatral, em que uma forma penetra a outra como se já lhe pertencesse, tendo o jazz como elemento unificador. De certa maneira, De Pawn faz música, enquanto seus colegas músicos atuam. E os opostos também acontecem.

Há uma sofisticação de elaboração nas canções de jazz que se unem a uma espontaneidade própria do improviso e do jogo entre os integrantes do grupo, fazendo com que rigor e liberdade de experimentação caminhem juntas. Isso se dá também em An Old Monk: há algo que se cria no agora, no presente, no junto, que estabelece um pacto muito próprio com o espectador. De Pawn e os três músicos integrantes desse “quarteto” também se apresentam – não representam apenas – para o público. Depois do nosso encontro de 1 hora e poucos minutos, posso dizer que ainda não falo em jazz, mas já entendo o que significa essa língua, a senti com o corpo e com a mente, como no breve espaço de uma dança.

NEM DEUSES NEM BESTAS

Crítica a partir do espetáculo (A)Polônia, por Soraya Belusi (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Os heróis e deuses gregos não são mais suficientes para explicar a condição trágica do humano. Não irão nos salvar nem nos absolver, embora insistamos em delegar a eles o motivo de nossa condenação. Mas se já não espelhamos nossos atos nos dos nossos antepassados, carregamos em nossa formação os traços de uma história por eles construída. Por isso, o Nowy Teatr e o diretor Krzysztof Warlikowski convocam, entre outros, trechos das narrativas de Alceste, de Eurípedes, e Oresteia, de Ésquilo, somadas a Apolonia Machczyńska, escrita por Hanna Krall, para construir um mosaico de reflexões e imagens acerca das questões de culpa, perda e sacrifício que permeiam a história da humanidade e permanecem presentes no país europeu que assistiu ao genocídio promovido durante a Segunda Guerra Mundial.

Em (A)Polônia, espetáculo que integra a III Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp –, a condição heroica, apresentada a nós herdeiros ocidentais do pensamento grego, é aqui colocada em xeque: quão ou mais nobre é aquele que doa sua vida em nome do outro, da pátria ou de uma ideologia do que aquele que deixa outro morrer no lugar de si? Não se trata de responder a essa pergunta, ou isentar qualquer uma das partes, mas sim mostrar ambas as circunstâncias como demasiadamente humanas.

Ifigênia doou sua vida em nome de sua terra natal, convencida de que seu sacrifício era heroico. Alcestes entregou-se à morte em troca da vida de seu marido, considerando ser esta a coisa certa a fazer. Apolonia morreu porque tentou salvar a vida de um grupo de judeus, embora soubesse que estava se condenando, com este ato, à morte.(A)Polônia nos apresenta tais narrativas contemporaneamente não como imposições do destino, mas, sim, frutos de escolhas – feitas tanto por quem morre quanto por quem deixa morrer. Nem deuses nem bestas. É preciso aceitar isso para seguir adiante. Para ambos obterem o perdão – a única possibilidade de salvação diante do peso da culpa.

Mas Warlikowski e companhia não se prendem apenas ao que nos dizem e nos fazem pensar os mitos. A atualização que impõem à montagem – com direito a conversas entre os personagens trágicos gregos por internet ou ainda uma banda de rock alternativo que age como uma espécie de coro – recai também sobre os discursos, atravessados por diferentes localizações no tempo e no espaço. Dividida em duas partes, (A)Polônia apresenta um primeiro momento em que os heróis e deuses gregos são confrontados por uma perspectiva contemporânea, em que seus atos são questionados, assim como papéis muitas vezes considerados definitivos, divididos entre os justos e os injustos, o que mata, o que morre e o que deixa morrer em seu lugar. Num segundo momento, iniciado com uma palestra sobre o direito dos animais, o que se evidencia é uma perspectiva de presente, que de alguma maneira nos provoca a pensar o que “aprendemos” com a maior tragédia da história da humanidade. Matar deixou em algum momento de ser um negócio? – seja ele político, financeiro ou pessoal. E se fosse você?

