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Sobre Haiti e Brasil, os outros e nós mesmos

Crítica sobre o espetáculo Cidade Vodu, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda? / DocumentaCena)

MITsp 2016

9 de março de 2016

Uma haitiana canta Abecedário da Xuxa, depois da projeção de um vídeo que registra um militar brasileiro da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah) ensinando a música para crianças e jovens do país caribenho. O trajeto que ela faz enquanto canta se dá na noite escura, no chão de terra batida, enlameado; vestida de branco, cabelos longos, ela anda em meio a prédios em ruínas. Essa foi uma das cenas mais emblemáticas do espetáculo Cidade Vodu, do Teatro de Narradores, que estreou na segunda-feira (7) na Vila Itororó Canteiro Aberto, na Bela Vista, dentro da programação da 3ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp).

A história do Haiti é marcada pelas consequências do colonialismo e do imperialismo que tanto assolaram a região desde 1492, quando Cristóvão Colombo, defendendo a bandeira da Espanha, chegou por lá. Os índios que viviam naquele território foram completamente dizimados. No século XVII, já sob a possessão da França, a mão de obra africana foi escravizada para o cultivo da cana de açúcar. Acentua-se então uma linha do tempo pontuada por revoltas, repressões e golpes. Na esteira da Revolução Francesa, os africanos se rebelaram e a abolição da escravatura foi conseguida no ano de 1794. A independência do país veio em 1804: o Haiti foi o primeiro país latino-americano a se declarar independente e a primeira República Negra das Américas. A libertação da América espanhola e portuguesa por Simón Bolívar teve grande apoio do Haiti, que emprestou soldados, armas e munição ao venezuelano.

A política colonialista europeia e, depois, norte-americana, continuou em ação no país. Os Estados Unidos, por exemplo, invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Em 1957, inicia-se um regime ditatorial, de repressão militar, que massacrou a população do Haiti. Em 1990, foram realizadas eleições presidenciais livres, mas o padre esquerdista Jean-Bertrand Aristide, que havia assumido o poder, foi deposto por um golpe militar. A Organização das Nações Unidas então impõe sanções econômicas ao país e, depois de um curto período de volta ao poder, Aristide é novamente afastado. O país passa então pela intervenção da ONU.

No artigo O Legado dos Amaldiçoados: uma breve história do Haiti, publicado na Carta Maior, Antonio Lassance faz, em poucas linhas, um resumo bastante significativo: “ (…) A região onde se encontra o Haiti viu, ao longo dos séculos, o massacre de sua população indígena, a escravização de negros trazidos pelo tráfico, a divisão artificial em domínios fabricados ao gosto do colonizador (espanhol e francês), sua separação definitiva em dois Haiti, de um lado, República Dominicana, de outro, as tentativas de reconquista colonialista, a permanente intervenção norte-americana e frequentes golpes de Estado, entre eles o que deu origem a uma das ditaduras mais abomináveis que se pode mencionar (de Papa Doc e Baby Doc, de 1957 a 1986)”.

Desde 2004, o Brasil comanda a ocupação militar no Haiti. A Minustah tem uma ação contraditória, que revela interesses econômicos e políticos, principalmente por parte dos Estados Unidos, enquanto o Brasil assume uma posição de subimperialismo. Como se não bastasse, em 2010, um terremoto assolou o Haiti e, claro, agravou os problemas sociais do país. Segundo números divulgados pela imprensa, mais de 250 mil pessoas morreram e um milhão de pessoas ficaram desabrigadas. Desde então, o Brasil tem recebido imigrantes do Haiti, que vêm em busca do sonho de uma vida mais justa. Chegam aqui e se deparam com a falta de assistência, o racismo, a exploração do trabalho.

Bom, diante de todas essas informações, voltamos ao espetáculo Cidade Vodu, que pode ser visto como um ato de resistência. Se o povo negro se armou e se revoltou contra a escravidão, imprimindo ao colonizador branco uma derrota histórica, os caminhos aqui são outros. São também da ordem da luta contra o estabelecido, uma realidade de opressão, racismo, xenofobia, mas trilham ainda os passos da cumplicidade, ao simplesmente tirarem a plateia de um estado de desconhecimento. Os haitianos (alguns já tinham envolvimento com arte, são músicos, cineastas, outros não) vão eles mesmo à cena para retratar a sua história, para contar as suas dores, para ressaltar e festejar a sua cultura. A presença dos haitianos é uma das forças matriciais do espetáculo; não acompanhamos ali versões atravessadas pelas interpretações ou ressignificações que os brasileiros poderiam ter a partir da convivência com os caribenhos, mas visões dos próprios haitianos.

Peça Cidade Vodu
Cidade Vodu – MIT 2016 – Foto por Mayra Azzi

Os atravessamentos do discurso se dão noutro campo: de que as narrativas podem ser múltiplas e se encaixam em diversos contextos. A escravidão dos negros no Haiti pode revelar muito sobre a escravidão no Brasil, por exemplo. Há ainda deslocamentos no próprio tempo na narrativa, como as questões que dizem respeito ao espaço onde foi apresentado o espetáculo, as casas em ruínas na Vila Itororó. Quem eram as pessoas que moravam ali? Em que circunstâncias elas foram obrigadas a deixar aquele lugar? De que forma reproduzimos o modelo opressor-oprimido nas nossas relações cotidianas?

Estamos falando de um teatro que consegue alinhavar relações estreitas e profícuas tanto com o real quanto com o político, que nos leva a encarar os questionamentos de como o teatro pode dar conta das situações cotidianas de opressão. A concretude desse encontro, pela forma direta como ele se estabelece, leva à construção de uma representação significativa da realidade. São questões que se desprendem do espetáculo e permanecem reverberando, embora a experiência da fruição estética na estreia da montagem tenha sido prejudicada por problemas principalmente de dimensão técnica. Num espetáculo que dependia da linguagem – e que respeita as línguas faladas pelos haitianos -, as legendas não funcionaram em diversas cenas, ou não podiam ser lidas, o que não permitiu o entendimento de muitas situações.

Outro apontamento que precisa ser colocado é a própria questão da itinerância proposta pelo espetáculo, que desperta possibilidades estéticas e significações muito interessantes. Se pensamos, por exemplo, no próprio percurso tortuoso e dificultoso que muitos haitianos fizeram para chegar ao Brasil, ou, mais diretamente, na devastação do país pós-terremoto. Ainda assim, o público não conseguia acompanhar todas as cenas; muitas dimensões de compreensão e de embate foram perdidas por conta das dificuldades do percurso e, também, da fragmentação do espetáculo. A informação de que um dos haitianos perdeu mulher e filho no terremoto foi dada no meio de um momento festivo, de congraçamento com a cultura do Haiti, por exemplo.

