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Mostra Internacional de Teatro de São Paulo

Woyzeck e seus planos de fuga

Foto: Ligia Jardim
Foto: Ligia Jardim

Crítica a partir do espetáculo Woyzeck, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MITsp 2015

Estamos em Cherkazy, na Ucrânia. O ano é 2008, e a estátua de Lênin – imponente vestígio da dominação soviética – acaba de ser retirada de uma das principais praças da cidade. Ao contrário do que se poderia pensar, entretanto, não é a liberdade que ganha espaço no país, mas sim uma nova corrida de diferentes impérios igualmente interessados em dominá-lo, a partir de ações que se estendem desde a política internacional até a vida cotidiana de seus habitantes.

 Não por acaso, certamente, foi esse o contexto escolhido pelo diretor ucraniano Andriy Zholdak para recriar, à sua maneira, a trajetória de Woyzeck, personagem que dá título à peça mais conhecida do alemão Georg Büchner. Apresentada pela primeira vez em 2008, mesmo ano da remoção da estátua, a montagem de Zholdak vai ao encontro de uma cidade cuja história é marcada por cruéis experimentos sociais e econômicos do estado soviético – experimentos que em muito se aproximam da dieta de ervilhas à qual Woyzeck é submetido no drama de Büchner e que acaba lhe provocando algumas visões apocalípticas. “Woyzeck vê coisas demais”, escuta-se, em certo ponto do espetáculo.

 Como se tivéssemos sido submetidos à mesma dieta do personagem, também nós, que assistimos à montagem de Zholdak, vemos coisas demais. Dispostos ante uma encenação permanentemente marcada por justaposições e simultaneidades, temos acesso a três casas de vidro e três grandes telas de projeção onde múltiplas imagens se dão a ver. Constitui-se, então, uma paisagem cênica e dramatúrgica bastante perturbadora, em que sobressaem a qualidade performática das interpretações e a criação de sentidos a partir de contrastantes composições entre cenas e imagens digitais.

 Por meio de alegorias mais ou menos diretas, vemos, por exemplo, as obscenas relações estabelecidas entre a nação ucraniana e os impérios que a ela ainda hoje se impõem. Em um complexo trânsito entre as escalas da nação e do cidadão, imagens documentais e ações cênicas igualmente chamam atenção às precárias e violentas condições de vida dos habitantes do país – dentre os quais figuram, ali, Woyzeck, sua esposa e seu filho. Mas não é somente a esta família que se refere a peça, alerta o diretor, logo no início da montagem. “São 15 milhões de pobres”, lê-se em uma das telas de projeção, revelando estatística que corresponde a cerca de um terço da corrente população ucraniana.

 Com ares de ficção científica (talvez inspirados pelos próprios experimentos aos quais o personagem é submetido), parece interessante ressaltar que o espetáculo se apresenta ao público exclusivamente em tons de preto e branco, chamando atenção a uma realidade dura e fria em que a graça e a beleza estão bem longe do primeiro plano. As únicas cores que temos ali vêm das pálidas peles dos atores e de alguns animais empalhados que ornamentam o cenário.

A animalidade, aliás, é outro elemento que rapidamente se alastra à cena, a partir de personagens que roncam, uivam e coaxam, ostentando, em alguns momentos, chifres e orelhas animalescas. Se a caça é apresentada como um hábito bastante comum na Ucrânia, também as relações humanas parecem ter sido contaminadas: tanto Woyzeck e sua esposa quanto outros personagens apresentados com menor detalhe frequentemente cruzam o palco, traçando diferentes rotas de fuga daqueles que parecem querer capturá-los.

“Eu quero ser livre. Quero viver em um país livre. Quero ter uma vida noturna”, afirma Maria, a esposa de Woyzeck, pouco antes do anúncio do início do segundo ato do espetáculo. Usando capacetes de moto, os dois desdobram os delírios de Woyzeck a outras alturas. Ao silenciar por alguns instantes as permanentes negociações políticas no gabinete do governo e nos espaços da elite, vislumbram uma possível fuga a partir de um encontro romântico em que novos horizontes, ao menos instantaneamente, parecem se abrir. Se as fronteiras territoriais parecem sitiadas e dominadas por outros impérios, a fronteira com o céu lhes parece mais amigável e promissora. “Não fique em silêncio. Fale algo”, pede a mulher. Mas Woyzeck nada pode prometer em meio a uma realidade social na qual tanto o amor quanto a liberdade não passam de utopias tão distantes quanto o céu e as estrelas.

Não tarda, contudo, até que a opressora realidade social novamente se imponha aos personagens, e Maria, tal qual a própria Ucrânia e seus chefes de estado, se deixe envolver por fios vindos de impérios políticos e econômicos que desde o início da peça rondam sua trajetória. Antes de ceder, contudo, ela oferece ao filho um sábio conselho: “Feche bem os olhos”, diz, em possível referência aos riscos de se enxergar demais.