Representadas por manequins que ficam em cena durante quase todo o espetáculo, abandonadas nas salas de jantar, sofás e cantos da casa, sempre observando os adultos – é pela perspectiva delas que muitas vezes a filmagem nos é apresentada -, as crianças, que tudo testemunham e são as únicas que não agem nesses atos, podem ser vistas como uma possibilidade de futuro. Elas sobreviveram e pode caber a elas “deixar que os mortos cuidem dos mortos e os vivos cuidem dos vivos”.

O espectador se vê então na tarefa de passear pelos tempos históricos propostos pelas dezenas de cruzamentos de referências dramáticas e literárias apropriadas tanto de discursos clássicos como de obras contemporâneas, fazendo com que uma interfira sobre a percepção da outra, criando uma desestabilização permanente das certezas e convicções, e gerando, em quem vê, uma sensação de indecibilidade – de seu próprio entendimento – às vezes angustiante, no sentido de colocá-lo em um estado de inquietude, tormento, na tentativa de estabelecer novos parâmetros para relacionar-se com a obra a cada “isca” lançada.

Fruto de uma criação empreendida de forma colaborativa pelos participantes do processo, em que todos puderam contribuir como uma voz na tessitura da obra, (A)Polônia leva para o resultado final, o espetáculo, os traços que esse tipo de procedimento costuma carregar, em que os fragmentos criados no processo muitas vezes não precisam ser conectados de maneira lógica e causal, aceitando a instabilidade e a não-unicidade como alternativas, assim como um excesso de informações e referências que obriga o espectador a fazer escolhas – do que observar, do que significar, do que costurar etc. – e também a lidar com a perda. Nesses casos, não há certezas. Nem apenas o certo e o errado. É assim na vida, é assim na arte.

Apolo não!

Crítica do espetáculo “(A)Polônia”, deKrzysztof Warlikowski, por Patrick Pessoa (Questão de Crítica)

MITsp 2016

 

Escrever no calor da hora sobre um espetáculo com a complexidade de (A)polônia, de Krzysztof Warlikowski, é uma temeridade. As múltiplas linguagens trazidas à cena (música, teatro, vídeo, instalação, performance, stand up, conferência acadêmica, manipulação de marionetes), o manancial de referências mais ou menos explícitas (que vão de Ésquilo a Jonathan Littel, passando por Eurípides, Kafka, Coetzee, Hanah Krall, Godard e muitos outros) e a ambição de articular algumas das questões humanas mais arcaicas (sobre a necessidade do sacrifício pessoal em prol de algum ideal ou mesmo de pessoas próximas; sobre a rebelião contra os “deuses” e o destino inaceitável por eles imposto; sobre a tragicidade inerente a qualquer decisão humana e a inescapável “culpa inocente” dos heróis trágicos) tendo em vista a necessidade de elaborar o passado recente da Polônia e expiar a culpa dessa nação no extermínio dos judeus, que “é o legado terrível que pesa sobre nossos descendentes” (no dizer do próprio Warlikowski), mereceriam sem dúvida um tempo e um espaço mais dilatados para a construção de um pensamento mais consistente. (Advertência ao leitor: a construção hermética, para não dizer confusa, desta introdução teve a pretensão de traduzir para a prosa da crítica a minha experiência como espectador diante das múltiplas camadas do espetáculo).

Sim, é uma temeridade escrever no calor da hora sobre um acontecimento político-teatral que ainda estou longe de ter conseguido digerir. As simplificações redutoras e os juízos apressados me parecem, neste caso, um destino tão inescapável quanto o dos heróis (gregos e modernos) postos em cena por Warlikowski. Seria prudente esperar por um momento mais oportuno, em que as condições para essa reflexão estivessem mais maduras. O problema é que, supondo que este momento algum dia possa chegar, talvez já seja tarde demais.

