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Empreendedorismo Made in Cuba

Foto: Divulgação.
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Crítica a partir do espetáculo Cubalândia, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Conforme o próprio nome já sugere, o espetáculo Cubalândia, realizado pelo grupo cubano Teatro El Cervo Encantado, apresenta aos espectadores um curioso programa de turismo na terra de Fidel , chamando atenção às contradições de um país que, mesmo apontado por muitos como o último reduto anti-capitalista do mundo, progressivamente se converte em uma atraente mercadoria a ser consumida. Temos acesso, então, por meio da Cubalandia Excursiones, a uma nação gradativamente iniciada ao que se costuma chamar de ideologia liberal, testemunhando, a esse respeito, a disseminação de estratégias e práticas relacionadas ao empreendedorismo e à ampliação de supostos mercados consumidores.

É justamente como potenciais consumidores, aliás, que somos tratados ao longo de todo o espetáculo. Recebidos pela hiperativa e hipermaquiada agente turística Yara La China, conhecemos um amplo programa de turismo que envolve diferentes partes da ilha. Habana, Varadero, Viñales, Trinidad y Santiago de Cuba são alguns dos destinos oferecidos aos espectadores no decorrer de uma encenação bastante despojada, na qual as luzes da platéia estão permanentemente acesas e a cenografia – mínima – é armada diante do público.

Conduzida por uma profissional extremamente liberal que, sem qualquer tipo de pudor, coloca à venda o próprio país, tal qual suas paisagens e sua história peculiar, Cubalândia destaca o caráter predatório que recorrentemente caracteriza o turismo abaixo da linha do Equador. Tal predação, conforme percebemos no decorrer da montagem, estende-se desde o meio ambiente da ilha até a própria tradição cultural cubana, ali condensada em algumas faixas de reggaeton “tipo-exportação” que nossa entusiasmada anfitriã não se cansa de dançar, em breves interlúdios que separam as negociações com o público.

Aos poucos, no entanto, revela-se certa precariedade do programa oferecido ao público, ao mesmo tempo em que se reforça o lema “fazemos qualquer negócio” que parece lhe mover. É aí que Yara dá início a um quadro composto por negociações durante as quais sempre ressalta aos clientes a ideia de recuperar o dinheiro investido na viagem.

Percebemos, então, que, independentemente do destino, na Cubalândia Excursiones o turista é sempre tratado como empreendedor e a viagem, como investimento. E entre as táticas de capitalização recomendadas ao público, vale ressaltar, figuram a extração ilegal de minerais preciosos, corais raros e outros patrimônios do país, instantaneamente submetido, então, a ordem capitalista e exploradora que rege boa parte do mundo.

Considerando especificamente a sessão que gerou essa crítica, vale ressalvar que a intermediação das legendas durante as interações entre atriz e público parece consistir um desafio à apresentação da obra em países de língua não-espanhola, como o Brasil. Por conta dessa intermediação quase sempre necessária, comprometeu-se, em alguns momentos, a acelerada dinâmica imprimida em cena pela atriz, provocando certo desgaste em relação à repetição que caracteriza a estrutura dramatúrgica da peça.

Elemento central de uma obra na qual a convivialidade entre a personagem e o público constitui-se como um dos pilares da encenação, a personagem se mostra, logo de início, como uma carismática e confiante vendedora. Capaz de cativar a plateia ainda na entrada do teatro, ela rapidamente deixa ver o despojamento, a irreverência e a ironia que, entre outras qualidades, permeiam o trabalho. Como numa típica obra de Brecht, é ao público que Yara se dirige durante boa parte da peça, sendo brevemente interrompida, em algumas ocasiões, por chamadas telefônicas vindas de supostos colaboradores.

É durante uma dessas ligações, aliás, que o público toma consciência de que os pacotes turísticos oferecidos podem se mostrar não somente nocivo ao país, mas também aos próprios turistas, e a festiva fachada inicialmente criada pela personagem finalmente se esvai. Anunciada aos espectadores desde o início da obra, as contraditórias ofertas da Cubalandia Excursiones precisam, então, ser reconhecidas pela própria vendedora, gerando um saudável desvio em relação ao tom leve, cúmplice e bem-humorado que permeia o trabalho.

Desejos sem direção

Foto: Divulgação
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Crítica a partir do espetáculo Anatomia do Fauno, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Parece importante despir-se de eventuais preconceitos e julgamentos morais para assistir ao espetáculo Anatomia do Fauno, trabalho realizado pelo coletivo Teatro da Pomba Gira, de São Paulo, que traz como importante elemento inspirador o desregramento que permeia a vida e a obra do “mal-comportado” poeta francês Artur Rimbaud (1854-1891). Dedicada a reunir e converter em cena diferentes fisionomias do homoerotismo, a montagem praticamente dispensa a palavra e encontra na linguagem visual da performance o seu esteio, constituindo-se a partir de uma série de quadros ao mesmo tempo independentes e articulados, sobretudo quando consideramos o universo temático que igualmente os envolve.

Conduzida por mais de uma dezena de atores, a peça se insere em um amplo conjunto de espetáculos recentes que recusam moralismos sobre corpo e sexualidade, articulando-se em certo sentido, como uma resposta artística ao crescimento do conservadorismo no cenário sócio-político brasileiro. Em Anatomia do Fauno, no entanto, o que se experimenta é uma improvável combinação entre atmosferas míticas, sem tempo ou lugar, das quais o fauno mencionado no título rapidamente se apresenta como símbolo central e um dos eixos da peça, e contornos bastante concretos e essencialmente contemporâneos, reforçados, por exemplo, pelo uso de aparelhos e aplicativos eletrônicos em determinados momentos da encenação.

Imersos, logo de início, em uma espécie de “açougue-underground”, assistimos à chegada do fauno – meio homem, meio bicho – a uma cidade povoada por numerosos corpos masculinos. Somos convocados, então, a reconhecer em nós mesmos certa curiosidade sobre o corpo do outro, assim como sobre as possibilidades de encontro e troca entre esses corpos. Testemunhamos, então, a sucessivos embates que de um modo geral remetem a paixões intensas, violentas e fugazes, traduzidas em vigorosas relações de atração e repulsa estabelecidas entre os corpos que se movem diante de nós.

Desprovidos de personagens ou ainda de uma narrativa a ser contada, tais corpos se alinham em um estado performático e pouco humanizado, aparentemente mais propício a tensões do que propriamente a afetos – ainda que as fronteiras entre tais noções muitas vezes se borrem, claro. E mesmo que boa parte dessas acontecimentos culminem em encontros entre dois ou mais performers, o que se tem ali, ao menos num primeiro momento, são corpos autocentrados e guiados sobretudo pelos próprios desejos, mostrando-se pouco interessados na verticalização das relações estabelecidas com os outros corpos que encontram em cena.