Publicado no site da MITsp em 8 de março de 2015:

http://mitsp2015.wixsite.com/mitsp/single-post/2015/03/08/Woyzeck-e-seus-planos-de-fuga

Todos permanecem vivos

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo As Irmãs Macaluso, da Compagnia Sud Costa Occidentale, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

7 de março de 2015

No último dia 19 de fevereiro, o The New York Times publicou um artigo de Oliver Sacks. No texto, que viralizou rapidamente pelas mídias sociais, o escritor e professor de neurologia escreveu sobre a experiência de encarar a consciência da proximidade da morte por conta de um câncer terminal. Os compartilhamentos na rede talvez tenham vindo pelo fato de que, ao invés do tom pesaroso diante da finitude, o artigo propunha a superação, com uma mensagem clara de encorajamento. “It is up to me now to choose how to live out the months that remain to me (Agora depende de mim escolher como viver os meses que me restam)”. Para o filósofo existencialista Martin Heidegger, a tomada de consciência da morte nos leva a um questionamento radical diante do ser. Em As Irmãs Macaluso, montagem da Compagnia Sud Costa Occidentale, esse questionamento é trazido exatamente pela convivência com a morte proposta pela encenação de Emma Dante: os mortos continuam sendo parte de nós. Será que estamos mesmo vivos? O que determina a existência de vida?

As sete irmãs da história – Gina, Cetty, Maria, Katia, Lia, Pinucia e Antonella – saem do limbo da escuridão e passam a existir para os espectadores inicialmente todas de preto. Executam cortejos fúnebres coreografados, em bloco, mesmo diante da insistência de uma delas em se destacar do grupo com liberdade de expressão. Se a queda se instaura por alguns instantes, a força do grupo reanima, coloca de volta no prumo.

A movimentação permanece até que as irmãs assumem a posição na qual permanecerão ao longo de praticamente toda a montagem, dispostas uma ao lado da outra. Na encenação da diretora e dramaturga de Palermo, no entanto, o fuzilamento do pelotão não será pelas mãos de elementos desconhecidos, externos, sem qualquer relação próxima e que apenas cumpram ordens pós-sentença de morte. Numa reunião familiar, as lembranças podem ser muito mais cortantes e virulentas do que qualquer projétil. Os julgamentos são desfiados e se mostram inevitáveis quando os laços relacionais permitem o conhecimento profundo do outro.

O estado de energia e tensão presente no corpo das atrizes se desdobra na sonoridade da língua – o espetáculo é encenado no dialeto de Palermo – e das músicas cantadas inclusive pelos próprios atores. A partir do ritmo impresso pela movimentação do corpo, a poética do espetáculo vai se afirmando aos poucos e reverberando na plateia. As risadas com as travessuras e episódios de infância se transformam com a apreciação dos dramas que compõem a história daquela família, marcada por tragédias e calcada na tradição. O humor e a ironia travam uma relação tênue com a melancolia da percepção dos erros, com a inevitabilidade do acidente trágico, com os cuidados que deveriam ser tomados e não foram. O tempo não volta atrás, mas permanece. O presente existe enquanto desdobramento do passado, mas este último não se exaure, se estabelece como permanência e continuidade.

Na cena, a realidade vai sendo permeada pela memória, que é capaz de se mostrar cruel e dura, mas também pode trazer uma afetividade transbordante. O que foi se apresenta amalgamado com o presente. Os que morreram permanecem ali e, mesmo aqueles que parecem voltar, nunca estiveram no campo do esquecimento. O pai, que faz um grunhido de porco, dá bronca com dedo em riste, mas canta a música com a preferida, a caçula, já estava presente como narrativa. Uma das sequências de maior potência poética na montagem é o encontro da mãe com o pai. Os dois giram agarrados como crianças, eternizando um momento que pode ser ilusão, sonho, idealização.

Sem nenhum cenário ou mesmo aparatos tecnológicos, a teatralidade de Emma Dante é construída a partir do vazio. Do vazio do preto que assume outras cores, mas depois se estabelece como ausência de cor. Do vazio do silêncio preenchido pela sonoridade rápida e ininteligível do dialeto. Do vazio da narrativa que se transforma em memória. Também há muita simplicidade estampada na cena. Quando a opção é óbvia, mas eficiente: o convívio do espectador com a história que nos agarra sem que nenhum esforço se mostre excessivo, talvez só pela constatação de que, naquela família, cabem todas as famílias do mundo, inclusive a minha.

As Irmãs Macaluso: o belo, a vida e o pictórico

Crítica da peça As irmãs Macaluso, da encenadora italiana Emma Dante

MITsp 2015

Pode-se dizer, com convicção e com razão, que As irmãs Macaluso, de Emma Dante, é uma peça sobre relações familiares, sobre o lugar da mulher no contexto cultural da Sicília, sobre a vida e a morte, ou ainda sobre a condição humana. A aparente simplicidade da encenação e o conteúdo prosaico das falas são estratégias criativas do espetáculo que oferecem ao espectador a possibilidade de ver a peça a partir de diferentes recortes temáticos dentro de um círculo de grandes questões humanas. Arrisco dizer, no entanto, nesta breve reflexão feita no calor da hora, que esta também é uma peça sobre a beleza – e sobre a beleza pictórica. Continue lendo As Irmãs Macaluso: o belo, a vida e o pictórico

PERCEPÇÕES EM DESLOCAMENTO

Crítica de “De Repente Fica Tudo Preto de Gente”, por Soraya Belusi (Horizonte da Cena)

Deslocar-se. Instaurar novos espaços. Desarticular as categorias. Fazer mover os corpos. Mudar de lugar o olhar. Contaminar o outro. Desviar os comportamentos dominantes. Imperativos que se apresentam, independentemente da abordagem crítica, na fruição de De repente fica tudo preto de gente. São noções que parecem ser inerentes à obra de Marcelo Evelin e dos performers da Demolition Inc., e que provocam, entre outras coisas, a desestabilização do espectador, em sua maneira de percepção e de disponibilidade corpórea, e a própria relativização das categorias artísticas, por seu caráter híbrido e pela prioridade em estabelecer a experiência e a amplitude de sentidos.