Amanhã (13/3, data das mais eloquentes, pela associação do número 13 ao Partidos dos Trabalhadores, inspirado na sua origem pelos mesmos ideais que presidiram a criação do “Solidariedade”, movimento político polonês que tentou combater sob um viés proletário o conservadorismo histórico daquele país), a imprensa golpista da nossa (a)polônia, tomada por um curioso furor santo de indignação seletiva, está convocando uma manifestação “patriótica” contra “todos os corruptos” (os “judeus” do nosso tempo), instaurando artificiosa e espetacularmente uma polarização entre “nós” (os justos, os puros) e “eles” (os corruptos, os impuros). Por mais que devam ser preservadas as diferenças entre o contexto histórico brasileiro e o polonês, entre o nosso tempo e a primeira metade do século XX, quando o fascismo e o nazismo levaram ao extermínio de milhões de pessoas, por mais que pareça forçada a comparação, agora, no calor da hora, não pára de ecoar em mim uma célebre passagem das Teses sobre o conceito de história, de Walter Benjamin, na qual se lê: “O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ainda sejam possíveis não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história [calcada sobre a ideia de progresso] da qual emana tal assombro é insustentável”. A pergunta, sob essa ótica, não é a do humanista alienado – “Oh, como todos esses fatos horríveis puderam acontecer?! Ohhh!” –, mas sim a do materialista que lê a história a contrapelo: por que fenômenos como o fascismo, o nazismo e a Shoah não acontecem muito mais frequentemente?

Na realidade, com o mundo em guerra (a lista de conflitos ocorrendo no momento é tão extensa que não caberia aqui, incluindo aqueles que, na nossa particular guerra brasileira, levam ao genocídio de milhares de jovens negros todos os anos, evocado nesta MIT pela impactante performance Em legítima defesa, um dos pontos altos do festival), com todas as polarizações étnicas, religiosas, políticas e econômicas entre o Ocidente e o Oriente, com o recrudescimento de uma Guerra Fria que muitos acharam que estava definitivamente superada após a queda do muro, etc, etc, etc, talvez atos de inspiração nazi-fascista aconteçam muito mais frequentemente do que os olhos sempre marejados do humanista amigo da paz seriam capazes de enxergar. É que, e esta me parece ser uma das intuições estruturantes do espetáculo de Warlikowki, os pressupostos ideológicos que tornaram possível a eclosão dos totalitarismos do século XX continuam vivos e pulsantes nesta aurora do século XXI, constituindo talvez o “terrível legado para os nossos descendentes” de que fala o espetáculo (A)polônia.

Se, de acordo com tudo que acabo de dizer, A(polônia) não é apenas a Polônia, mas também o Brasil ou qualquer outro lugar em que as condições para fenômenos assemelhados à Shoah continuem a existir, eu ousaria dizer que o espetáculo a que assisti ontem não é sobre a Polônia, mas sim sobre Apolo. A imagem-síntese que consigo extrair do caos de estímulos visuais e palavras heterogêneas que foram literalmente despejados sobre os espectadores, de forma só aparentemente arbitrária (como no caso de qualquer obra de arte que mereça este qualificativo), é a imagem do deus grego Apolo, nu, com cílios postiços e o piru pintado de azul, tendo nas costas uma gigantesca tatuagem de uma forca da qual pende, enforcada, a estrela de Davi. A interpretação do deus como uma figura caricata, ridícula, afetada, grotesca, obscena é, posteriormente, numa segunda aparição em vídeo, reforçada por um discurso do mesmo Apolo, extraído da Oréstia, de Ésquilo, no qual, tentando defender Orestes pelo assassinato de Clitemnestra, sua mãe – o matricídio, no direito arcaico grego, era punido pelas Fúrias, divindades vingadoras dos crimes de sangue, que perseguiam até a loucura e a morte os culpados –, o deus afirma que a mãe seria só um vaso, um recipiente no qual o pai, o único verdadeiro responsável pela criação, depositaria sua semente e seu sangue. Orestes, sob esta ótica, não teria o sangue da mãe e não mereceria ser perseguido pelas Fúrias. Para além dos traços radicalmente misóginos que esse discurso têm para ouvidos contemporâneos, que Warlikowski habilmente maneja no sentido de aprofundar a repulsa de seu público pela figura do deus, os dois Apolos de (A)polônia têm em comum a recusa de toda mistura, de toda impureza, pregando literal e simbolicamente o extermínio do outro, seja judeu, seja mulher.