Seja, portanto, a partir de metáforas ou situações bastante concretas, tais quais as que remetem aos aplicativos já mencionados, mas também a encontros fortuitos em banheiros públicos, por exemplo, o espetáculo não raro nos apresenta vestígios de um sistema social que impele à competição, à comparação e ao individualismo, deslocando, em certo sentido, a vigorosa ideia de obsolescência programada também ao campo dos desejos.

Se as relações entre os performers são quase sempre fugazes, o mesmo não acontece com boa parte dos quadros que estruturam o espetáculo, os quais frequentemente se estendem até o ponto de se esgotarem. Enquanto algumas vezes esse recurso denota justamente a perda – ou a falta – de sentido das ações trazidas à cena, em outros momentos, o que se verifica é um certo desgaste do recurso, provocando uma sensação de repetição ou permanência em um mesmo estado de coisas.

Desse modo, apesar da liberdade e da libertinagem que desde o início dão o tom do espetáculo, o caminho construído pela sucessão de quadros que integram Anatomia do Fauno talvez não encontre – e nem procure – a atmosfera de plenitude e esplendor um dia almejada por Rimbaud. Pelo contrário: mesmo quando se organizam em um grande grupo, substituindo os iniciais embates por composições coletivas situadas entre a festa, a orgia e o ritual, os múltiplos corpos que habitam a cena parecem ser colocados, ali, como equivalentes. Com isso, mesmo após a impactante entrada de um corpo feminino em cena, parece haver pouco espaço para a emergência de singularidades ou perspectivas que atribuam nuances mais complexas ao coletivo de corpos então formado.

Criação repleta de significados abertos, na qual mais se apresenta um contexto do que se entrega crítica ou reflexões sobre ele, Anatomia do Fauno deixa ao público o papel de experimentar, testemunhar ou julgar o que vê em cena. Enquanto alguns espectadores podem torcer o nariz para o excesso de “imoralidade” trazida ao palco, outros decerto saem ressentidos pelos raros momentos de efetiva presentificação do público, sobretudo quando consideramos a recorrente tensão estabelecida entre palco e plateia.

Sendo assim, àqueles minimamente familiarizados a práticas e imagens homoeróticas, o espetáculo termina por oferecer uma justaposição de acontecimentos visuais bastante potentes, mas pouco propícios a gerar deslocamentos de perspectiva em relação ao universo investigado. Àqueles menos familiarizados ao mesmo universo, o espetáculo pode, de fato, impressionar, mas corre o risco de apenas reiterar, sem acusar, defender ou adensar, características e comportamentos estereotípicos associados ao já bastante mal-compreendido e simplificado “universo gay”.

A dívida como horizonte, herança e história

Foto: Ana Laura Leardini
Foto: Ana Laura Leardini

Crítica a partir do espetáculo O que fazíamos em 1985?, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Há, decerto, uma lógica perversa que permeia a prática de empréstimos e a contração de dívidas, recurso tão familiar ao Estado quanto ao cidadão brasileiro e, quiçá, latino-americano. Filhos de nações que já nascem endividadas por um passado-presente de intensa exploração, há muito naturalizamos também a subordinação a modos de vida vindos de fora. Contraímos, então, por vias bastante distintas, dívidas que se referem tanto àquilo que éramos e tentamos deixar de ser, quanto aos modelos externos que tomamos como objetivos que jamais alcançaremos. E, enquanto permanece esse imperativo, parece não haver, de fato, muitos caminhos para que tais dívidas sejam superadas.

Pois é justamente a temática da dívida que serve como eixo do espetáculo O que fazíamos em 1985?, trabalho que se organiza em três episódios caracterizados por recursos e linguagens artísticas bastante distintos, ligados a pesquisas dos grupos [pH2| Estado de Teatro (Brasil), La Maldita Vanidad (Colômbia) e Lagartijas Tiradas al Sol (México). Formados, em sua maioria, por artistas nascidos ao longo dos anos 1980, os grupos não por acaso tomam as trajetórias de seus pais, mães e governantes – ou seja, quase sempre de integrantes de uma geração anterior – como universo de análise sobre a perpetuação de dívidas recentes que claramente ainda pairam sobre nós.

Somos apresentados, ao longo do espetáculo, a pais, mães e governantes, constantemente desafiados por economias em crise, Estados enfraquecidos e a permanente sombra do imperialismo estadunidense – ou, como é comum aos nossos dias, de um imperialismo internacional. Testemunhamos, assim, a momentos históricos e contextos sociais cujos complexos sentidos, se é que existem, até hoje nos demandam grandes esforços de reconstrução.

Atravessados por histórias que remetem a desastres políticos, econômicos e também naturais, os três episódios nos põem diante de desafios e soluções encontradas por esses países e seus povos no decorrer de caminhos marcados pelo desejo de galgar alguns degraus no que se costumava chamar de “ordem mundial”. Desafiados por processos tardios de industrialização e urbanização, assim como pela abertura econômica a produtos, mercados e eventos “internacionais”, os contextos apresentados pelos quadros de O que fazíamos em 1985? parecem trazer como traço comum, seja nos níveis pessoal ou nacional, constantes processos de readequação a relações de subordinação e colonização que se estendem às esferas econômica, cultural e comportamental.

Intitulado O Retrato da Mulher Endividada, o primeiro episódio é composto por um filme no qual imagens ficcionais ganham tratamento documental, reunindo mulheres que foram mães nos anos 1980 e que constroem, juntas, a história da personagem Helena Fracasso, uma espécie de síntese da experiência da dita classe média brasileira ante o contexto que sucedeu a redemocratização do país. Chama bastante atenção, nesse caso, a escolha de um ponto de vista feminino para tratar do tema, a partir de cômicas provocações sobre a tardia inserção da mulher no precário mercado de trabalho brasileiro, concomitantemente à aceleração do consumismo no país – tudo isso sob a onipresença da televisão e da publicidade entre os meios de (des)informação da população.

No segundo episódio, O Retrato do Homem Endividado, passamos da linguagem audiovisual a moldes bastante tradicionais do teatro, a partir de uma narrativa conduzida por três irmãos que se encontram após a morte do pai, o qual deixa-lhes como herança uma casa em ruínas e uma dívida difícil de se pagar. Aos poucos, no entanto, o contexto familiar é perturbado pela presença de uma vizinha rica, “americanizada” e bastante ambígua, responsável por cobrar dos irmãos certa dívida que não contraíram, mas, sim, lhes pertence. Também contribuem para a desestabilização da encenação recorrentes e impactantes aparições de um bombeiro que alerta tanto os atores quanto o público sobre uma iminente catástrofe de amplo significado.