Ainda assim, mesmo com todos os problemas da encenação, a experiência é potente, porque nos leva ao confronto. Porque enxerga o espectador como uma testemunha, que vê uma situação se descortinando a sua frente; e, a partir daí, pode construir suas próprias reflexões. A dignidade com que a história é contada nos coloca diante de nós mesmos, a partir das vivências, da história e do olhar do outro.

Registro – Enquanto escrevia esse texto sobre o espetáculo Cidade Vodu, soube da notícia da morte do percussionista Naná Vasconcelos. Um negro de 71 anos, ganhador de oito prêmios Grammy, que reverberava como ninguém a potência ancestral da música. Lembrei, por exemplo, de uma conversa que tive com Naná quando ele ainda idealizava o projeto Língua Mãe, que reuniu crianças da América Latina, Europa e África. Enquanto escrevia, o pensamento estava de alguma forma em Naná. Saudando sua arte, sua história, seu legado

Margem de erro, para mais ou para menos

Foto: Caio Nigro/Estúdio Zut
Foto: Caio Nigro/Estúdio Zut

Crítica do espetáculo 100% São Paulo, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2016

7 de março de 2016

Cada uma das 100 pessoas escolhidas para participar do espetáculo 100% São Paulo se enquadra em um ou mais critérios estatísticos que refletem a demografia da cidade, com base em dados do censo. Esse recorte busca traçar um determinado mosaico da maior e mais rica cidade da América Latina. Esse conjunto de desejos múltiplos e fragmentados, hábitos e visões de mundo tão diversos não resulta numa identidade coletiva. A presença desses habitantes de pontos diferentes da metrópole reforça a complexidade que as estatísticas não conseguem traduzir. Fica na margem do irrepresentável. Mas neste nosso mundo marcado pela “crise dos representados”, o projeto 100% City dialoga com diferenças e abre espaço para a alteridade no palco.

Pela primeira vez o Theatro Municipal de São Paulo abriga uma encenação da programação da Mostra Internacional de Teatro – MITsp. E é bastante simbólico que seja com um trabalho que busca espelhar a população da cidade com não atores em cena, ou “especialista/expert de sua própria vida”, como definem os diretores da Companhia Rimini Protokoll, dirigida por Helgard Haug, Stefan Kaegi e Daniel Wetzel.

São pessoas com cara de gente comum que trazem dados biográficos ou testemunhais para dialogar com a pólis em que moram e com a plateia. Esse acesso ao real para a construção de sentidos também passa por uma tensão entre o real e pitadas de ficcional que cada um  leva para o palco.

Esse teatro do real quer sentir a pulsação do mundo, nesse caso do espaço recortado da São Paulo por seus habitantes, muitos que nasceram em outros estados e até estrangeiros. Essas reflexões sobre a cidade rechaçam a ideia de uma realidade unitária. A presença dessa alteridade torna possível entrever a miscelânea de pontos de vista. Mas isso não é muito garantido, pois os “especialistas” podem ficcionar a verdade sobre si. Mas, para os diretores, não é isso o que mais importa, e sim como cada um desses atuadores se apresenta e o papel que assume para entrar no jogo. São eles que constroem um sentido com suas presenças.

Não sei se essa estatística viva, com apresentação e enquetes sobre política, religião, sexualidade, hábitos e outros, corresponde às realidades tão díspares de São Paulo. Mas essa prática criativa carrega uma potência de envolvimento e da experimentação estética por outros atores sociais, permitindo transgressões da representação. É emblemática a pergunta se alguém daquele grupo já havia pisado no palco do Theatro Municipal, deu zero por cento. Talvez, se a pergunta fosse se algum deles já tinha ido ao Municipal como espectador revelasse mais.

Os fluxos de pertencimento dos participantes entre uma situação e outra, as cartas embaralhadas e as sobreposições dessa prática performativa convocam dimensões críticas com a aproximação desses desconhecidos entre si para partilharem opiniões sobre várias questões objetivas e subjetivas. Isso faz oscilar entre o que representa e o que não representa os que estão do lado da plateia.

No cenário, um grande círculo verde, que apresenta detalhes filmados de cima. O caráter cíclico da vida é mostrado em várias ações.

Durante os seis ensaios realizados com o grupo e as duas apresentações, o coletivo promoveu uma proximidade, sinalizando para o entendimento de respeito entre os desconhecidos. Isso reverbera. A saída temporária do anonimato de cada um deles reforça ações políticas de tomada de posição.

Agir em tempos mortos: o teatro e a natureza-morta de todos os dias

Crítica do espetáculo Still Life (Natureza-Morta), de Dimitris Papaioannou, , por Mariana Barcelos (Questão de Crítica / DocumentaCena)

MITsp 2016

 

Natureza-morta. Natureza, da biologia, do corpo, organismo. Morta, o que já foi vivo, a concretude no estado físico da matéria, dimensão só apreendida no tempo. Ao manter o olhar para obras categorizadas como natureza-morta, dois traços inerentes ao gênero conduzem a narrativa entre a materialidade do objeto (comida, corpo, flor) e o tempo posto até a morte. Um traço é sólido, o outro estendido. A nomenclatura em português remete a algo findo (morreu, ponto); em inglês, os objetos aparentemente inanimados têm sobrevida, still life.

Still Life (Natureza-Morta), espetáculo com direção do grego Dimitris Papaioannou, estreou dia 4 de março no Sesc Vila Mariana, na programação da 3ª MITsp. A tensão latente no título (que em princípio é apenas a dobra do mesmo nome em língua diferente) dá a ver, já de antemão, a questão que atravessa as cenas da montagem, nas quais, por meio de exaustivas repetições, sete atores implicam-se em manter vivo o objeto morto.

Justificados pelo mito de Sísifo, estar morto aqui pode ser tomado como não sair do lugar, embora em movimento. Ou, numa inversão à lógica própria da natureza-morta, o corpo que se mexe está vivo (tentando), o tempo gasto com repetições é o que morre. Como gerar ação no tempo-morto e olhar a natureza-morta sob a perspectiva da ação dramática, do teatro, não da pintura. Como agir na imobilidade do tempo. Papaioannou, e esta é a proposição deste texto, constrói uma refinada dialética: corporifica o tempo enquanto dilata o corpo (dos atores) na duração das cenas.

O espetáculo começa com a luz da plateia acesa. Sentado ao centro do proscênio numa cadeira escura, o ator manuseia uma pedra enquanto olha para o público em aparente neutralidade. Lentamente a luz da plateia se apaga, o palco, vê-se agora, é um todo preto, do chão ao teto que, ainda sem nitidez, revela uma bolha negra brilhante sobre todo o tablado. Um sujeito entra e retira a cadeira do ator, seu corpo, impassível, permanece na mesma postura de sentado, mas, agora, é visível que para estar ali em ilusória imobilidade é necessário muito esforço, trabalho físico. Mesmo quando parado, vê-se que está atuando – é possível que a ideia de ação seja tomada por esta imagem, se não houvesse ação, o corpo cairia. Ação é força.