O espetáculo Apolônia, agora sem o parênteses (cuja manutenção serve a uma leitura distinta da proposta aqui), traz em seu título uma palavra que, etimologicamente, diz respeito a toda criatura “oferecida a Apolo”, a toda criatura que mereceria ser sacrificada pela sua impureza, pela sua alteridade, pelo fato de ter mais camadas do que aquelas que cabem na dicotomia bom-mau, justo-injusto, ético-corrupto, pelo fato de não ter apenas o sangue do pai (a lei, a fé, a ética de um Sergio Moro, figura das mais apolíneas em seus terninhos justos cortados sob medida, não por acaso merecedor de prêmios provenientes de instituições tão isentas quanto a Globo ou a Veja). Se, no plano do discurso, com a apresentação de dois Apolos derrisórios, Warlikowsi diz um basta a todos os sacrifícios em nome desse deus, no plano da própria constituição formal do espetáculo manifesta-se uma recusa de qualquer ideal de limpeza, de clareza, de organicidade, de harmonia, de equilíbrio, de beleza, características normalmente associadas ao nome de Apolo.

Quando comecei a escrever este texto, pretendia concluir criticando Warlikowski por sua visão unilateral de Apolo, que tem dois epítetos contraditórios: se por um lado é Febo, o resplandecente, aquele que impõe limites claros a todas as coisas (sua imagem mais conhecida), por outro lado é Lóxias, o obscuro, aquele cujos oráculos precisam sempre ser interpretados, sendo que o fato de mal interpretá-los não raro é a principal razão da queda dos heróis trágicos (vide o exemplo de Édipo, por exemplo). Pretendia dizer que, ao apresentar o deus de forma unilateral, fechando os olhos para a sua fundamental ambiguidade, e investindo numa montagem “puramente dionisíaca”, ele paradoxalmente teria acabado sendo mais apolíneo do que gostaria. Pretendia dizer, em suma, que ele não teria ouvido bem a lição de Nietzsche no Nascimento da tragédia. Ali, o filósofo diz que, ao matar Dioniso, o racionalismo socrático, em nome de Apolo, das distinções conceituais claras e distintas, teria acabado por matar também Apolo, já que Apolo e Dioniso seriam as duas faces de uma mesma moeda, nomes emblemáticos dessa ambiguidade ou tragicidade constitutiva do humano, dessa guerra eterna que é a vida. Ao contrário de Sócrates, eu pretendia dizer, em sua tentativa de matar Apolo, de interromper a ruína monumental feita dos cadáveres de todos que foram assassinados em seu nome (lembremos do “anjo da história”, de Paul Klee, na leitura de Benjamin), Warlikowski teria matado também Dioniso.

Era isso o que eu pretendia dizer, me atendo a uma crítica mais imanente das discutíveis opções formais feitas pelo diretor, que me fizeram sair do teatro com a sensação de ter visto uma nova repetição de uma velha fôrma, um dispositivo eminentemente irônico na lida com a tradição que teve grande potência no teatro dos anos 1990, mas que, à força de sucessivas repetições, acabou por esvaziar-se, convertendo-se em fetiche formalista. Mas, neste momento, a verdade é que eu não posso dizer apenas o que pretendia dizer. Escrevi esse texto sendo atravessado pelas palavras, pelo momento histórico que estamos vivendo, como os personagens de Ça ira, ponto culminante da MIT deste ano. As placas tectônicas que foram finalmente postas em movimento pelos governos Lula e Dilma (a despeito de todas as legítimas críticas que possamos fazer a certos aspectos de seus respectivos projetos de governo, o que não tem nada a ver com saber se eles são puros ou não) estão gravemente ameaçadas de serem novamente imobilizadas pela força reacionária de elites ancestrais que querem conservar os seus privilégios a qualquer preço, que, como em Ça ira, recusam visceralmente a ideia de uma verdadeira igualdade política. Contra essas elites, contra a catástrofe que se anuncia tão próxima, faço então coro com Warlikowski: Apolo não!