Ainda que atravessadas por aviões, táxis e até mesmo uma curiosa e resistente tartaruga de estimação, a direção e a dramaturgia deste episódio parece apostar na imobilidade dos personagens – e da própria situação –  como questão a ser problematizada. Pressionados pelas catástrofes anunciadas por seus visitantes, assim como pela entrada de “duplos” que lhes servem como canais mais brutos de expressão, os três irmãos gradativamente deixam escapar traumas e revelam, entre outras coisas, certo complexo de inferioridade em relação a vizinhos de dentro e fora do país.

Deixando de lado a linguagem ficcional e as múltiplas metáforas presentes no quadro anterior, a sequência que encerra o espetáculo, intitulada O Retrato do País Endividado, recorre a uma linguagem bastante direta para estabelecer um interessante paralelo entre experiências de endividamento compartilhadas por Brasil e México durante os anos que precederam grandes eventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Frequentemente defendidos pela mídia e pelo Estado como signos de certa ascensão internacional, tais eventos são associados, em cena, a desastres naturais de incontestáveis consequências sociais.

Ao combinar elementos do teatro documentário e da performance, o quadro que encerra O que fazíamos em 1985? ganha força nas imagens e ações construídas diante do espectador. A construção textual, por outro lado, ainda parece carecer de um tratamento mais aprofundado em relação à questão do endividamento no contexto latino-americano. Organizada como uma sucessão de depoimentos, notícias e comentários sobre a história recente de Brasil e México, tal construção apoia-se – sobretudo no caso brasileiro – em informações e reflexões já conhecidas por boa parte do público, assim como parece perder contundência ao simplesmente citar recentes acontecimentos do noticiário nacional, sem indicar ou problematizar, de fato, suas relações com a relevante reflexão que serve como eixo ao ambicioso projeto artístico que constitui este trabalho.

Em defesa da desordem

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Crítica a partir do espetáculo Stereo Franz, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Logo de início, já se percebe que há algo de estranho na banda que recebe o público do espetáculo Stereo Franz, realizado pela companhia [pH2] Estado de Teatro, de São Paulo. Sob o comando de um virtuoso vocalista com trajes de açougueiro, a banda assume o palco do improvisado bar onde se organizam os espectadores, criando uma atmosfera de tensa empatia que contamina os primeiros momentos do espetáculo. Enquanto isso, Franz e Maria, personagens aos quais ainda seremos apresentados, cruzam por várias vezes o espaço, dançando e beijando-se como se fossem pessoas comuns, como se fossem apenas mais dois freqüentadores daquele bar. Mas eles não são.

Inspirada em Woyzeck, obra mais reverenciada do dramaturgo alemão George Buchner, a montagem recria à própria maneira a história de seu personagem-título – aqui Franz – e sua esposa, chamando atenção à loucura e à violência que surgem a partir de quadros sociais marcados por degradação, precariedade e subordinação aos mandos e desmandos do outro. Ainda que tal situação de subordinação fique clara pelos constantes chamados – prontamente atendidos – que ambos recebem de seus “superiores”, rapidamente se vê Franz quanto Marie, sua esposa, apresentam alguns desvios.

Enquanto ele enxerga e fala demais, por vezes tomando para si o sofrimento causado por boa parte das opressões da história e do mundo, Marie não consegue parar de se mexer, como se de fato já não coubesse no estreito lugar social que lhe parece reservado. Em permanente trânsito entre o bar onde estamos e o espaço externo ao teatro, o qual acessamos pela porta de entrada, quase sempre aberta, e também por imagens geradas por câmeras instaladas na área externa e exibidas em televisores instalados dentro do bar, como parte da cenografia da montagem.

A partir desse jogo de entrar e sair, de ocupar o campo e o extracampo, constituem-se dois universos ao mesmo tempo conectados e bastante distintos, marcados, respectivamente, por sucessivos monólogos dirigidos ao público e ações performáticas cuja potência se apóia, sobretudo, em aspectos visuais e composições entre os corpos dos atores e os diferentes espaços que integram a área externa. De um lado, o bar surge como uma arena delirante, na qual somos constantemente atravessados por relatos e reflexões em que ciência, misticismo e invenção se misturam de modo perturbador. De outro, a área externa serve como mecanismo de inserção das personagens em um contexto mais concreto de existência, reforçado pela presença de um lixeiro que, em meio às próprias atividades, vez ou outra faz companhia a Franz e Marie.

Trazendo os olhos e a língua como recorrentes órgãos-metáforas que remetem às capacidades de enxergar a realidade e de se expressar sobre ela, Stereo Franz parece defender a consciência e a voz como importantes ferramentas de transformação, ainda que, no fim das contas, o desenrolar dos acontecimentos parece deixar pouca esperança em relação à possibilidade de mudança.

Gradativamente, Franz, Marie e também o lixeiro rebelam-se, cada um ao próprio modo, em relação a uma realidade cujo horizonte de aspirações lhes parece bastante restrito. Os esvaziados – e por vezes cômicos – discursos conduzidos pelo vocalista-cientista-açougueiro e a tecladista-vidente-astróloga passam, então, a conviver com recorrentes questionamentos e reflexões de Franz acerca de vidas que, tal qual sua própria existência, parecem valer muito pouco.

“Por que Deus não apaga o Sol com um sopro, para que tudo gire na desordem?”, pergunta Franz, à certa altura, convertendo em voz a recém-tomada consciência sobre uma ordem social que pouco o favorece. “Rodem, girem, rodem”, repete insistentemente, na sequência, lançando ao público um apelo sobre a importância de se mudar a ordem das coisas, de se movimentar (como Marie?), de não se acomodar em um sistema social tão injusto quanto cruel, do qual a fuga parece sempre mais possível do que a luta pela transformação.

Por vezes trazendo à cena gritos e gestos transbordantes, a montagem parece trazer o direito à voz como uma de suas reivindicações centrais. Ao explorar de modo quase permanente a tênue fronteira entre a consciência e o delírio, entre a subordinação e a proposição de novas ordens, Stereo Franz nos convoca a pensar a institucionalização de privilégios, a naturalização da desigualdade e, em momento pertinente, a eleição de corpos e vidas que valem menos do que outros – “muertos que no hacen ruído”.