Além das múltiplas leituras possíveis na relação com a obra – algumas delas apresentadas em conversas com professores-pesquisadores e estudiosos de outras áreas do conhecimento; neste caso, com Nina Caetano e Pedro Cesarino, respectivamente; que ofereceram chaves de aproximação através da investigação dos conceitos e procedimentos de construção da obra, assim como a noção cosmológica colocada em jogo no espetáculo –, parece despontar, no exercício de metacrítica realizado pelo Coletivo de Críticos (*), a ideia de deslocamento, seja da relação passiva com o espectador, seja pela contaminação de procedimentos de disciplinas artísticas distintas, seja, principalmente, pela atitude que demanda daquele que a assiste, tanto na tentativa de convívio quanto na pura contemplação.

Em De repente tudo fica preto de gente, não são apenas os corpos dos performers que se colocam em movimento. Mais que andar pelo espaço, o público é provocado a mover-se de seu estado habitual, a colocar sua própria fisicalidade em jogo e a expor-se também ao olhar do outro. O efeito que a proximidade entre performers e espectadores assume sobre o ato performativo, já ressaltado em teorias e práticas cênicas ao longo da história recente, parece ser também uma das forças de ação que constituem a explosão de percepções e possibilidades que De repente tudo fica preto de gente nos suscita.

Em suas ondas de movimento – da aglutinação à degeneração, da integração à individuação, da estagnação ao deslocamento -, as massas corpóreas dos performers mobilizam também estados distintos no público, do desejo à repulsa, da entrega à negação, da aproximação ao afastamento. A obra demanda que público estabeleça também um comportamento físico, tornando-se, assim como os performers, uma força propulsora das dinâmicas que se estabelecem no espaço e no tempo do acontecimento performático, permitir-se ou não o contato, entregar-se ou não ao contágio, realizar ou não o toque, deixar-se, ou não, perceber a si mesmo e ao mundo através da pele e dos rastros que nela ficam.

Como afirmou o próprio Evelin em conversa com o público, é como se houvesse uma “coreografia do espectador”, cujo fluxo de movimentos, assim como o dos performers, também assume uma característica, um padrão, um procedimento no desenrolar do espetáculo.  Não se trata mais apenas de colocar em crise a cognição do espectador ou de provocar sua transição pelo espaço, mas também de fazer-lhe assumir uma postura diante dos corpos com os quais compartilha a experiência. A ocupação compartilhada entre criadores e espectadores no platô coloca em confronto, como num ringue, as tradicionais convenções de quem age e de quem é apenas o alvo da recepção. O espectador, sua materialidade corpórea, é parte indispensável da visualidade e do movimento da cena, tornando-se parte da experiência do grupo de espectadores presentes. Fica tudo preto de gente mesmo.

Há uma escolha (ou uma recusa) a ser feita pelo espectador. Existe uma tomada de decisão do público que preexiste e ultrapassa o ato de olhar e atribuir sentido ao que se vê. Se o público não quer “empretecer”, é preciso agir. E se não quer agir, é preciso decidir ficar do lado de fora do ringue. Para esses, que se mantêm do lado de fora, caberia apenas a contemplação, a construção de um argumento e a necessidade do sentido. Para os que estão dentro não existe contemplação, mas a exposição de todos que compartilham o ato. De repente tudo fica preto de gente é, em sua relação com o espectador, ao mesmo tempo, exposição e contemplação, experiência e sentido, pensamento e movimento.

Assim como o deslocamento da percepção do espectador (sobre si mesmo e sobre a obra), o espetáculo nos levou a refletir, ainda, sobre a noção de campo expandido das artes, em que as categorizações não são mais capazes de enquadrar todos os desobramentos (éticos-estéticos-técnicos-filosóficos) da obra em questão. Retomando a ideia de convivio entre espectador e obra, espectador e espectador, espectador e performers que De repente tudo fica preto de gente proporciona, os campos do teatro e da dança, assim como da performance e da instalação, nem sempre têm a oportunidade de convívio que aqui se desenha.

A ampliação dos campos nas artes – uma ideia que pode ser vislumbrada com a leitura de A escultura no campo ampliado, de Rosalind Krauss – é também uma questão para a crítica. Se antes, uma categoria se definia por atributos técnicos específicos, hoje, esta se dá menos vertical e mais horizontal, no campo de experiências possíveis. Sendo assim, conceitualmente, temos que intervir sobre a dinâmica da experiência com forma de encontrar nela a possibilidade de sua condição. Aproximar-se de De repente fica tudo preto de gente por um único enquadramento possível seria limitador para a própria experiência relacional com a obra.

No caso desse espetáculo, o público não está meramente passivo ao procedimento, é ele parte fundamental ao movimento de construção dos performers. A obra se estabelece como a correlação entre o convívio estético do espaço, obra e observador, uma instauração que parte de processos de entropias possíveis ao entendimento de proximidade ao outro. A criação assinada por Evelin e pelos performers da Demolition Inc., porém, não nos faz mais indagar, como sintoma das poéticas híbridas que se afirmam na contemporaneidade, se o que está diante dos nossos olhos é dança ou não. Esta pergunta parece não responder outra que se impõe de maneira ainda mais potente na fruição do espetáculo, ao voltar o questionamento não somente ao artista acerca dos procedimentos escolhidos por ele, mas, principalmente, a nós mesmos, espectadores, de como nos relacionamos com o que nos é apresentado. Exige, sim, olhar para esses espaços fronteiriços como eles se instauram em suas particularidades, não determinar categorias para eles que de algum modo os limitem.