A natureza-morta no teatro é surpreendida pela condição primordial da ação. Mesmo na imobilidade. E a contar pela física presente nos corpos dos atores, agir (estar vivo) é exercer força sobre. Aos poucos o ator sai da posição, caminha até o fundo do palco e desaparece. Tempo. Sons de objetos caindo, tipo azulejo, som de obra. Tempo. Caminha do fundo, em direção à frente do palco, outro ator carregando uma grande parede nas costas, bem grossa na largura, quase o dobro da altura do ator, comprida para as laterais de modo que seria impossível abraçá-la. Um peso-morto sobre as costas. Durante um tempo superior à necessidade de entendimento da ação o ator forçará seu corpo contra a parede com o objetivo de mantê-la em pé. A constância das cenas segue esta condição, a de estravar o tempo do entendimento, sobrando por fim apenas a materialidade dos objetos e do corpo em tensão. O esvaziamento do sentido narrativo das operações desenha um tempo posto em lentidão, em que vislumbra a qualidade estática do quadro pictórico. O tempo não tem cronologia corrente, seu corpo é definido numa hora parada, suspendida, em que sucessivas ações se repetem como que no mesmo instante. Um tempo-corpo que, na vida, o olho nu é incapaz de perceber. Como que numa câmera extremamente lenta (negativa), parada num só segundo, no qual é possível ver infinitas ações se processando em repetição – eternidade.

Os condicionantes desta temporalidade só se sustentam, portanto, na crueza da fisicalidade da matéria, sem significações. Ou se tem sons produzidos pelos objetos, ou silêncio. Os sons são ainda enfatizados pelos microfones dispostos no chão do palco, existem na condição de materialidade das ondas sonoras – quando cacos de azulejos caem da parede, faz-se barulho, quando fitas adesivas são puxadas do chão, idem. A iluminação vai do clarão à escuridão, sem semântica. No cenário, as superfícies são sólidas, líquidas ou gasosas. A parede é um bloco, o plástico em formato de rede, que no início do espetáculo era uma bolha negra brilhante no teto, aos poucos é iluminado, e transparece na maior parte da peça com a paradoxal função de estocar fumaça. A parede sólida, por um lado, se desfaz em pedaços, a fumaça, por outro, ganha corpulência na moldura do plástico e, por vezes, transforma-se em outros substantivos: nuvem, mar, célula; todos disponíveis ao toque, podendo mudar de forma com o contato de uma pá.

É o tempo dilatado que aproxima o espectador da materialidade, ainda que a narrativa, poderosa, suba à superfície da cena como pequenos relâmpagos. Dilatar o tempo é como ver pelo microscópio e perceber os detalhes das coisas antes do organismo – antes da causalidade, da narrativa, de dar nome aos órgãos. É a parte em que tudo é uno, corpo que também é parede, que é tempo. Corpo-parede-tempo, composição que só se modifica pela alternância dos estados físicos.

Uno e concreto, como o corpo dos atores. Com roupas da mesma tonalidade, que pouco se distinguem entre si, remetendo por vezes à vestimenta de trabalho, os atores estão no palco como massa de um só, bloco de um, coro. Não tem “eu”, não tem personagem, figuras etc., estão no palco atuando, apenas, agindo. Tomando recorrentemente um o lugar do outro no que seria uma mesma partitura física/coreografia, seus corpos se conectam e apresentam-se como único. A imagem mais forte que pode ser descrita como exemplo é a sequência em que os atores sucessivamente atravessam pelo buraco do centro da parede; um vindo da parte de trás, o outro “entrando” pela frente, os desenhos dos corpos revelam o jogo de quebra-cabeças no qual apenas um corpo inteiro pode aparecer, ainda que formado por partes de mais de um ator. Assim, as partes de cima do tronco pertence a um, as de baixo a outro ator, e outras múltiplas alternâncias neste sentido se dão. O corpo é um, mesmo fragmentado, expandido por todos.

Metáfora contundente das repetições diárias, do trabalho massivo, o rolar eterno da pedra de Sísifo, o espetáculo pode ser visto como esta crítica que se opõe a viver sob a restrição do mito. Porém, se o mito (a narrativa) é o que te faz morrer, still lifeé a força que te mantém vivo (agindo) em tempo-morto. O tempo na vida não se configura em suspensão, fugir do mito, então, está mais próximo da utopia. Em vez de estar fadado ao inevitável peso da história, propõem-se uma autonomia da narrativa, mas em relação dialética. A rotina está lá, morta, você não.

O peso da parede sobre as costas dos atores deixa no máximo um rastro de pó. A parede, inclusive, não passa de uma espuma de grandes proporções. O morto, ainda, não deixa de ser bonito. Na penúltima cena do espetáculo, os atores trazem até a frente da plateia uma mesa na qual se sentam para uma refeição tipicamente mediterrânea. Frutas, frutos, louças, objetos inanimados dos quadros de natureza-morta. O aroma das ervas e azeitonas é bom. A cena simula uma refeição entre amigos, os atores gesticulam como se estivessem conversando, mas não há som. Aliás, não há fala no espetáculo, a voz não se propaga em tempo parado. E não é preciso ouvir a voz neste caso, porque qualquer um é capaz de supor as banalidades que são ditas nas refeições cotidianas frugais. Qualquer um ouve este silêncio. A voz da narrativa está nas cabeças dos espectadores, sem fuga. A cena bonita é um exemplo inconfundível da rotina morta que temos prazer em repetir.

A política ainda desperta paixões

Crítica sobre o espetáculo Ça Ira, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda? / DocumentaCena)   

MIT 2016

7 de março de 2016

A política pulsa. Tensiona nervos, acelera o sangue e diz respeito a todos nós.  Ça ira, espetáculo do francês Joël Pommerat, com a Compagnie Louis Brouillard, conduz o público para o núcleo dos acontecimentos que urdiram a Revolução Francesa. É um estímulo ambicioso, que insere a plateia no coração dessa aventura humana, em turnês temporais que projetam o ontem no hoje e trafegam em várias camadas. Em 4h20, três atos, o dramaturgo e encenador leva atores e plateia a uma exaustão revigorosamente crítica, depois de uma avalanche de palavras encarnadas de ações da política e do poder. Do desejo de mudança do homem no seu tempo.