É preciso estar atento e forte

Foto: Divulgação.
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Crítica a partir do espetáculo El Rumor del Incendio, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

A concentração do poder em poucas mãos e as variadas táticas desenvolvidas, ao longo da história, para redistribuí-lo servem como eixo ao espetáculo El Rumor do Incêndio, realizado pelo grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol e apresentado na II Bienal Internacional de Teatro da USP. Tomando alguns movimentos armados do México dos anos 1960 e 1970 como contexto a ser compartilhado e examinado diante do público, a montagem passa pelo Brasil em momento oportuno, quando, já há algum tempo, ruas e – mais recentemente – escolas se tornaram arenas de contestação em relação aos abusos de poder que marcam nossa realidade política. Ao longo dessa revisão por aproximadamente duas décadas de história mexicana, El Rumor del Incêndio problematiza questões como a participação da juventude na luta por mudanças e o uso de violência em ações anti-Estado, assim como as correntes noções de democracia e luta de classes.

“A soberania nacional reside essencial e originalmente no povo. Todo poder público emana do povo e se institui para benefício dele. O povo tem, a qualquer momento, o direito inalienável de alterar ou modificar a forma de seu governo”. Declamado logo nos primeiros instantes do espetáculo, o – utópico? – Artigo 39 da Constituição mexicana é apresentado como uma espécie de estopim da montagem, deixando ver, logo de cara, algumas das numerosas contradições que permeiam a tradução de instrumentos legislativos em efetiva prática social.

Para tanto, o grupo desenvolveu uma dramaturgia ao mesmo tempo fragmentada e claramente guiada por uma personagem central: a antropóloga e guerrilheira Margarita Urias Hermosillo, nascida em 1944. Integrante da geração anterior à dos três atores que conduzem a cena, Margarita viveu intensamente os conturbados anos 1960 e 1970 e nos apresenta, a partir de uma trajetória que combina pesquisa, ativismo e sucessivos afetos, facetas de uma realidade política que, não por acaso, também nos revela muito sobre outros contextos latino-americanos. A essa trajetória, vez ou outra permeada por acontecimentos íntimos que ultrapassam o dito campo político, são combinados importantes capítulos e personagens da história mexicana, criando eficientes contrapontos que humanizam experiências vividas somente a distância, e, quase sempre, a partir de mediações, por atores e espectadores.

Faz bastante sentido, então, que vários desses fatos históricos sejam trazidos ao público a partir de cenas nas quais os atores manipulam numerosos brinquedos e miniaturas, projetando suas imagens em tempo real sobre uma tela instalada no fundo do palco. Se tal estratégia, por um lado, reforça a distância entre as histórias ali contadas e a experiência daqueles que as levam à cena, por outro, também remetem a governantes que tratam seus povos e territórios como se, em um permanente exercício de manipulação, apenas praticassem um violento jogo de tabuleiro cujas injustas regras há muito já se conhece.

Tal escolha também se articula à importância que a juventude ganha em El Rumor do Incêndio. Presa pelo Estado mexicano antes de completar 25 anos, Margarita é apenas uma entre os vários jovens que, em diversas partes do mundo, afirmam a possibilidade de mudança ao dedicar parte considerável de suas existências à luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Não é de se estranhar, portanto, que as máscaras utilizadas pelos atores em outros momentos do espetáculo remetam a rostos masculinos e envelhecidos, como aqueles que há anos habitam o Congresso brasileiro. Seja no México ou no Brasil, afinal, a falta de representatividade parece apresentar-se como raiz da falsa democracia que experimentamos, constituindo-se como recorrente empecilho à construção de sistemas políticos nos quais o povo, de fato, tenha o poder nas próprias mãos. “Quem são esses homens que nos governam? Por que deixamos que nos governem?”, pergunta a atriz e diretora Luisa Pardo, em um dos momentos mais contundentes do trabalho.

Enquanto brinquedos, miniaturas e risíveis máscaras de plástico emprestam certo aspecto lúdico à encenação, numerosos documentos e depoimentos que ocupam, em outros instantes, a mesma tela de projeção afirmam o peso da tradição documental dentro da montagem e do próprio trabalho realizado pelo grupo, que somente neste ano trouxe também ao Brasil os espetáculos Monserrat e Derretiré con un Cerillo la Nieve de un Volcán – ambos relacionados ao que se chama de teatro documentário.

Referindo-se a contextos de franca desigualdade política, geralmente marcados pelo monopólio do uso da força pelo Estado, o espetáculo problematiza ainda o papel da violência durante ações revolucionárias. Mesmo que ofereça mais questionamentos do que respostas a esse respeito, El Rumor do Incêndio nos provoca a pensar sobre certo senso comum que aceita e muitas vezes justifica a violência do Estado, ao mesmo tempo em que demoniza qualquer ação “não pacífica” organizada por aqueles que não detêm o poder.

Aparentemente acalmadas ao longo das décadas que marcaram a falaciosa transição entre regimes ditatoriais e democráticos, dada a violência estrutural da qual todos somos vítimas, cúmplices e testemunhas, tais reivindicações têm ganhado, nos últimos anos, um fôlego novo, frequentemente embalado por jovens que já não se acomodam sob estruturas e arranjos sociais cada vez mais arcaicos. Se as histórias de luta dos anos 1960 e 1970 muitas vezes nos conduzem à imagem de uma juventude que falhou por não concluir a revolução almejada e alcançar suas reivindicações, resta-nos saber que histórias serão contadas sobre aqueles que, sobretudo desde 2011, devolveram ao debate público uma luta contínua e multifocal pelo respeito aos direitos humanos e civis reservados a cada um de nós.

Cubalândia traça imagens da decadência

Foto: Divulgação Tusp
Foto: Divulgação Tusp

Crítica do espetáculo Cubalândia, do grupo El Ciervo Encantado de Cuba, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

5 de dezembro de 2015

As dimensões territoriais de Cuba são inversamente proporcionais às paixões que essa ilha já despertou em gente de todo mundo. O cromatismo afetivo compõe um paradoxo de julgamentos, o que inclui sua própria população. Da revolução socialista à abertura ao capitalismo, cabe todo tipo de interpretação dos que estão de fora aos que estão lá dentro. O solo Cubalândia, do grupo El Ciervo Encantado de Cuba, com a atriz Mariela Brito e direção geral de Nelda Castillo, – exibido dentro da programação II Bienal Internacional de Teatro da USP – aplica a chave do grotesco para criticar a política dos irmãos Castro e seus companheiros e expor uma visão de decadência cultural, daquele país que já foi apontado como o utópico laboratório do socialismo.

A figura que surge nessa reorganização da economia cubana, apresentada no espetáculo, é a “cuenta-propista” – a empresária por conta própria, a empreendedora. Yara, a Chinesa, tem três licenças para trabalhar e oferece excursões pelos lugares paradisíacos da ilha. Ela salienta o tempo todo que viajar, com ela, para Varadero, Viñales, Trinidad ou Santiago de Cuba é um investimento e, consequentemente, terá retorno.