 

Equilíbrio delicado

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Metacrítica a partir do espetáculo Nós somos semelhantes a esses sapos + Ali, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?

MITsp 2014

26 de março de 2014

Fazer metacrítica de um espetáculo nos coloca numa situação estranha, mas desafiadora. Buscar o sentido ampliado, com o reforço de outras vozes. Encontrar outros caminhos e uma dicção mais original de um trabalho visto há alguns dias. E, no caso de uma obra dentro da programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp (realizada entre 8 e 16 de março na capital paulista), com os acréscimos de camadas sensoriais e interpretativas de outras montagens, conversas com pares e ímpares, palestras, outras visões. Além do fator tempo. Estar distanciado do momento da expectação não significa necessariamente uma vantagem. E sim uma dubiedade. Mas com o olhar é deslocado. “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali foram apresentados na Sala Jardel Filho, do Centro Cultural São Paulo – CCSP, em sessões lotadas e recepção calorosa do público.

Utilizei de vários sentidos de deslocamento como chave de leitura para o espetáculo “Nós somos semelhantes a esses sapos…”, da companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (As Mãos, os Pés e a Cabeça Também), que exibiu em seguida o duo Ali. Das andanças pelo palco – Hedi Thabet, Artemis Stavridi e Mathurin Bolze -, do reposicionamento do eixo gravitacional e das referências aos movimentos migratórios mundiais e suas questões de identidades. Mas o deslocamento mais importante se opera no vocabulário dos movimentos alimentados pelas acrobacias circenses, que se descolam de outras bases da dança contemporânea para criar sua singularidade.

O trabalho também processa uma transformação na percepção do que é apontado como normalidade. “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali, não se resumem a um tratado sobre a deficiência física ou sua “exploração espetacular”. Hedi Thabet (dançarino e artista de circo belga que teve a perna amputada) disse, na conversa com o público após a segunda récita, que a peça “Nós somos…” é  “jogo de situações dramáticas sobre o amor”.

Em “Nós somos…”, a triangulação do desejo começa com movimentos repetidos mecanicamente, do casal que anda em círculos pelo palco. A noiva de camisola, o noivo de camisa branca, calça e paletó pretos. A terceira figura desse trio entra para desestabilizar o idílio amoroso dual, o homem de muletas.

O título do espetáculo é um verso do poeta René Char (1907-1988), “Nous sommes pareils à ces crapauds qui dans l’austère nuit des marais s’appellent et ne se voient pas, ployant à leur cri d’amour toute la fatalité de l’univers” (Nós somos como esses sapos nos pântanos que na noite austera se comunicam e não se veem, dobrando em seus gritos de amor toda fatalidade do universo).

Esses corpos carregam possibilidade erótica, enquanto instância também de poder. E extrapolam fronteiras com subversões poéticas. Estar no mundo é repleto de ironias, em questionamento de ser inteiro, pleno e fragmentado e incompleto. O que falta. Mas a imagem da mutilação não se apresenta como obstáculo, mas sim potência.

É a partir dessa ausência, porém, que se estabelecem os jogos de multiplicação e mutação dos corpos. Nessa reinvenção e reconfiguração corporal, são compostas formas humanas e supra-humanas, mitológicas, animalescas, em que os corpos se reorganizam, se fundem, se redefinem.

Imagens de potência em constante construção – uma rainha gigante com três pernas ou o gozo da noiva lânguida, Artemis Stavridi, erguida sobre o corpo de Hedi Thabet. Com os movimentos acrobáticos exacerbando a dança contemporânea, “Nós somos…” constrói um vocabulário de movimentos que busca confrontar a gravidade e reelaborar a noção de equilíbrio.

A música é executada ao vivo por quatro instrumentistas oriundos da Grécia e da Tunísia. Eles tiram texturas sonoras que aquecem, ganham formas e sabor ou estão carregadas de melancolia. A trilha salienta passagens mais passionais, com canções da tradição rebetiko e o som folclórico do Oriente.

O discurso amoroso também está presente em Ali, mas o registro é da ordem do fraterno.  A falta exposta se apresenta como elemento organizador da coreografia. A amizade articula os jogos, armados e desarmados entre os dois homens. Vai da ludicidade das brincadeiras infantis à disputa pelo poder como energia vital. Em Ali, as muletas se transformam em objetos de ligação entre os dois bailarinos. Cumplicidade, companheirismo, afeto entre Mathurin Bolze e Hedi Thabet. Eles se desafiam e confundem, se desdobram, se encaixam numa plasticidade comovente. O corpo pode ser outro, de outro modo, outro ser vivente.

Atravessando o território do Gólgota

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Metacrítica a partir de Gólgota Picnic, de Rodrigo García, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

26 de março de 2014

O lugar do calvário virou cenário para piquenique. Mas quem seria sacrificado? Jesus Cristo não estava sozinho na crucificação proposta pelo diretor argentino Rodrigo García e sua companhia La Carnicería em Gólgota Picnic, apresentada durante a primeira edição da MITsp. Mesmo com todo distanciamento proposto pela encenação do palco italiano, é o público quem está ali enfrentando “as verdades” de uma sociedade que não deu certo; embotada pelo capitalismo desenfreado, pela sede de poder, pela guerra.