A peça inicia com a convocação dos Estados Gerais em 1788 e segue até a noite de 4 de agosto de 1789, quando os privilégios são abolidos e é legitimada a igualdade de todos os cidadãos. Marco da democracia moderna, esse período retraça o estar no mundo. Há uma profusão anárquica na exposição de fatos e rumores que estremecem a cena. Os espaços do palco e plateia, juntos, acolhem as ações: a residência do rei em Versalhes, o salão dos estados gerais e um distrito eleitoral e a assembleia dos bairros.

O público incluído na ação pode ser encarado como a multidão indecisa, que acompanha e muda de posição a partir das atuações dos revolucionários conservadores, moderados ou radicais. Os atores usam microfones, as intervenções mais violentas que ocorrem fora da cena são materializadas no som. E a iluminação sombria cria os climas dos espaços públicos, inclusive com as luzes da assistência acesas, e os salões privados para os nobres.

Lugar da ficção, a plateia assume a função de assembleia nacional. Mesmo que não seja a invenção da pólvora, a configuração de alguns atores espalhados entre o público é potente. Durante a peça, intérpretes se destacam para falar, outros permanecem nos corredores, colaborando com aplausos, vaias e palavras de ordem. Eles atuam como representantes da nobreza, do clero, do Terceiro Estado, deputados da Assembleia Nacional e da Assembleia Constituinte. Para engrossar, o diretor também escalou atores e não-atores brasileiros, falantes de língua francesa.

Durante o programa Pensamento em Processo, encontro de artistas com o público da MITsp efetivado no Itaú Cultural, no sábado, o diretor explicou que não separa as imagens das palavras em suas produções “para mim é uma coisa única”. E que Ça ira não é um espetáculo político, mas sobre política.

Na sua acepção mais ampla, a política está metida em tudo. Sua razão de existir é o dissenso. A possibilidade de troca simbólica de comunicação, num jogo argumentativo, declarativo, em que princípios e crenças são defendidos num embate de ideias e posições diferentes, numa negociação em que entram muitos verbos, inclusive brigar.

Se o poder é um princípio na política, a justiça ou a liberdade são dispositivos que podem produzir mobilização. O que não é possível esquecer é que todos os seres têm interesses pessoais e coletivos.

Cada personagem de Ça Ira está implicado com sua luta. E para isso gritam, insultam e fazem da oratória uma paixão algumas vezes risível. Integrantes do Terceiro Estado conquistam o direito de fala pública e política, até então dedicado à nobreza, clero e parlamentos. Nessa energia revolucionária salta a intransigência que produz cenas e posturas no elenco que faz ferver o ambiente.

Pommerat convocou para esse campo de batalha não as grandes figuras e mitos históricos. Mas indivíduos desconhecidos que colaboraram para a mudança de rumo. Isso também ajuda a superar o aspecto mais documental. O nomeado é Louis XVI, que enfiado em ternos de Yvain Juillard, defende que é preciso equalizar os impostos, com a inclusão de nobres e do clero como pagadores.

Os discursos ideológicos são incendiários e conduzem para a invenção da democracia. A partir de ideias e visões de mundo contrastantes, são projetados valores e representações de demandas morais e filosóficas. Ao dobrar-se sobre o passado, o encenador francês questiona o futuro.

Mas o diretor é sarcástico com a sociedade do espetáculo. Inventa uma comentarista de uma emissora espanhola, para reforçar que o mundo assiste à Revolução Francesa ao vivo. Ou nas cenas em que anônimos repreendem o rei, por qualquer coisa, e para depois ser fotografado com o soberano e desmaiar de emoção.

Brasil e mundo dos imigrantes

Na sexta-feira da estreia do Ça ira no Brasil, o país foi afetado pela condução coercitiva do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva para depor na Polícia Federal, em mais uma etapa da Operação Lava Jato. Essa atuação provocou debates durante todo o dia e levantou dúvidas sobre a parcialidade do episódio. “Nós precisamos ter provas de simetria, provas de que essas instituições agem de maneira simétrica contra qualquer ator político”, comentou o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle sobre o assunto.

Com essa medida da PF e seus desdobramentos, a reação de Lula e seus aliados, o espetáculo ganhou outras linhas com o real, e possibilitou traçar outros significados com a realidade brasileira, a república e a democracia. Associações e paralelos da encenação com a crise das instituições brasileiras, avanço reacionário, o poder dos grupos dos “3B” – o boi, a bala e a Bíblia – foram inevitáveis.

Mas a ferida de retrocessos se espalha pelo mundo capitalista. Ça ira também aponta para o fluxo de pessoas deslocadas, principalmente as que fogem das guerras. Do seio da revolução francesa encenada é possível vislumbrar uma vigor reivindicatório, a partir da crise dos refugiados e migrantes que chegam à Europa

O encenador investe na força da palavra e na presença dos atores para compor as espessuras desse jogo, entre coro de vozes dissonantes.  O exercício e o aprendizado do poder democrático são árduos e dão sinais de fadiga. Mas o poder de mudar a sociedade, martela Joël Pommerat em Ça ira, está nas mãos de todos.

 

Os corpos convictos e a batalha contra o cansaço

Crítica do espetáculo Ça ira, por Daniele Avila Small (Questão de Crítica/ DocumentaCena)

MIT 2016

 

Não foi uma experiência simples assistir à peça Ça ira, de Joël Pommerat no dia 4 de março de 2016, enquanto o Brasil passa por um processo acachapante de produção e manipulação de discursos com vistas à condução da opinião pública a um retrocesso de dimensões trágicas. Não foi uma experiência simples ouvir as declarações dos representantes do clero, tendo em mente os discursos da bancada evangélica, conhecendo o vínculo da igreja católica com a ditadura militar que um segmento da imprensa (!) quer restituir. Não foi uma experiência simples ouvir os representantes da nobreza, tendo em vista que o núcleo duro das polaridades políticas do Brasil atual se resume ao ódio que a classe média e que a classe alta têm da pobreza. Os nervos políticos do Brasil estão expostos. Por um lado, podemos comemorar a atualidade de Ça ira e a relevância de assistirmos a essa peça nesta semana sensível. Por outro, é triste dar-se conta (embora já saibamos) que o nível da discussão política que vemos na TV é pré-Revolução Francesa.