Seus clientes potenciais são os próprios cubanos, os que recebem seus salários em CUP (moeda nacional). A outra é o peso cubano conversível (chamado de CUC), usada para comprar alimentos, pagar viagens e hotéis. Então, correm duas moedas no país, uma com mais valor que outra. Talvez aí resida uma crítica severa à simulação de igualdade a partir dos dois dinheiros: dois pesos e duas medidas. Mas se a ideia era realmente essa em Cubalândia, de detonar com a economia subterrânea, essa sutileza parece que não acertou o alvo para a plateia brasileira.

Não é possível conferir o desempenho de Mariela Brito descolado da realidade da ilha, que já foi o ideal refúgio socialista. Nem deixar de pensar na mundialização da cultura, com todos os prejuízos que isso acarreta.

A protagonista vende a ilha para turistas e nativos. Além das belezas edênicas, ela propõe uma restituição financeira a partir de alguma atividade escusa: contrabandear charutos ou coisas parecidas. Yara China é uma cubana que acumulou bens baratos e é capaz de quase tudo para sobreviver. Ela é uma figura festiva, otimista, que fala o tempo todo de maneira apressada e nem dá para entender o que ela está dizendo direito (tem as legendas, que ajudam). A protagonista se apresenta vestida de forma espalhafatosa. Peruca, unhas excessivamente longas, lábios pintados com cores brilhantes, as roupas apertadas e curtas (short e mini blusa), sapatos plataforma e um conjunto de pulseiras e brincos dourado formam sua indumentária. A maquiagem pesada e um contorno preto, que lembra a pintura do palhaço, e dois dentes de ouro completam o layout desse rosto que termina ganhando ar de pouca confiabilidade.

Para armar sua tenda e estabelecer o seu negócio, Yara, a Chinesa, carrega consigo um mapa fragmentado da ilha, chamado de “Doble Moneda”, criado pelo artista Lázaro Saavedra. Instala um cartaz de Fidel e Raul Castro e uma pequena estátua de um índio contra mau olhado.

Nesse jogo ela procura desmitificar ícones. Se a montagem de sua figura já compõe o exagero, os códigos gestuais clamam pela vulgaridade. O riso é disparado pelo mau gosto da cena, do grotesco, do ridículo. Em sua atuação como marqueteira para vender a ilha, a personagem dança, com requebros que lembram o funk ou pagode em que a linguagem chula predomina e isso é acompanhado pelos movimentos do corpo. Yara, a Chinesa parece uma mistura de personagens popularescas de Zorra Total, Gretchen, falsa cigana e as novas celebridades da música apelativa.

O discurso é cínico e exagerado. Sua sátira aos encantos da Cuba que tenta vender desperta um desconforto. Parece-me que há um fundo ético e estético nessas escolhas. De denúncia de algo podre dentro do arquipélago. Mas muitas questões me vieram à mente durante a apresentação carregada de zombaria e escárnio, piadas e ridicularização da realidade atual, que remete à história cubana, seus mais de 50 anos de revolução e do embargo econômico à Cuba socialista provocado pelos Estados Unidos.

Espero que minha percepção não seja muito idealista de uma Cuba que visitei há mais de 15 anos, que se abria aos poucos e, mesmo com as controversas opiniões do povo cubano, ainda guardava uma aura de resistência. A Revolução Cubana sempre defendeu seu estado de perfeição, com as conquistas revolucionárias. A pressão externa (e interna) para desestabilizar o governo já passou por muitas etapas. Fica a sensação de uma construção inacabada. Diante de um possível fracasso, o espetáculo grita em alto e bom som que a alienação se instalou também na sociedade de José Martí.

Talvez a “elegância” de decadência seja uma forma de mostrar a precariedade de um povo, projetada na figura patética da agente de turismo de uma Cuba temática. Talvez fale alto de uma miséria espiritual que chegou depois de tantos anos de adversidades. Quem sabe uma crítica mordaz ou um espelho a alertar dos erros e excessos sem precedentes.

Se o cubano sabe zombar assim de seus infortúnios; o ridículo, o infame, o kitsch de Cubalândia que aciona seu arsenal contra a política interna de reposicionamento do país conduzida por Raul Castro leva a crer que as novas estratégias de dominação dos Estados Unidos são esquecidas ou sublimadas no espetáculo.

De todo modo, para uma plateia como a brasileira, que está exausta com os personagens caricatos da indústria cultural, que visam o riso fácil e sem grandes reflexões, a figura de Yara, a Chinesa parece mais uma dessa galeria bizarra e descartável.

O espectador, um intruso

Crítica da peça Stereo Franz, do grupo [pH2]: estado de teatro

II Bienal de Teatro da USP

A tarefa a cumprir neste breve texto é fazer uma crítica de Stereo Franz, peça do grupo [pH2]: estado de teatro, que está na programação da II Bienal de Teatro da USP. A peça parte de Woyzeck, de Georg Büchner, texto muito usado no teatro por grupos ou encenadores que desejam trabalhar com poéticas da fragmentação e/ou com recursos da encenação contemporânea. A ideia de uma “tarefa a cumprir” aparece aqui porque a prática da crítica nem sempre pode se dar ao luxo de ser exclusivamente espontânea e criativa. Às vezes a crítica tem que tentar dar conta de uma tentativa de diálogo que pode estar condenado a uma conversa de surdos.

Muitas vezes a crítica é um embate ideológico, como quando há um desencontro entre o pensamento sobre teatro da crítica e o pensamento sobre teatro dos artistas cuja obra está em questão. O caso aqui pode não ser o da simples crítica negativa, talvez se trate da exposição de uma divergência com relação a um ponto específico do teatro que é a relação dos artistas com os espectadores – enquanto proposta de elaboração poética, algo que se dá tecnicamente, como parte do trabalho e não como consequência subjetiva do acaso e das afinidades aleatórias.

Os recursos usados no espetáculo compõem praticamente um checklist de elementos das poéticas contemporâneas do final do século XX: a recusa do drama, o uso do audiovisual, a presença de línguas estrangeiras, textos proferidos em microfones, um espaço externo que o espectador só vê em parte, a mistura de linguagens (com a presença da música ao vivo, por exemplo), referências (no caso da música) à cultura pop ou a canções de apelo popular, uma opacidade na lida com os sentidos e, por fim, uma adesão à estranheza como norte para os elementos da cena. Assim, a peça se apresenta como um exercício formal sobre o teatro, mas com um vocabulário poético já estabelecido, que parte do público de teatro já encaixa em poucos minutos em categorias dadas, como teatro experimental, teatro alternativo, teatro contemporâneo, etc.