O discurso cênico não se deixa encerrar numa só análise; e isso se dá principalmente por conta da quantidade de estímulos a que a plateia é submetida. Se fosse, aliás, apenas por exercício mental, para resumir leituras e significados, excesso seria uma boa palavra. Excesso de palavras, excesso visual, excesso performático. Sem verticalidades, o texto desfia um rosário de críticas que, em algum momento, de uma maneira ou de outra, irão atingir o espectador. Mesmo aquele que, inicialmente, consegue se distanciar do discurso quase panfletário da montagem, talvez seja capturado quando a função da própria arte e os seus conceitos são questionados. Há espaço para tudo: desde os artistas que retrataram o calvário até críticas sobre o mercado de arte e as suas instituições.

Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García transita pelos limiares do panfletário, dessa construção calcada em clichês e superficialidades. Ao mesmo tempo, no entanto, é esse acúmulo que constrói a potência do discurso que se rebela contra o estabelecido e nos faz questionar as bases da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: estamos todos ali participando do mesmo piquenique, satisfazendo os nossos desejos, nos utilizando da arte para saciar as próprias falências e deficiências.

Ainda que atinja tantos alvos, o enunciador desse discurso se mostra sempre um só. Não há diálogos entre os atores, que não assumem personagens definidos. São todos participantes de um encontro na grama de hambúrgueres de que é composto o cenário. Essas pessoas não têm identidade – podem ser qualquer um de nós em discursos ditos de maneira isolada ou em confabulação e sem contrapontos advindos do embate que qualquer diálogo pode trazer. Não há outra visão, quebras ou rupturas na construção dessa mensagem. Isso se confirma também na maneira como os atores dizem o texto – em tom de conversa, às vezes de confissão, de narração. Essa linearidade entra em choque imediatamente com a profusão visual da montagem.

Rodrigo García constrói uma instalação. As artes visuais estão entranhadas no seu teatro. As projeções em vídeo e também em tempo real em proporções gigantescas que nos levam para dentro da tela; os 25 mil pães dispostos no chão; a maneira como a performance dos atores se desprende da realidade. Eles mesmos reinventam os seus próprios quadros sacros ou profanos. Eles são os personagens – mesmo que ausentes de personas definidas – da simulação da vida. Recebem a tinta no corpo como se fossem as árvores que carregam os frutos e são banhadas com inseticidas.

O pão simboliza o sagrado, o corpo de Cristo, mas também a consagração do consumismo, do fast food. A maneira doentia como a nossa sociedade se relaciona com a comida; a crise de alimentos que assola o mundo enquanto a cultura do desperdício é instaurada. As metáforas podem ser claras assim ou nos levar por caminhos desconhecidos, que chegam quanto mais nos distanciamos da obra. A potência está exatamente na possibilidade de reverberações e imagens que a encenação de Rodrigo García nos permite formatar.

As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real; mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo de maneira muito clara e efetiva.

Mesmo que o lugar de espectador seja preservado, somos provocados e desestabilizados o tempo inteiro. Seja pelo cheiro desconfortável dos pães, pelas minhocas colocadas dentro do sanduíche, pela sujeira da tinta azul e vermelha, pelo bolo da comida mastigada que, projetada na tela, nos causa embrulho no estômago e ânsia de vômito.

Quando, por fim, parece que passamos por tudo isso e a divindade bate à porta, não sabemos lidar com ela. E isso, mais uma vez, nos tira do lugar do conforto. O pianista se despe para executar a obra Sete últimas palavras de Cristo na cruz, de Joseph Haydn, mas a mudança de estado no espectador proposta pela música clássica que, inicialmente, nos conforta, também sufoca. E incomoda pensar que ela nos inquieta. Que à estética do Gólgota estamos bastante habituados, a rapidez desconcertante, uma quantidade incomensurável de estímulos, a poluição, a sujeira, a violência. O choque é tão brutal que não conseguimos absorvê-lo e continuamos nos debatendo como se não conseguíssemos sair do Gólgota para o lugar do sagrado – se é que ele realmente existe.

 

Reflexões da perturbação

Metacrítica a partir de Yo No Soy Bonita, de Angelica Liddell, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2016

26 de março de 2014

Angélica Liddell não se identifica como feminista, embora as questões invocadas em sua obra coincidam com a pauta do movimento. A distinção provavelmente está nos modos como a artista espanhola as problematiza. Causa estranhamento, à primeira vista, a postura da performer em Eu não sou bonita. Isso se deve a um discurso margeado por estereótipos do ser-homem e ser-mulher como dois papéis sociais definitivos e associados, respectivamente, ao binômio agressor-vítima, sem escapatória. Contudo, como se disse na ocasião de Escola, do chileno Guillermo Calderón, é preciso desconfiar dos discursos que aparentem uma integridade. E o de Liddell, por mais que brade uma radicalidade, não é menos poroso.

É preciso desconfiar também da performer e de sua construção cênica autorreferencial. Os elementos (supostamente) reais da narrativa e da materialidade da cena deixam de sê-lo quando tomados como componentes de uma poética, ainda que mantenham um apelo e uma força de realidade. A fabulação de um abuso sexual não reverbera com a mesma contundência de um depoimento de abuso que se entenda como real. Um cavalo vivo em cena ultrapassa o simbólico (sem deixar de sê-lo), é uma força da natureza, domesticada só em parte, posto que não obedece a vontade da performer e sua ação comporta o imprevisível – a ameaça do perigo. É com essa sensação do real e sua capacidade de despertar no espectador uma percepção aguçada, urgente, que Liddell joga.