Mas, embora o calor da hora chame para a discussão extracena, os aspectos formais da encenação também convocam o senso crítico. A encenação nos coloca, a nós, espectadores, em diferentes estruturas. Em alguns momentos, estamos diante de cenas fechadas em si, que se não me engano são aquelas em que o rei está em seu ambiente familiar. Em outros, somos os destinatários de discursos prontos, a palavra nos é endereçada diretamente. Mas, na maior parte do tempo, estamos no olho do furacão, dentro do espaço de assembleia. Essa estratégia de encenação nos proporciona variações de estados emocionais, fisicamente muito concretos. E essa oscilação de estados me parece ser um efeito pertinente sobre nós espectadores, porque reflete as condições em que nós cidadãos nos vemos diante de impasses que não sabemos ou não temos como resolver.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Em alguns momentos, sentimos que não fazemos parte da discussão pública, que nossa participação é dispensável, que a quarta parede do teatro é a quarta parede dos grandes poderes. Em outros, sabemos que não somos interlocutores reais dos discursos que são cinicamente endereçados a nós – e isso pode nos alienar ainda mais que a quarta parede. Mas, nos momentos de assembleia, a política nos anima, nos faz querer gritar junto, vaiar, aplaudir. A teatralidade da assembleia chama atenção para a teatralidade do teatro. Não somos instigados a nos engajar em movimentos e deslocamentos literais, mas a teatralidade da assembleia nos dá consciência da nossa postura na cadeira do teatro, especialmente quando os corpos convictos à nossa volta ressoam na intensidade dos nossos batimentos cardíacos.

A dramaturgia nos deixa especialmente atentos quando coloca em debate falas que não se organizam de maneira maniqueísta, quando algo nos surpreende negativamente dentro de um discurso com o qual já estávamos concordando animadamente, ou quando vislumbramos uma centelha de razão em um discurso do qual já discordávamos a priori. É complexa a forma como Luís XVI é apresentado. Sabemos que sua cabeça vai cair, esperamos até ansiosamente por esse momento. Mas a força simbólica da monarquia na mente dos revolucionários é algo que nós, brasileiros do século XXI, não conseguimos vislumbrar muito bem. Ou conseguimos?… Além disso, é significativo que a peça não chegue ao relato da decapitação do rei. Há indícios de tragicidade nesse personagem que é Luís XVI e na narrativa que se põe em Ça ira, mas não há catarse. Os impasses não se resolvem. Voltamos para casa com a imagem do rei ainda com a cabeça acima dos ombros. E em determinado momento, deve ter passado pela cabeça de alguns que estar no teatro enquanto um circo midiático se erige lá fora pode ser tão angustiante quanto estar em uma assembleia pensando o direito dos homens enquanto o sangue corre pelas ruas.

A duração do espetáculo também atua sobre nossos corpos, mentes e afetos. A extensão é elemento da dramaturgia porque atua concretamente sobre os estados do espectador, age sobre suas resistências, derrubando algumas e erigindo outras. Cinco horas em língua estrangeira não é “para os fracos”. Mas devemos nos lembrar que a política também é, em larga medida, língua estrangeira. E o cansaço é uma das estratégias mais eficazes dos grandes projetos de manobras escusas – como o que estamos presenciando agora. A exaustão intelectual e física ao final do espetáculo espelha o nosso profundo cansaço com a politicagem daqueles que fazem da política um negócio lucrativo.

Um dos pactos do teatro é ficar até o fim. Estejamos despertos então.

 

O jogo democrático e suas contradições

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Ça Ira, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MIT 2016

O ano é 1789, mas poderia ser 2016. Estamos na França do rei Luis XVI, mas poderia ser em outro contexto, e assistimos a partir de múltiplos ângulos a conflitos de interesses que revelam divergentes visões de mundo, assim como deixam ver as sucessivas contradições que permeiam nosso comportamento político e, de igual modo, o comportamento político daqueles que, idealmente, deveriam nos representar. Em Ça ira, obra realizada pelo autor e diretor francês Jöel Pommerat em colaboração com a Compagnie Louis Brouillard, visitamos ao longo de três atos diferentes instâncias de um emergente sistema democrático no qual o povo, mesmo que ainda submetido à Igreja e eventualmente encantado com a mítica figura do rei, começa a reivindicar direitos e a questionar privilégios.

Iniciada com um pronunciamento formal do primeiro ministro francês sobre a eterna necessidade de se aumentar a receita do Estado, a encenação rapidamente ganha contornos mais complexos, convertendo, por vezes, o teatro – aqui compreendido como ambiente que inclui palco e plateia – em uma grande assembleia onde novas – e velhas – vozes surgem a cada instante. Desse modo, enquanto algumas cenas são vistas “pelo buraco da fechadura”, outras inserem os atores em situações de grande proximidade com o espectador, convertendo-nos em silenciosos integrantes dessa mesma assembleia. Nesse trânsito entre faces públicas, semipúblicas e privadas do sistema democrático, constitui-se, pouco a pouco, uma cena polifônica, difusa e por vezes caótica, marcada por vozes e visões dissonantes que claramente ecoam sobre o momento político e social que, como brasileiros, atualmente experimentamos. “Quais são as prioridades desse país?”, ouve-se, em certo ponto do espetáculo, sem que alguma resposta se ofereça.

Também a visualidade do espetáculo, não por acaso, nos parece bastante familiar. Apropriando-se de estruturas espaciais relacionadas a situações sociais concretas e, ainda que através de mediações, bastante conhecidas pelo espectador, tais como uma reunião oficial, um pronunciamento público e a própria assembleia de deputados, o que se tem em boa parte de Ça ira são ternos que circulam aqui e acolá, quase sempre movidos por homens brancos e discursos que não tardam a revelar suas contradições. Ainda que numerosos personagens e, portanto, o próprio espetáculo transitem por diferentes ambientes e contextos, uma atmosfera de inércia, repetição e esvaziamento por vezes toma conta da cena, dando a ver um claro engessamento das estruturas democráticas, frequentemente sabotadas por aqueles que apenas desejam manter-se no poder, seja na França do século XVIII ou no Brasil atual.

Conduzido por três grupos distintos, ali associados à Igreja, à nobreza e ao povo, os debates a que assistimos em cena colocam em disputa uma visão materialista da realidade, permeada por problemas concretos como a fome, a guerra civil e a fundadora desigualdade, e uma visão católica, segundo a qual tal desigualdade seria um pressuposto a ser respeitado e aceito como fato natural. Apoiado em conceitos subjetivos como o bem, o belo e o sagrado, este segundo grupo, ali representado pela Igreja e a nobreza, recorrentemente desqualifica as questões colocadas pelo primeiro, constituindo declarada recusa ao mundo real e suas questões. Nesse sentido, enquanto uns entendem a justiça como mera execução da lei, outros questionam a lei e associam a mesma justiça a verdades concretas, reconhecíveis por todos.

Imersos neste infindável debate, gradativamente nos reconhecemos, de dentro da plateia, como integrantes de um mesmo grupo social. Desprovidos de privilégios como a voz e também a ocupação dos espaços de voz, participamos passivamente do jogo democrático. Ainda que vez ou outra nos identifiquemos com visões e conflitos postos em cena, somos conduzidos a uma situação em que a atitude silenciosa que nos é reservada se torna cada vez mais angustiante. Silenciosos, assistimos a debates que muito nos interessam, mas dos quais somos frequentemente excluídos, tocando em temas como o monopólio da violência pelo Estado, a dimensão utópica dos direitos humanos e o absurdo dever de respeitar um sistema social que, a partir de estratégias mais ou menos evidentes, nos conduz ao apaziguamento e nos submete aos mandos e desmandos de Deus, do Estado e até mesmo da propriedade privada.