Foto: Divulgação.
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O exercício sobre a opacidade da linguagem, reiterada com a sobreposição de elementos, corre o risco de desencadear uma dinâmica de anulação. Por mais que se deseje dar menos atenção à produção de sentido e lidar com o espetáculo por outras vias, a busca pelo sentido não nos abandona – ela é da natureza da sociedade em que vivemos, podemos tentar neutralizá-la, mas é ingênuo acreditar que podemos nos livrar dela. Os vídeos, expostos em televisores com resolução de imagem precária, fica restrito aos que estão mais próximos dos aparelhos. O que acontece no espaço externo também fica distante demais para quem não está de frente para a porta. Assim, em Stereo Franz, buscar o sentido nas palavras e frases que conseguimos, com esforço, discernir é tudo o que nos resta. Com isso, o texto ganha um protagonismo que não combina com os esforços de polifonia e sobreposição de camadas da encenação.

Soma-se a essas condições o fato de que Woyzeck tem um papel canônico na história do teatro – e um papel canônico enquanto texto – mesmo que as formas da dramaturgia não obedeçam a regras prévias nem tenham gerado novas regras. Resulta que o texto – um texto clássico – permanece como núcleo do espetáculo. Aparentemente tentando não fazê-lo, a peça acaba por reiterar uma noção textocêntrica do teatro, na qual o que é importante (o conteúdo) é anterior à cena ou está por trás de uma superfície (o espetáculo) que se precisa desbastar.

Mas o que me parece um problema nuclear é que a peça estabelece uma relação exclusivamente cerebral com o espectador, que deve estar interessado em refletir sobre os problemas formais das artes cênicas, que deve se entreter com a identificação dos recursos técnicos e tentar adivinhar o que as opções estéticas querem dizer sobre o material a partir do qual se está trabalhando. Essa concepção exclusivamente cerebral toma o corpo do espectador como um corpo estranho, que deve ser tratado (reiteradamente) como corpo estranho, que praticamente deve ser expelido do teatro. O corpo do espectador não é bem-vindo. A sensorialidade da peça opera apenas pela via do incômodo, do desconforto, sempre na mesma nota. Isso se percebe especialmente na atitude dos atores para com o público.

A encenação coloca público e atores no mesmo plano espacial, mas os atores são os donos do espaço: os espectadores têm que se encolher para que os artistas se desloquem e façam as suas cenas, para não atrapalhar. A relação ator-espectador é impositiva, vertical. As falas são gritadas, muitas vezes cuspidas nos espectadores. Uma atriz se desloca de maneira atabalhoada, servindo Campari nos copos espalhados pelas mesas, sem se incomodar se está derrubando a bebida em alguém. O espectador, se está no teatro, tem que sofrer as consequências. A proximidade proposta é apenas espacial, não há relação de convívio nem possibilidade de diálogo. Essa foi a impressão que tive da peça, mas o que me intriga é que essa não parece ser a intenção do grupo. Talvez tudo isso seja consequência da falta de uma reflexão mais apurada sobre a condição do espectador no teatro em 2015 e os modos de trabalhar isso na poética da cena.

Teatro historiográfico do presente

Crítica da peça O rumor do incêndio, do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol

A primeira coisa que me chama a atenção em O rumor do incêndio, do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol, que se apresenta neste novembro de 2015 na II Bienal de Teatro da USP, é a ideia de um projeto artístico. Pode parecer uma coisa óbvia, que todo espetáculo teatral é um projeto artístico, mas não é bem assim. E quando falo em projeto artístico nesse caso específico não me refiro a um projeto de investigação formal, de pesquisa de linguagem, das poéticas do teatro, suas especificidades ou as possibilidades de criação interdisciplinar (que não deixa de ser uma especificidade do teatro). Me refiro a uma motivação que não se restringe às formas – embora não as deixe de lado. Não se trata simplesmente de entender o trabalho como uma espécie de teatro político, categoria carregada de diversos preconceitos e formas envelhecidas. Embora o conteúdo seja declaradamente político no sentido mais imediato da palavra (aquele que diz respeito a golpes, partidos, revoluções, guerrilhas, eleições, etc) e as formas do teatro documentário sejam características de um teatro político, me parece que O rumor do incêndio demanda um outro olhar, que ainda não sabemos qual é. O que é o teatro político do nosso tempo?

Movidos pelo pensamento crítico sobre o seu passado histórico, o questionamento, dirigido a si, sobre o presente que parece inerte e acreditando em perspectivas interessantes para o futuro, ou seja, sem idealizações, culpas, nostalgias e, principalmente, sem niilismo, o grupo criou uma peça que narra, com diferentes pontos de vista, um recorte da história do México: os anos 1960 e 1970.

O projeto artístico de que falo é um projeto que inclui o fazer teatral e o estar no mundo – ou melhor, o fazer teatral como um estar no mundo, consciente da sua historicidade. O fato mesmo de que a peça é uma espécie de teatro historiográfico nos faz pensar sobre as formas da história, não apenas sobre as suas narrativas – debate comumente restrito aos historiadores e teóricos da disciplina. Pensando em O rumor do incêndio, bem como em Derretiré con un cerillo la nieve de un volcán, outra peça do mesmo grupo sobre a qual tive oportunidade de escrever em outra ocasião, e espetáculos bem diferentes como Galvarino, do grupo chileno Teatro Kimen, Mi vida después, de Lola Arias, Guerrilheiras, projeto da atriz carioca Gabriela Carneiro da Cunha e Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas, de Joana Craveiro, de Portugal, tenho o palpite de que o teatro documentário contemporâneo está a fim de repensar a escrita da história. E não me parece forçado dizer que há um protagonismo feminino nessas iniciativas. A história oficial, especialmente a história política, a que mais chega ao senso comum, é uma história escrita por homens sobre homens em um mundo dos homens. Até agora.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

O rumor do incêndio coloca duas narrativas em paralelo. Uma delas é a história dos acontecimentos tidos como mais importantes, como os atos das instâncias de governo, as batalhas da luta armada, os números, as datas e as narrativas que podem ser comprovadas com documentos, matérias em jornais e fotos oficias. Esse tipo de narrativa histórica é sempre tomada como fiel à realidade – mesmo que saibamos que a história oficial dos países da América Latina é feita de mentiras, ocultamentos, adulterações. A peça apresenta essas narrativas em diversos momentos a partir de maquetes e soldados de brinquedo, posicionados em uma bancada comprida e filmados ao vivo pelos atores, enquanto as imagens geradas são projetadas em um telão. As imagens de guerra que conhecemos são imagens cinematográficas, extremamente espetacularizadas, ou televisivas, com os enquadramentos dados pelas regras do jornalismo midiático, que seleciona o que podemos e o que não podemos ver e como as imagens devem ser vistas. A peça faz um paralelo entre esses mecanismos e uma ideia comum de historiografia, linear, plana e sem lacunas como a bancada usada como suporte para as encenações com as maquetes.