Quando se apresenta como uma mulher indelevelmente marcada por um abuso sexual sofrido na infância, a artista instaura essa zona imprecisa entre real e ficcional e de indistinção entre seu corpo fenomênico e a figura dramática, de modo que o público tende a identificar a figura que se apresenta como a própria Liddell – cujo sobrenome de batismo é outro; este emprestou da verdadeira Alice (Liddell) que inspirou Lewis Carroll. Tomado como real o ato de abuso, está o público diante de uma vítima real e, portanto, o posicionamento que lhe é demandado não se acomoda numa relação palco/plateia ativo/passiva. Ileana Diéguez (2011) observa que “o retorno ao real faz um apelo ao entrecruzamento entre o social e o artístico, acentuando a implicação ética do artista”. A do espectador também.

A performer-atriz Angélica Liddell ocupa então uma posição liminar, no “entre” do tecido cultural, cujas potencialidades previstas por Turner (1988) comportam a outorgação de poder aos fracos, dentro de experiências arriscadas no interstício entre dois mundos. O corpo de Liddell não é significante, mas produtor de presença e de sentidos, articulados num campo de ações concretas, poéticas e simbólicas que permitem a reelaboração simbólica do trauma e o empoderamento daquele antes assujeitado.

Liddell opera na zona do desconforto. O mal-estar é uma chave dramatúrgica importante em todos os aspectos da encenação. Ao público, oferece-o, entre outras formas, na narrativa imagética com que descreve o desejo sexual por crianças, sugerindo à imaginação daqueles que a ouvem imagens geradoras de intenso mal-estar por sexualizar o corpo infantil e deslocar o espectador para a posição do desejante e, portanto, potencial opressor.

A artista transita por territórios tabus também na complexa cena de insinuação sexual ao cavalo. Esse momento deixa latentes ao menos três leituras contraditórias. Há uma relação de poder exercida por Liddell ao portar um corpo que deseja (justamente o que é impedido às mulheres na construção cultural que ela denuncia). Uma relação de impotência diante do agressor (a pequenez da artista-criança-vítima diante cavalo-soldado-agressor). E uma relação de mal-estar que invade a sexualidade feminina na nossa cultura. A impossibilidade de síntese – a coexistência dessas (e outras possíveis) leituras concomitantemente – está na base da força maior que a obra tem: a de plantar angústias e incômodos que a mantenham fermentando na mente e no corpo do espectador dias além.

A domesticação exercida pela cultura sobre o corpo feminino e que o coloca à mercê do desejo doentio de posse e subjugação por parte do macho é alvo de críticas diretas no campo discursivo que expõem as entranhas do funcionamento sociocultural determinante do universo limitado de possibilidades do masculino e do feminino em uma sociedade patriarcal e dicotômica.

Liddell sintetiza essas carapuças da divisão binária das identidades de gênero em dois extremos: à mulher cabe somente ser boa ou má chupadora (a legitimação está no prazer masculino, nunca no feminino); ao homem, ser o mal. Esse discurso extremista se constrói pelo recurso a símbolos que acenem para realidades mais amplas. Dois deles: a fotografia de uma mulher de beleza “padrão” praticando sexo oral remete às imagens publicitárias e pornográficas e provoca em parte do público feminino risos desencaixados, que entram em fricção com o discurso (e Liddell parece buscar essas arestas), apontando para a manutenção da crueldade machista também no comportamento feminino; e a cruz florida, em referência às mais de mil mortes e desaparecimentos (e outros incontáveis casos de estupro) de mulheres em Ciudad Juárez, no México, cenário-símbolo do ódio à mulher. Liddell se volta contra uma sociedade patriarcal que perpetua a violência de gênero e trata os espectadores como cúmplices e agressores – culpados.

A violência autoinfligida pela artista por meio de cortes novamente faz irromper o real em cena. Ao mesmo tempo, a ação pesa como símbolo da imolação praticada contra a mulher historicamente. Há ainda uma possibilidade de leitura psicanalítica (Liddell tem formação em psicologia) que a remeta à atitude masoquista, pela qual a posição de gozo coincide com a posição de submissão na articulação entre erotismo, dor e subjetividade, além de um ato de multiplicação da dor para exercer controle sobre ela. Liddell se aproxima de uma teatralização do excesso, dando extravasamento à violência e exibindo os martírios da carne, para colocar diante do espectador a “evidência espetacular do sofrimento”, como diz Diéguez, oferecendo-lhe a escuridão do trauma.

Na forma hiperbolizada de representação do sofrimento por meio da restauração da violência contra si a cada apresentação de Eu não sou bonita e do discurso extremista sobre o binômio homem-mulher, cabendo ao primeiro palavras de ódio, vê-se que Liddell se afasta do exercício da alteridade rumo à exacerbação do eu: não lhe interessa a voz do “outro” (homem) quando o outro por definição é a mulher. Não há dois sujeitos quando um é assujeitado. A artista busca a confusão entre essas categorias de sujeito e objeto, sugerindo a partir de si a identificação com toda história da violência de gênero. A denúncia do horror imposto à mulher é tensionada até o insuportável à medida que Liddell encena o limite no qual não há saída para o homem além do papel de opressor, nem para mulher além do de oprimida. O mecanismo terapêutico não se direciona à artista, mas ao público, uma vez constituído por Liddell o espelho dessa limitação à qual cabe ao público – não à artista – reagir.