Cúmplices silenciosos de uma atitude cínica e de discursos esvaziados que carregam em si claras contradições em relação às práticas daqueles que os proferem, testemunhamos a exaustão de um sistema cujas instituições inegavelmente vêm se deteriorando ao longo do tempo. Como se voltássemos às origens desse sistema exausto que hoje nos governa, somos convocados a refletir sobre a persistência histórica de estruturas políticas que muito pouco se transformam, convertendo, por exemplo, a antiga nobreza em uma classe de governantes que, para além dos privilégios de outrora, têm, hoje, suposta chancela do povo em relação às decisões que tomam em salas, gabinetes e assembleias. ”Vocês, que nunca subiram aqui, um dia vão se arrepender”, escutamos, mais adiante, em novo apelo para que o silêncio manifestado na sala de teatro não se reproduza nos espaços políticos e sociais que ocupamos do lado de fora.

Publicado no site da MITsp em 5 de março de 2016.

http://mitsp.org/2016/o-jogo-democratico-e-suas-contradicoes/

O afeto que aprisiona

Foto: Estúdio Zut
Foto: Estúdio Zut

Crítica do espetáculo Cinderela, de Joël Pommerat, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2016

4 de março de 2016

Desde criança, quando ouvimos a história da Cinderela, enxergamos a suposta superação como foco da fábula. A garota que era maltratada e humilhada pela madrasta e por suas duas filhas diante da omissão do pai consegue finalmente livrar-se de todo sofrimento quando encontra o seu príncipe no baile. O enredo, mais do que conhecido por todos, ganhou outras possibilidades na versão do dramaturgo e encenador francês Joël Pommerat, apresentada pela Compagnie Louis Brouillard na abertura da 3ª edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) na última quinta-feira (3), no Auditório Ibirapuera. Uma questão que merece ser pontuada inicialmente, no âmbito de um festival internacional, é a importância das legendas, que continham erros de português e uma linguagem que parecia mais coloquial do que a peça propunha.

Mas vamos adiante na encenação: se os irmãos Grimm ou até mesmo Walt Disney trataram da morte da mãe de Cinderela de maneira muito episódica, apenas como disparadora da ação, Pommerat consegue traçar outros contextos, deixando a história mais psicológica e atraente não só para crianças e adolescentes, mas para os adultos. Na sua versão, Cinderela é Sandra, uma garota comum, de cabelos desgrenhados e mochila nas costas, que não consegue entender as últimas palavras da mãe no leito de morte. Acredita que a mãe tenha dito para que pensasse nela, a cada cinco minutos, para que ela não morresse de fato. O amor e a devoção de Sandra à mãe, o medo de traí-la, não cumprindo o seu último pedido, fazem com que Sandra caia numa armadilha, enveredando-se por meandros dentro de si mesma, deixando-se aprisionar pelo afeto carregado do peso do medo, da culpa, da dor. Pommerat constrói uma personagem que se abandona; que, por exemplo, aceita as tarefas domésticas sem reclamações não por seu excesso de bondade, mas porque não se importa consigo mesma. Ou não trava um relacionamento com o pai porque não vê possibilidade de superação de uma realidade. Mesmo diante de uma suposta cumplicidade com o pai, quando ele fuma na companhia dela e não da madrasta, só há conformação nessa relação e não interação, diálogo, questionamento, vivência. Esse “autoabandono” se desdobra em diversas situações, como quando a madrasta faz um discurso sobre como Sandra está velha e descuidada.

As primeiras cenas desta Cinderela são sombrias, escuras.Na casa em que vive com a família, Sandra não vai alimentar os pássaros, cantando feliz, enquanto eles a ajudam nas tarefas, como no filme; aqui o cenário é diverso: a “princesa” carrega com as próprias mãos os pássaros que morreram ao se chocarem contra as paredes de vidro da casa. O sofrimento de Sandra é evidenciado na noite em que passa sozinha no quarto do sótão, sem janelas. A cenografia do espetáculo, composta em boa parte através de projeções, transmite essa confusão interior de Sandra, seu estado de espírito, ao mesmo tempo em que noutros momentos constrói realidades paralelas, como a casa de vidro ou as paredes que vão tendo estampas diversas.

Se o contexto psicológico é carregado e o relógio que Sandra tem no pulso toca insistente para lembrá-la de não esquecer a mãe, Pommerat brinca, com sarcasmo, ironia e humor, não se esquecendo de alimentar a identificação da fábula pelo espectador. Há alguns caminhos diretos: por exemplo, a madrasta e as irmãs continuam sendo figuras estranhas, feias e desengonçadas, mas Pommerat não se prende a isso, vai muito além. Nesse sentido, o autor e encenador tem na personagem da madrasta um dos grandes trunfos da montagem, enriquecendo as chaves de discussão abertas pela peça. A madrasta possui uma visão equivocada de si mesma, principalmente no que diz respeito à sua aparência física. Fica lisonjeada com os falsos elogios de que ela parece irmã das próprias filhas e se ilude com a possibilidade de que o príncipe se apaixone por ela e não pelas filhas.

No viés da desconstrução, ou mesmo do embaralhamento de alguns estereótipos tão comuns aos contos de fadas, o príncipe neste caso é feio, inseguro e também sofre com a ausência da própria mãe. No decorrer da montagem, alguns elementos deslocados, que fogem ao estabelecido a priori, vão dando um caráter muito mais instigante à peça, mas sem que ela perca a capacidade de fazer rir ou emocionar. Nesse mesmo âmbito, realidade e sonho, idealização, são dimensões questionadas pela encenação. Não podemos dizer que é exatamente uma experiência radical de reescrita desse texto, já que no espetáculo de Pommerat os elementos conhecidos do público, responsáveis por uma identificação direta com a história, estão todos lá. Ainda é a história da mocinha, mas aqui menos frágil e com nuances que a deixam mais interessante.

Das narrativas no teatro e das narrativas do teatro

Crítica do espetáculo Cinderela, por Daniele Avila Small (Questão de Crítica/DocumentaCena)

MIT 2016

 

Voltar-se sobre si mesmo é procedimento comum ao teatro. Os grandes clássicos, que formam o teatro, são sempre revisitados pelos artistas – dos mais tradicionais aos que trabalham para inventar novas formas. Em certos casos, o que motiva os artistas é a ideia de inserir-se na história do teatro com um desempenho memorável de um grande papel ou com uma encenação eficaz. Nesses casos, o resultado costuma ser o do simples acúmulo. No entanto, em outros casos – mais raros -, a montagem de um clássico se dá porque alguém tem uma hipótese sobre aquela narrativa, um olhar que não apenas continua, mas que reinsere aquele texto no mundo e que faz o teatro encontrar a si mesmo na sua história, costurando uns fios no seu tempo.