A segunda vida

Crítica do espetáculo An Old Monk, de Josse de Pauw, por Patrick Pessoa (Questão de Crítica)

MITsp 2016

 

Ele tinha quinze, dezesseis, dezessete anos. Sentia que não pertencia à sua vida, como se tivesse errado de endereço. À sua volta todos dançavam muito, falavam muito, viviam em bando, se divertiam. Contavam sempre as mesmas anedotas: do último porre, daquela viagem de ácido muito louca, dos melhores baseados, das primeiras transas (descritas com aquela falsa indiferença juvenil que queria se fazer passar por experiência). Tinham quinze, dezesseis, dezessete anos e pareciam achar que aquela era a melhor época de suas vidas. Ele não. Não cabia em seu corpo, que transbordava de pelos esquisitos e espinhas dolorosas. Adolescer era um sofrimento para o qual ele ainda não havia encontrado nenhum nome. Um dia, numa festa, ficou inquieto quando uma amiga disse que estava angustiada. A palavra era bonita: an-gús-ti-a. Tinha o sabor de uma fruta exótica, de uma fruta que ele jurava nunca ter comido. Foi quando leu num desses livros que só se leem aos quinze, dezesseis, dezessete anos, que a vida está em outro lugar. E acreditou. Afinal, a vida, a vida de verdade, tinha que estar em algum lugar! Ele tremia de medo pensando que não viveria o suficiente para conhecê-la. Muitas noites, com o próprio sexo nas mãos, rogava a Deus para não morrer virgem. Por acaso, descobriu um programa de intercâmbio escolar e acabou se mudando para a Holanda, atraído pela miragem da maconha liberada. Quem sabe dali não viriam outras libertações? Mas, chegando lá, o sentimento de estrangeiridade radical só se agravou. Naquela época, Camus foi um vício. Aprendeu holandês lendo as legendas de uma novela americana, The Bold and the Beautiful. Aquela língua estranha, assim sem ele perceber, se gravou nele. Uma língua-mãe que se escolhe aprender às vezes é mais pregnante que a língua e que a mãe que nos foram destinadas pelo acaso.

Quando voltou do ano de intercâmbio, seu pai, tentando uma reaproximação, começou a levá-lo para os shows de jazz que frequentava compulsivamente. Aos vinte, vinte um, vinte dois anos de idade, o garoto viu e ouviu músicos cujos nomes nunca conseguia lembrar, mas que seu pai sempre dizia que eram “bons pra caralho”. A sensação que tinha nesses shows era esquisita. As primeiras notas já o transportavam para muito longe dali. O fato de que os músicos pareciam tocar mais para si do que para os outros era um pretexto para ele se desconectar. Em geral, ficava pensando na vida que poderia ter sido, ou na vida que ainda poderia ser, mas que… Muitas vezes, se sentia culpado por não conseguir desfrutar devidamente daquele privilégio, já que os concertos costumavam ser caros: até achava os músicos tecnicamente bons, mas parecia que alguma coisa lhe faltava, talvez um sentido mais apurado para fruir o que não cabe em palavra nenhuma, a liberdade de se entregar a um fluxo de sensações mais brutas, abstratas, resistentes a uma compreensão racional.