A outra é da ordem da micro-história e de natureza biográfica: a história de Margarita Urías Hermosillo, guerrilheira que passou alguns anos na prisão e, depois disso, dedicou-se a outros fazeres: a antropologia, os amores, os filhos. As imagens que comprovam a sua existência não são apenas seus documentos, mas fotos cotidianas, além de relatos de quem a conheceu e conviveu com ela. O modo de apresentação da sua história não é como aquela narrativa filmada na bancada linear. Sua história é dramatizada. Os atores Francisco Barreiro e Gabino Rodríguez e a atriz Luisa Pardo encenam momentos da sua vida. Luisa também faz a personagem Margarita falando na primeira pessoa. Vemos então a dimensão de liberdade criativa possível para narrar a vida de uma pessoa real, que não é um personagem histórico, no sentido da história política oficial. Margarita seria uma anônima da história do México. O elemento cenográfico mais usado nessa dramatização da vida de Margarita é uma mesa, que dá a dimensão de uma história vivida em casa. Soma-se a isso o recurso de fazer a personagem falar na primeira pessoa, o que dá uma dimensão humana e ressalta o quanto o processo de ficcionalização é intrínseco à escrita da história, mesmo quando não é evidente.

A cenografia é bem determinante. Todo os elementos usados na cena estão dispostos no cenário. Tudo é, por assim dizer, útil. Mas há também uma artificialidade declarada, evidente no piso de grama sintética e nas plantas artificiais penduradas ao fundo do palco. É como se a cenografia quisesse evidenciar a artificialidade mesma de falar da luta armada no campo de décadas atrás, desde um ponto de vista urbano contemporâneo.

De modo geral, costumamos pensar o drama como forma de discutir os problemas do núcleo familiar, de ordem ética e moral, e o teatro épico como meio de propor questões coletivas, de ordem política. A peça do Lagartijas nos apresenta um épico que também é familiar, bem como uma história familiar que também é política, o que fica ainda mais claro para o espectador nos últimos minutos do espetáculo. A ideia de conferir humanidade à narrativa histórica pode ser um meio de torná-la mais próxima, para podermos olhar para o passado como algo que realmente faz parte do presente – o que todos sabemos, mas às vezes nos esquecemos.

A pergunta central do projeto como um todo é anterior às questões da cena e as ultrapassa, mas é o que finca o espetáculo no chão do presente. Se as gerações que nos sucedem quiserem falar de nós, do que fizemos quando jovens, elas falariam de quê? A pergunta nos interpela, nos chama para a conversa e nos coloca em cheque, mas o faz sem aquela empáfia de teatro político velho em que os artistas acham que têm que despertar os espectadores do seu sono de alienação. Em O rumor do incêndio, estamos todos no mesmo lugar, em uma conversa entre iguais. Nenhum de nós sabe o que deve fazer pelo futuro, nem o que deveria estar fazendo no presente. Mas a peça nos convida a abordar o problema por outros ângulos, fazendo do teatro épico, político, documental e historiográfico um lugar de pensamento com afeto.

De imagens, estados, belezas e vaidades

Crítica da peça Anatomia do fauno do Teatro da Pombagira – Coletivo de Criadores

II Bienal de Teatro da USP

Em cartaz na SP Escola de Teatro e integrando a programação da II Bienal de Teatro da USP, Anatomia do fauno do Teatro da Pombagira – Coletivo de Criadores apresenta uma dramaturgia de estados com imagens da vida sexual homoafetiva na solidão da vida na cidade. Com direção de Marcelo D`Avilla e Marcelo Denny, o elenco formado por 21 homens e uma mulher, Camilla Ferreira, realiza movimentos predominantemente coreográficos e alguns poucos dos quais se pode vislumbrar uma narrativa, uma ideia de cena mais identificada com o teatro. Assim, não temos personagens, mas figuras praticamente despersonalizadas, corpos mais que pessoas. As imagens são por vezes alegóricas, por vezes literais.

O espetáculo tem dois momentos, norteados por sentidos opostos. O primeiro, mais longo e mais tenso, mostra os corpos numa perspectiva sexual violenta, solitária, nada romântica, em que líquidos, fluidos corpóreos e externos se misturam e se espalham, muitas vezes respingando o espectador. A ideia da proximidade física do espectador parece condizente com a poética das imagens que talvez perca a dimensão de plasticidade à distância. Algumas imagens são fortes, têm presença e uma estranha beleza, mas outras são apenas explícitas e reiterativas, o que pode provocar uma oscilação de interesse no espectador. A duração de alguns quadros também contribui para certo esvaziamento. O esgarçamento acaba por jogar luz sobre a vaidade do ator por trás do trabalho, enfraquecendo o trabalho em si. No segundo momento, isso se desfaz, mas voltaremos a essa parte mais à frente.

Foto: Hélio Beltrânio.
Foto: Hélio Beltrânio.

É perceptível que o grupo realiza a sua proposta neste espetáculo. No entanto, algumas questões da proposta mesma podem ser brevemente discutidas aqui, também como problemas gerais do teatro, mais que da peça especificamente, embora esses problemas estejam ali. Uma delas é a ideia de entrega – o que estimula o problema da vaidade acima mencionado. Acontece com frequência quando um ator ou uma atriz está fazendo um trabalho que demanda um esforço físico exacerbado ou uma exposição pessoal além do comum, que ele ou ela fiquem envaidecidos da própria entrega. Isso também acontece porque é comum que as pessoas fiquem elogiando esse tipo de desempenho. Por mais que o teatro seja feito de méritos compartilhados, os trabalhos individuais também merecem ser celebrados, certamente. O problema é quando o valor de desempenho da entrega se sobrepõe ao trabalho e fica visível na cena.

A relação com o espectador também pode ser levantada. É uma espécie de recalque do teatro querer incomodar o espectador pela condição mesma de ser espectador. O espetáculos de artes cênicas constituem a única categoria de obras de arte que simplesmente não acontecem sem espectador. Mesmo a performance art pode ser realizada sem espectador, tendo apenas registro audiovisual ou fotográfico e não deixa de ser performance. Peça de teatro sem espectador é ensaio. Por que então querer que o espectador deixe de ser “apenas” espectador, “meramente” um espectador, se essa é uma condição ontológica do teatro? A ideia de sujar o espectador, deixar sua roupa manchada ou com cheiro da mistura de líquidos e fluidos que se espalham pelo chão do espaço cênico é anacrônica nesse sentido. A querela do teatro consigo mesmo continua sendo uma discussão válida? Não superamos isso ainda?