Recontar as narrativas é procedimento comum ao ser humano. As grandes histórias, que nos formam, são perpetuadas pelo teatro, pelo cinema e pela literatura. E, no caso dos contos infantis, elas também são repassadas pela transmissão oral, que infiltra nas crianças, com as narrativas, estruturas de pensamento e de sentimento – muitas das quais, a duras penas, mais tarde vamos tentar nos livrar.

Considerando a montagem de Joël Pommerat, recontar Cinderela não é repetir Cinderela. Diante do espetáculo, cabe a nós espectadores nos perguntarmos que hipóteses tem o espetáculo sobre essa narrativa. E que hipóteses podemos formular a partir do que vimos. Podemos nos perguntar, por exemplo, que estruturas profundas identificamos na Cinderela que temos em mente e como estas estruturas são ou não são desconstruídas na peça.

A Cinderela padrão é uma personagem sem complexidade, porque sem foro íntimo, que passa da infelicidade à felicidade por fatores externos e por uma ideia cristã de merecimento, sob a qual quem sofre e é humilde em algum momento vai ser recompensado e feliz. A mensagem para as meninas é: fique em casa, faça o trabalho doméstico, ature a família, mesmo que não tenha por ela qualquer sensação de pertencimento, porque, um dia, um fator externo vai acontecer e a relação com um homem vai trazer felicidade. Além disso, todas as mulheres do mundo (a fada não é do mundo) ou te abandonam ou querem o seu mal.

A Cinderela de Pommerat tem interioridade: um passado e um sentido (mesmo que torto e fruto de um mal-entendido). As provações a que se submete são, em larga medida, autoinfligidas: ela é corresponsável por suas mazelas. O fator externo mágico é uma falácia: a fada não funciona como fada, mas como amiga. Ou seja, o que vem tirar Cinderela da confusão mental e do autoconfinamento é a amizade entre mulheres. O homem que ela vai amar é tão perdido e tem tantas neuroses e traumas quanto ela e, por mais legal que seja a relação que eles vão ter, este não é o telos, a finalidade, das suas vidas.

As subversões na trama, como o chiste com o sapato, a postura meio blasé da menina, a cena do grande momento entre o casal, em que eles estão dançando sozinhos-juntos e não fundidos no élan de um beijo romântico de novela, cada um desses aspectos poderia ser desdobrado em ótimas discussões. O autoengano da madrasta, por exemplo, que é tão cômico em um primeiro momento, mas tão triste e tão comovente com o desenrolar da situação, mereceria uma análise à parte. O trabalho de cada ator, o engenho dos elementos de cena e as operações dramatúrgicas do autor-encenador também poderiam ser destacadas e desenvolvidas em uma crítica feita com mais tempo e mais espaço. Mas todo o trabalho formal da construção do espetáculo converge para as questões estruturais e temáticas da narrativa e nos faz pensar sobre os seus temas.

O pulo do gato está justamente no fato novo da fábula: o efeito das palavras da mãe em seu leito de morte.

Por um lado, somos todos (meninos e meninas) assombrados pelas palavras de nossos pais. Com isso, a peça desliza do mito feminino que nos persegue para os terrores da infância que sobrevivem na mente adulta. Mas, para além disso, a fábula é toda calcada na falha da escuta, no mal-entendido, no sentido de mal-ouvido. A passagem da infelicidade para a felicidade de Cinderela de Pommerat vai do não saber escutar o outro ao ser capaz de escutar, finalmente, o outro.

O teatro não é simplesmente para se ver, mas também e principalmente para se escutar – é na relação entre fala e escuta que está sua origem mais arcaica. Assim, faz sentido que, por mais que a visualidade espetacular norteie muitas criações contemporâneas, a narrativa sempre bate o pé na porta para encontrar o seu lugar. É sintomático da atualidade da programação da MITsp que essa terceira edição se abra com espetáculo tão exemplar da força mítica, ancestral e telúrica da reinvenção da narrativa no teatro.

 

 

Contra o feminicídio, por todas nós

Foto: Roderick Steel
Foto: Roderick Steel

Crítica da performance Para Aquelas Que Não Mais Estão, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

29 de dezembro de 2015

Há muito pouco tempo, questões cruciais da nossa sociedade, como violência contra a mulher e racismo, estavam colocadas dentro de um espaço de penumbra. A imagem que vem à mente neste momento de escrita é que funcionava mesmo como se um voal, daqueles fininhos e que deixam entrever o outro lado, envolvesse tudo que não poderia ser realmente dito, gritado, urrado. Mas todos, de alguma forma, enxergavam. Sabiam o que se passava, mas não necessariamente precisavam se posicionar. É como se não nos sentíssemos no lugar de corresponsáveis pela construção de um tecido muito mais amplo, estrutural.

Desse modo, a consciência crítica que poderia surgir a partir do debate coletivo sobre temas fundamentais até hoje não conseguiu se instaurar de modo mais amplo. Finalmente, ao custo de muita dor, lágrimas, violência de todos os tipos, as coisas parecem estar mudando. O verdadeiro “monitoramento” social que se instalou principalmente com a internet e, depois, com as mídias sociais, para o bem e para o mal, tem provocado transformações significativas na maneira como nos colocamos diante de situações que, antes, estariam restritas praticamente à vida privada.

Por exemplo: é da minha conta sim quando mais uma mulher é vítima de qualquer tipo de violência. Seja a violência de se privar de fazer alguma coisa – usar uma roupa curta ou justa, sair à noite, sentar no bar para tomar uma cerveja sozinha -, seja o preconceito no ambiente de trabalho, a obrigatoriedade de se encaixar em padrões pré-estabelecidos, ou o feminicídio. Vivemos por muito tempo numa sociedade que culpabilizava as vítimas, como se coubesse às mulheres o papel de evitar estupros, assédios, mortes. Não, não é crime passional. É feminicídio.

O “textão” que poderia se encaixar em algum post no facebook – são muito significativas campanhas que denunciam, por exemplo, o primeiro assédio, ou atitudes que não seriam normalmente enquadradas na categoria de machismo, além de todas as comunidades feministas que surgiram na rede – na realidade é para tratar de arte. A performance Para Aquelas Que Não Mais Estão, vista durante a II Bienal Internacional de Teatro da Universidade de São Paulo, foi fruto de uma parceria entre a atriz, performer e ativista mexicana Violeta Luna e o Coletivo Rubro Obsceno, de São Paulo.