A caracterização com longos cabelos e vestes pretas, a afirmação da feiura e o ódio ao masculino aproximam Liddell ainda da imagem estereotipada da bruxa – aquela ilustrada em livros infantis e perseguida pela Inquisição. Categoria na qual a mulher que não se encaixasse aos padrões culturais vigentes poderia ser aprisionada. Eu não sou bonita é uma tomada de posição: a escolha não pelo imaginário da princesa, destituída de erotismo e de poder, mas pelo da bruxa, portadora de um poder acima dos domínios dos homens. Essa leitura, como observou a crítica Daniele Ávila, permite tomar “as manifestações de ódio e as acusações proferidas na cena como parte das invocações de um gesto de bruxaria”, que “também se dão em um plano simbólico-performático”. Liddell agencia outros saberes além dos discursivos e terapêuticos, dominados num contexto cultural logocêntrico e patriarcal. Sua explosão das paredes que limitam o ser mulher e o ser homem (dois componentes do mesmo binômio, afinal) passa pelo recurso às forças do corpo. Simultaneamente, uma presença imanente e uma presença transcendente.

Ps. A MITsp trouxe, entre outras reflexões tantas, a experiência redescoberta do teatro como acontecimento. Enquanto o crítico Luiz Fernando Ramos reafirmou a importância de que a crítica veja além dos “acidentes” da apresentação, lançando um olhar sobre o espetáculo que constitua uma história do teatro, há de se considerar que é justamente no acidente que o teatro se faz, ou seja, não existe na idealização prévia ou posterior do que o espetáculo deveria ser, mas somente em seu acontecer num tempo-espaço de encontro com o espectador.

Assistir ao episódio dois de Bem-vindo a casa num grupo de 15 pessoas das quais a maioria não viu o primeiro episódio transforma o convívio e, consequentemente, a experiência. Assistir ao espetáculo Eu não sou bonita com uma interrupção em seu decurso altera também a experiência, portanto, o espetáculo. Pode-se, quiçá, projetar o que seria o mesmo espetáculo no campo das ideias. Mas a percepção se dá no mundo físico. A irrupção do real pela intervenção dos manifestantes pró-animais, que, por minutos, coabitaram o palco com Liddell, sendo inicialmente aceitos sem surpresa pela artista, reforçaram o caráter de realidade do que acontecia sobre o palco e a impressão de que era a própria Angélica quem agia, ressaltando o corpo fenomênico sobre o corpo representacional. Outro efeito, provavelmente mais grave do ponto de vista da expectação, foi a quebra de um desenho de forças seguido pela artista, que afeta justamente a dimensão não-semiotizável da experiência teatral, fundamental em um trabalho como Eu não sou bonita.

Tragédia da Imaginação

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Hamlet, da companhia lituana OKT, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

19 de março de 2014

Hamlet, da companhia lituana OKT, principia com uma pergunta: “Quem é você?”, variação do encenador Oskaras Koršunovas para a frase da peça de William Shakespeare “Who’s there?”. O questionamento é feito pelos nove atores da trupe que, de costas para a plateia, se miram no espelho. Vão do sussurro ao grito, num crescendo. O público também está refletido. O cenário é um camarim com bancadas móveis que se transfigura no reino da Dinamarca. O sistema de espelhos compõe ângulos reveladores, como o do pai de Hamlet fantasma (Dainius Gavenonis) que se olha e vê Claudius (que ele matou) dentro de si, numa alusão ao fratricídio Caim e Abel.

O diretor não inventa Elsinore no palco. Desvia do espaço vazio e compõe um local onde são sobrepostas as máscaras (ou maquiagem) como tradução do presente. Nesse metateatro, Elsinore é criado na imaginação do espectador. Hamlet traça esse enfrentamento com os meios teatrais a partir de sua consciência. Nesse jogo, busca se apossar da consciência do rei, o fantasma, o Old Hamlet, para fazer justiça e do tio Claudio para executar sua vingança. Mas como manter-se humano neste mundo desumano de Elsinore? Essa pergunta ecoa nos jogos de palavras e nas redes de intrigas.

Hamlet de Koršunovas é uma tragédia da imaginação. Isso é reforçado pela expressão Mind’s eye utilizada por Hamlet, quando diz que parece que está vendo seu pai e acrescenta: “com os olhos da alma, Horácio” (in my mind’s eye, Horatio). O protagonista opera uma memória visual ou imaginação. O encenador seduz o público para a “ratoeira” da imaginação de Hamlet, imprimindo camadas ou apagando fronteiras do teatro, o espaço da ação, atores e papéis. A música de Antanas Jasenka tem um desempenho fundamental.

Há algo de podre no Reino da Dinamarca e um enorme rato branco que mostra a cabeça e pousa a cauda nas mesas de maquiagem. O roedor volta a aparecer em vários momentos da montagem. O mundo é um teatro em que se finge e mente e essa encenação de Koršunovas não chega a iluminar possíveis lugares ainda obscuros de Hamlet. Mas traz em si acertos de conta com o passado e muitas dúvidas com relação ao futuro. Tem as referências da cultura pop e as potentes interpretações dos atores. E chama para um debate sobre camadas de representação em fogo brando.