Aos trinta, trinta e três, trinta e cinco anos, seu corpo continuava não vestindo bem, mas ele tinha uma vida que os outros consideravam boa. Ou, pelo menos, normal. Mulher, filho, um trabalho que lhe permitia viver sem grandes preocupações financeiras. Eram tantas as obrigações a cumprir que ele só raramente se lembrava de que a vida ainda não tinha lhe dado nem um décimo do que ele esperava. Como quando era garoto, ele continuava com medo de morrer cedo demais. Pelo menos, já não era mais virgem.

Aos quarenta anos fez uma viagem a São Paulo, para cobrir um festival internacional de teatro. Algumas pessoas consideravam que ele era um crítico teatral, embora aquela roupa lhe caísse como um terno alugado numa loja de segunda mão. Foi ver uma peça de um diretor belga, chamada An Old Monk. Como sabia que teria de publicar uma crítica em menos de 12 horas, se informou antes sobre Josse De Pauw, o autor, diretor e performer do espetáculo. Descobriu que ele não chamava seu trabalho de uma “peça de teatro”, mas sim de um “concerto teatral”. Começado o espetáculo, entendeu por quê.

Em cena, uma banda com piano, baixo elétrico e bateria atacou um jazz como aqueles que costumava ouvir ao lado do pai, vinte anos antes. Lembrou do velho e pensou com um sorriso de canto de boca: “Esses músicos são bons pra caralho!” Na sequência, viu um senhor corpulento, careca, com uma barba branca comprida, mistura de Xico Sá e Paulo Cesar Pereio, entrar em cena dançando, se entregando ao fluxo da música. Aquele senhor dançou por um longo tempo, até ficar realmente cansado. O procedimento era muito interessante, porque fazia do cansaço uma experiência corpórea real, para além da mera representação. Então, dialogando sempre com o ritmo da banda, que continuaria a tocar ao longo de todo o espetáculo, e tendo sempre em vista a necessidade de construir uma relação inclusiva com o seu público, Josse De Pauw começou a sua narrativa. A mágica do dispositivo, simples mas rascante, estava no fato de que, apesar de falar de experiências aparentemente autobiográficas, o performer usava a terceira pessoa, transformando a sua vida em uma ficção e assim realizando a quimera de converter a própria vida em obra de arte. (No epílogo do espetáculo, aliás, essa ideia era reforçada com a projeção de imagens do corpo nu do artista com interferências gráficas que propunham diversas outras narrativas possíveis para aquele suporte material.) Antes de compreender o fio condutor da narrativa, na qual De Pauw usava a dança como metáfora para falar das três grandes épocas de sua vida (a juventude, na qual ele dançara sem nunca cansar e o tempo parecia infinito; a maturidade, quando as obrigações o tinham levado a parar de dançar; e a velhice em que se encontrava agora, quando, depois de buscar inutilmente pelo silêncio e a solidão característicos da vida de um monge (monk), ele havia finalmente, a despeito de todas as limitações físicas, recuperado o desejo de dançar e cantar como Thelonius Monk), o garoto com terno de crítico foi atravessado por uma estranha sensação de pertencimento: Josse De Pauw não apenas falava holandês, sua segunda língua materna que ele julgava ter esquecido, mas, sobretudo, ao atuar como uma espécie de repentista do cool jazz, transpunha o abismo que sempre o separara da música: a ausência de palavras. Josse De Pauw celebrara diante de seus olhos estupefatos o casamento entre o fluxo musical da vida e a narrativa necessária para transubstanciar sensações brutas em sentidos inteligíveis.

Eu saí então do teatro dançando, com a impressão de estar afinado com o ritmo da vida, me regozijando por não ser mais um estrangeiro neste mundo. Como disse De Pauw: “Nada de demasiada paz, porque ainda há tempo para uma outra vida, se preciso for. Para outra vida, e talvez uma vida melhor, também, mesmo que a anterior já tenha sido boa.” Uma segunda vida, não resta dúvida, fundamentalmente dependente da possibilidade de articular narrativamente os fragmentos dispersos da nossa experiência descontínua do tempo. O que, a meu ver, é não apenas a tarefa da arte, mas sobretudo a da crítica.

Plataforma de Crítica