Na segunda parte, acontece uma mudança de estado significativa, que chega como um alívio e consegue atingir uma leveza imprevisível, tendo em vista a tristeza e a agonia da primeira parte da peça. E o que me apareceu muito bonito é que a transição parece se dar justamente com a entrada em cena de uma mulher. Os atores encenam um convite a uma pessoa da plateia que de pronto aceita e se junta à cena. Percebemos em um instante que se trata de uma combinação prévia, até porque eles não ficam tentando nos enganar muito tempo. Logo ela se despe e inicia uma coreografia com eles. Sua presença traz uma alegria contagiante para a cena e toda a movimentação se torna uma grande celebração, da qual alguns espectadores são gentilmente convidados a tomar parte. Nesse ponto, com as vaidades menos evidentes e uma relação mais amigável com o espectador, o espetáculo se encerra com uma virada cheia de esperança para a vida lá fora.

Um autêntico documento ficcional

Crítica da peça Instrucciones para abrazar el aire, do grupo Malayerba, do Equador

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Um dia antes de assistir à peça Instrucciones para abrazar el aire, participei como mediadora de um encontro entre artistas da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, no qual estava o grupo Malayerba, do Equador, com os criadores Arístides Vargas, Charo Francés e Gerson Guerra. No debate, tive a oportunidade de ouvir o grupo falar, com muita clareza e propriedade, sobre o próprio trabalho e sobre a peça que está na programação da mostra. Aqueles que estavam presentes puderam conhecer antes de assistir ao espetáculo os fatos que motivaram a criação. Charo e Arístides nos contaram a história de uma casa em La Plata, que funcionava como imprensa clandestina. Como fachada, ativistas assumiam o papel de cozinheiros que faziam conservas de coelho a escabeche e as conservas eram embaladas com os papéis do jornal que produziam, e que só assim circulava. Em 1976 a casa foi alvejada por fora. Todos os que estavam lá dentro morreram, com exceção de uma criança, ali sequestrada e até hoje não encontrada. A história foi contada para eles por Chicha Mariani, a avó dessa menina desaparecida cujos pais foram assassinados no ataque à casa.

Não por saber previamente da história – que qualquer espectador pode saber procurando informações sobre a peça na Internet, lendo sinopses e críticas do espetáculo – mas por ouvir uma apresentação feita pelos criadores em uma conversa, minha percepção da peça já contava com uma sensação de vínculo, de empatia pelo trabalho. Faço essa observação preliminar porque, como crítica, artista e espectadora, sou defensora das mediações. Vejo a importância da mediação como forma de aproximação entre artistas e público, algo que deveria ser sempre uma prioridade nas iniciativas de teatro – especialmente quando estamos em contato com culturas de teatro que não são aquelas com as quais lidamos no cotidiano de um determinado território cultural.

A história é apresentada por três casas, com três casais: os avós que procuram a neta, os ativistas cozinheiros de coelhos e os vizinhos que observam a casa clandestina. Em cada casa, uma ideia de teatro diferente onde a dupla trabalha com linguagens diversas. A alternância de gêneros é uma premissa da dramaturgia. Passamos rapidamente de cenas cômicas com chistes descompromissados para cenas em que é impossível rir do que está sendo dito e para outras em que o lirismo nos faz ver a beleza apesar do horror. O espetáculo se constrói com diferentes registros de interpretação, que se intercalam e se alimentam uns dos outros. Cada casal assume um tom, uma temperatura, um tempo diferente. Escutamos as histórias por diferentes pontos de vista, que nos demandam que estejamos prontos para mudar de expectativa a cada cena. E parece que a atividade constante de mudança na recepção vai aos poucos derrubando os muros, abrindo brechas para chegar na sensibilidade do espectador. É como acompanhar um festival: a cada espetáculo, as premissas são diferentes, cada um tem as suas regras, temos que adaptar as nossas expectativas, abandonar saberes e adquirir outros a cada vez que começa um novo espetáculo. Nossas noções de teatro são abaladas (felizmente) e aprendemos a ver cada peça de acordo com as suas questões, não só com as nossas.

Foto: Jenniffer Glass.
Foto: Jenniffer Glass.

Mas, no que diz repeito a verdades e realidades, me parece interessante e perfeitamente adequada a ideia de documento ficcional, um aparente paradoxo, com o qual a peça é apresentada. Quantos documentos produzidos durante os períodos ditatoriais na América Latina não são de certo modo “ficcionais”, ou melhor, mentirosos? Quantas confissões proferidas ou assinadas por coerção da tortura não são uma “ficção” construída pelo medo? E o que dizer dos documentos dos filhos e filhas, netos e netas, cuja identidade foi roubada e alterada nos inúmeros casos de sequestros? A questão é que entre mentira e ficção a diferença é grande. A mentira é a antítese da verdade, mas a relação da verdade com a ficção é mais complexa. Os procedimentos de criação ficcional estão presentes em todas as formas de escrita historiográfica, a elaboração das narrativas que são comprometidas com a verdade conta necessariamente com a imaginação, com a ficcionalização, como método para criar coerência. Daí que toda historiografia é criativa e, em alguma medida, ficcional.

O aparente paradoxo da ideia de documento ficcional é que a primeira palavra afirma uma verdade e a segunda a desmente, mas não anula sua proposição. O documento ficcional aqui não deixa de ser um documento, mas sua verdade é de outra natureza. A ficção é um meio para orbitar em torno da verdade, essa abstração que nunca poderemos conhecer de fato. Com a confecção deste documento ficcional, o Malayerba está encenando historiografia, colocando verdades em jogo a partir de elaborações poéticas, narrando fatos para que possamos escutar essas narrativas de outra maneira – porque não podemos esquecê-las mas também não conseguimos simplesmente repeti-las.

Neste encenar historiografia, há um fator determinante, uma camada de produção de sentido que é também produção de presença: os corpos de Charo e Arístides como documentos de uma história recente, em que a autenticação das verdades está carimbada na carne da experiência de suas histórias de vida. São corpos historiadores, expressão que tenho usado para falar do trabalho de atores que são narradores e testemunhas, rastros e evidências de acontecimentos dos quais precisam falar. A condição mesma de migrantes, o conhecimento profundo das narrativas de violências das ditaduras, a solidez da trajetória de mais de 30 anos de teatro, tudo isso inscreve nos seus corpos a habilidade para escrever suas histórias no espaço tridimensional do teatro, com a elaboração poética necessária, através da oralidade, da potência da palavra falada no teatro.

Sabemos que a experiência não é passível de compartilhamento, que não somos capazes de sentir a experiência do outro. Mas também não conseguimos deixar de tentar. No teatro, com a generosidade dos corpos que se dão a falar, parece que a escuta dá um passo adiante nesse sentido, impossível como abraçar o ar.