O famoso “Ser ou não ser” é dito duas vezes pelo ator Darius Meškauskas. Na primeira vez ele joga e mente como “ser” melancólico. Na segunda vez, furioso, diante do “não ser”. Oskaras Koršunovas insiste com seus conjuntos de imagens sobre o tema do artifício que a realidade não existe mais. Apenas fragmentos dela estão espalhados e refletidos em vários espelhos.

 

Espaços para desconfiar do discurso

Crítica de Escola, de Guillermo Calderón, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2014

16 de março de 2014

Até o torturador cria para si histórias que o convençam de que faz o bem. Dita quase com essas palavras em Escola, tal frase é indício da perspectiva complexa com a qual o diretor Guillermo Calderón aborda temas políticos em espetáculos como Villa+Discurso, apresentado no Brasil em 2011 e 2012, e este Escola que ora traz à MITsp. É preciso desconfiar dos discursos. Deles escapam contradições, que revelam a concorrência de forças sob a superfície de uma convicção.

Em Villa, tais forças se mostravam mais evidentes na dramaturgia, separadas em opiniões distintas sobre o melhor modo de representar a memória da violência cometida durante a ditadura chilena a partir de um problema concreto: a construção de um museu. O conflito de pontos de vista estruturava as ações e se dava a ver na superfície dos discursos; e o encaminhamento dado a eles depunha sobre o caráter ilusório de um consenso ou uma verdadeira solução.

Parece ser dessa descrença no consenso que Calderón parte em Escola. Embora se ouça somente a perspectiva de um grupo de guerrilheiros em formação, a abordagem passa longe do dogmatismo. O teor reflexivo agora se encontra agora nas zonas quebradiças do discurso sustentado precariamente.

Personagens com os rostos ocultos por capuzes recebem ensinamentos para ir à luta armada contra o regime ditatorial nos anos 1980. Aprendem noções primárias de capitalismo, tiro e conspiração. O ensino ao qual o público é igualmente exposto sofre das limitações comuns à aprendizagem na escola: a veiculação de um discurso quase catequizante, do qual o aluno-espectador há de desconfiar por si mesmo. A escola surge como esse lugar de uma verdade que instrui, mas de cuja solidez se deve duvidar.

O trabalho de Calderón demanda um espectador não ingênuo e trabalha com concepções brechtianas livremente recriadas pelo encenador chileno. Os desencaixes entre cenas rompem a fluidez da fruição, incitando a leitura crítica a partir de sutilezas e subtextos. A defesa de uma forma de organização popular que faça uso da violência para instaurar um novo estado social, por exemplo, esbarra no baixo nível de formação política desses militantes, que pontualmente manifestam ingenuidades e contradições. Mesmo a legitimação da violência ganha sombras absurdas frente à descrição do funcionamento do revolver e do explosivo. A encenação realista, em espaço diminuto e cenografia econômica, atesta ainda certa ética da representação praticada por Calderón, que se esquiva à espetacularização.

Em sua exposição de uma célula de resistência popular, Escola ganha um caráter de urgência pelo diálogo com o contexto atual da América Latina, no contraponto de um passado ditatorial com as manifestações de descontentamento político do presente. A formação política deficiente, aliás, é um dos inúmeros pontos de aproximação possível do espetáculo com os protestos iniciados em junho passado no Brasil. Outro é o questionamento em relação à ditadura ter cedido a um governo falsamente democrático, que ainda operaria sob princípios autoritários e interesses alheios à população.

Calderón dispõe um lugar especial ao espectador: o de um encontro com uma ou mais visões de mundo que não tentem convencê-lo – posto que o convencimento seria um autoritarismo – mas demandem dele o assumir de uma postura. Essa operação se torna mais potente na medida em que a dramaturgia contempla um endereçamento ao futuro, ao pressupor que aquele momento político decisivo para o Chile seria retomado adiante e que a luta popular tem o exemplo de erros e acertos de um passado não muito distante.

Mesa-redonda Crítica da crítica na MITsp 2014

Além da cobertura crítica realizada na MITsp 2014, no contexto do Coletivo de Críticos, os integrantes da DocumentaCena participaram da mesa-redonda intitulada Crítica da Crítica, com Kil Abreu, Luiz Fernando Ramos e Edelcio Mostaço.

O pensamento crítico sobre a cena contemporânea desenvolveu-se muito nas últimas décadas, mas tem ficado restrito aos circuitos especializados. Já a crítica direcionada ao espectador parece precisar permanentemente se reinventar diante da crise sem fim de interesse e espaço dedicado a ela nos veículos de comunicação tradicionais. De onde vem essa contradição? O teatro participa cada vez menos dos grande debates nacionais por ter reduzido poder de impacto e por isso tem se tornado objeto de especialistas? As transformações recentes que impactam as mídias impossibilitam o adensamento do pensamento crítico e pasteurizam as formas de arte em circulação privilegiando suas formas massivas? A crítica teatral em jornal vai acabar? A internet e a possibilidade que ela oferece de alcançar os espectadores diretamente é o futuro da crítica teatral? As formas coletivas, polifônicas, colaborativas podem contribuir para recolocar o pensamento crítico em diálogo com os artistas e as obras e oferecer ao espectador repertório para sua recepção em tempos de criações compartilhadas?

A mesa-redonda foi realizada no dia 15 de março de 2014, no Itaú Cultural.

Foto: Felipe Vidal.
Foto: Felipe Vidal.