Assim como a performance Espaço de Silêncio, da dramaturga, professora e atriz Nina Caetano, também apresentada durante a Bienal, Para Aquelas que Não Mais Estão tratou do feminicídio sem subterfúgios, de maneira clara e direta. De fato, são posturas que trazem como resultado a ampliação, ou a renovação, do potencial político da arte. Estamos falando de um teatro que não se esquiva de pensar a realidade na qual que vivemos, que consegue manusear os dados concretos de violência e expandir significados através da articulação entre discurso, ação e poética.

No espaço delimitado por faixas de construção, um verdadeiro ringue de horrores, mas também uma arena de libertação, Violeta Luna, Letícia Olivares e Stela Fischer deram a ver histórias de muitas mulheres. Mortas com tiros de revólver, pedra, cabo de vassoura, faca, tesoura. Fica absolutamente claro que, geralmente, o criminoso é alguém com envolvimento afetivo com a vítima, e que a violência em si não carrega preconceitos: todas são vítimas, mulheres de todas as raças, classes sociais, idades.

Uma pilha enorme de roupas colocada no centro da cena traz associações óbvias com a tarefa cotidiana de vestir-se, mas também com a brutalidade com que simplesmente essas mulheres são limadas da existência. Histórias de jovens, adultas e até de crianças vítimas de violência são trazidas à tona. A cenografia foi organizada de forma que em cada pequeno nicho uma ação se desdobra, como quando uma das performers de fato simula ser vítima de um feminicídio e tem seu corpo estendido no chão, coberto por areia.

Durante toda a performance, os espectadores estão em pé ou sentados no chão, se assim desejarem. Não foram disponibilizadas cadeiras no espaço. Mesmo que não fosse objetivo ainda da cena promover uma interação mais direta, quando as três performers estavam sozinhas no ringue, a situação é mesmo de desconforto e também, talvez, de fazer refletir sobre passividade. De maneira mais generalizada, tudo o que se passa ali – ou nas imagens projetadas fora do ringue – deixa claro o quanto somos coniventes como sociedade, o quanto falimos na proteção às nossas mulheres. Essas mulheres ainda estão à margem, ignoradas e invisíveis.

O espetáculo termina depois de um momento muito significativo. As performers iniciam uma espécie de memorial às vítimas, um velório ritualístico. As velas acessas carregam os nomes e as idades das vítimas, ditas em voz alta. Trata-se de uma construção da nossa memória coletiva, que não registra, por conta de uma lógica perversa fundamentada no machismo, milhares de mulheres mortas todos os dias. Para Aquelas que Não Mais Estão termina com um silêncio ensurdecedor. O tema tratado na performance, e a maneira como foi abordado, não deixam espaço para aplausos, por exemplo. Não temos ainda o que comemorar, mas podemos dizer que a arte, a partir de algumas iniciativas desse tipo, também está fazendo a sua parte nessa luta contra o feminicídio.

A tentativa de cristalizar a memória

Foto: Divulgação TUSP
Foto: Divulgação TUSP

Crítica do espetáculo Família Museu, de Ariel Zagarese, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

28 de dezembro de 2015

Tudo que é presente, logo ali, no próximo instante, já se mostra passado. Assim é mesmo a vida. Já no teatro, pensando especificamente no enredo dramático, presente, passado e futuro estão circunscritos dentro dos limites da sessão de um espetáculo. Talvez por isso, analisando sob esse aspecto, esses tempos tenham a possibilidade de se tornar mais cristalizados, palpáveis. Ainda assim, por outro viés, o teatro é a arte do efêmero, do que foi e já não é, da impossibilidade da repetição. O argentino Ariel Zagarese recorreu não só ao teatro, mas ao conceito de museu, para resgatar a história do seu próprio pai e da sua família, lá pelas décadas de 1980 e 1990, no espetáculo Família Museu, apresentado na II Bienal Internacional de Teatro de São Paulo.

Logo que as portas da sala de espetáculo são abertas, podemos caminhar pelo espaço e observar, contemplar, tal qual um museu tradicional, os objetos de uma coleção: uma máquina de barbear, fotos, caixa de ferramentas, por exemplo. Uma das especificidades, no entanto, é que aquela exposição conta com a presença de um homem, meia-idade, sentado, lendo o jornal. A tensão entre os tempos começa a se estabelecer exatamente ali. Quando os objetos remetem a um passado, mas o corpo se faz presente.

O homem, interpretado por Alejandro Ruaise, é Rubén Carlos Zagarese (1948-1999), pai do diretor e dramaturgo Ariel Zagarese, cujo papel ficou sob a responsabilidade de Manuel Reyes Montes. Há ainda a mãe e a irmã do ator, vividas pelas atrizes Sabrina Loza e Manuela Iseas. Os atores se apresentam e dizem ao público quais serão os seus personagens. A relação entre representação e não-representação, no entanto, não tem outros desdobramentos para além desse momento inicial da peça.

A escritura cênica de Família Museu se propõe pontuada por fricções e pontos de encontro/embate. Nessa história, o público se questiona o tempo inteiro sobre ficção e realidade; principalmente quando as memórias que são levadas à cena são, de fato, a tentativa de reconstrução de um passado visto sob um único olhar, o do dramaturgo/diretor, pontuadas pela atuação de outras pessoas. Na construção da cena, é o passado “museu” que logo vira presente, mas traz lembranças a muitos dos espectadores, o que de fato se materializa como presente em cena, o que há de ficção a partir dessa história.

Nesse caminho permeado por afetos e desencontros, o foco está na relação familiar. No cotidiano que poderia ser o de qualquer família. A briga entre os irmãos, as questões que permeiam o casamento, mas, principalmente, a falta de diálogo. O pai é retratado como alguém distante, endurecido pela vida, que faz pouca questão de construir sentimentos, como na cena em que o garoto tenta ajuda-lo a consertar o carro. São elementos trazidos pela dramaturgia que, em alguma medida, aproximam o público da montagem, embora o espetáculo não consiga superar um estado, digamos, de certa conformidade e apatia.

As relações/fricções que poderiam surgir na aproximação entre teatro e vida real, entre os elementos do real no espaço da ficção, não extrapolam os limites, de maneira que possam, de fato, trazer tensão à relação com o espectador. É uma linha de dramaturgia que se mostra monocórdica, sem pontos de virada ou oposição.

Apesar de tratada de forma sensível, a abordagem fica tão localizada no microuniverso familiar, que as outras dimensões que poderiam surgir a partir da proposta da montagem, da dramaturgia e da própria encenação, não tomam vulto. Aqui, o que acontece de fato é que o particular, o autorreferente, não se torna universal e saímos com a sensação de que a proposição foi mais interessante do que a sua realização em cena.