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Nomeando Jacy

Crítica de Jacy, peça do Grupo Carmin

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

O espetáculo do Grupo Carmin, de Natal, Rio Grande do Norte, se apresenta pela primeira vez em São Paulo na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo da Cooperativa Paulista de Teatro. Combinação de projeto, obra do acaso e investigação (artística e quase policial), a gênese da criação da peça, escrita em colaboração com os filósofos Pablo Capistrano e Iracema Macedo, é compartilhada com os espectadores pela atriz Quitéria Kelly, pelo ator, diretor e dramaturgo Henrique Fontes, e pelo cineasta Pedro Fiuza, que com palavras e imagens nos relatam duas aventuras paralelas. Uma delas é a criação de uma peça que começou como uma pesquisa sobre a velhice e que foi atravessada por uma história que eles não puderam ignorar. A outra é essa história que eles não puderam ignorar, a vida de uma mulher chamada Jacy, que nasceu em Natal, se emancipou com a II Guerra Mundial, mudou-se para o Rio de Janeiro, foi amante de um militar americano que ministrava treinamentos suspeitos para os militares brasileiros durante a ditadura, e voltou para Natal para morrer no esquecimento. Até que um artista de teatro se deparou com uma imagem na rua.

A conexão entre as duas histórias é justamente essa imagem, uma imagem performativa (se é que se pode dizer algo assim), que fez uma interpelação, como um ato de fala de uma aparição. Andando por uma rua de Natal no ano de 2010, Henrique se deparou com papeis voando de um saco de lixo, entre móveis e objetos recém-descartados, entre eles uma frasqueira daquelas que mulheres de alta classe usavam nos anos 1960. Dentro dessa frasqueira, documentos, artigos de maquiagem, cartas, cartões e objetos pessoais de Jacy. Assim se deu o encontro casual de um homem com um objeto jogado no lixo, que se revela uma sintonia muito fina do acaso com a fortuna e resulta num encontro minuciosamente elaborado do teatro com a história.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

A peça é sobre Jacy, mas também é sobre a velhice e sobre o teatro. E é sobre as imagens e a nossa capacidade de se deixar atravessar por elas a ponto de alterar as nossas rotas previamente programadas. O sentido da criação artística é o desvio e, em alguma medida, o da vida de Jacy também. O desvio aqui foi causado por uma interpelação do acaso, um chamado, como se a imagem tivesse dito “Henrique!” e ele entendeu que era com ele. Como vimos no palco do Centro Cultural São Paulo, Quitéria dedica o espetáculo a Jacy, chamando seu nome, como quem devolve a interpelação. Ela diz: “Jacy, onde você estiver, etc.”

Seria possível escrever sobre o espetáculo a partir de diversos pontos de vista. O trabalho é um prato cheio de questões atuais e relevantes sobre a cidade de Natal, a ideia de Nordeste, a história do Brasil, a presença das famílias de poder na política brasileira, os procedimentos de encenação teatral, as poéticas contemporâneas de dramaturgia de teatro documental e suas técnicas de atuação, bem como as implicações entre escrita ficcional e narrativa historiográfica. Mas escolho, tendo em vista o curto prazo e o pequeno espaço, apenas chamar a atenção para o gesto de nomear, interpelar, convocar. Nesse caso, convocar os mortos, convocar uma mulher, falecida, a contar a sua história. Desvelar a vida de Jacy, tirá-la do anonimato, pronunciar seu nome, é um gesto tão artístico quanto político, uma forma de assumir a responsabilidade sobre a memória de alguém, ressuscitar afetos, reescrever as histórias e a história de um lugar de fala nada oficial.

Ouvimos a história pessoal, tão real quanto fictícia, de Jacy, uma mulher independente, amante, escritora de cartas, que não seguia as regras do seu meio, e nos damos conta de que vivemos hoje no Brasil um momento de grandes revoluções nas mentes e ainda maiores retrocessos na política no que diz respeito ao entendimento do que é uma família. E temos que, em pleno 2015, defender com unhas e dentes os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo. O lugar da mulher na sociedade brasileira está à flor da pele na história pessoal de Jacy, como relatada pela dramaturgia do espetáculo. A família, como instituição, também está em cheque na peça do Grupo Carmin. E a velhice, questão política e social da maior importância, pontua a história da mulher, da família e do país com delicadeza diligente.

E tem um Brasil ali. O fato de que o ponto de vista da peça é marcado pelas ruas e pela história
de Natal é justamente o que oferece aos espectadores um olhar específico, particular, criativo, um olhar autoral para essa massa informe de imagens e narrativas que é a ideia de um país. Esse olhar autoral é o que cria mundos e, em consequência, dá a ver o que cria.

Jacy é daquelas peças que fazem a gente ver que o teatro está no mundo e que o teatro é muito importante. Como Jacy, essa figura possivelmente encantadora que parecia não ser ninguém especial para quem estava à sua volta, o teatro tem passado despercebido nas narrativas e nas imagens sobre história, memória e identidade brasileiras. Descobrir Jacy é descobrir o teatro, a maravilha da criação real-ficcional a partir de uma imagem, de um acaso, de uma convocação que muda o percurso programado, (re)descobrir, mais uma vez, que o teatro tem muito a dizer e que os modos de dizer do teatro têm força de interpelação.

O fetiche da miséria e a maldade do outro

Crítica da peça Condomínio Nova Era, do grupo A Digna Companhia

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

 

Condomínio Nova Era, peça do grupo A Digna Companhia, está na programação da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo com apresentações no espaço do grupo Sobrevento, talvez pequeno demais para o espetáculo criado originalmente para se apresentar em outro lugar. Na peça, nove atores e um músico contam a história de um edifício ocupado por pessoas simples, em condições miseráveis, sofrendo (em linhas gerais) com a falta d’água, a ameaça de despejo e a ausência de perspectivas de vida. O cenário é gradualmente montado e desmontado pelos atores em diferentes parte do espaço cênico. Os espectadores se deslocam entre uma cena e outra, o que dá ao andamento do espetáculo uma certa monotonia. A cada troca, um esfriamento e, com mais gente na plateia do que o espaço comporta, a possibilidade de ver a próxima cena de outro lugar ruim.

A peça se coloca como crítica social, com uma noção literal de teatro político, ou seja, teatro que se entende como político porque trata de um tema político e passa uma mensagem clara de opressores de um lado e oprimidos do outro. Mas o espetáculo é mais midiático do que político na medida em que apresenta as situações como preto no branco, sem espaço para nuances e complexidades, como fazem os noticiários de TV: imagens-fetiche para tentar chocar o espectador e verdades proferidas em tom grave de verdade e denúncia. Penso em imagens-fetiche como aquelas de uma visibilidade espetacular, não dialética, que quer impressionar. A imagem gravada e veiculada numa TV no cenário, em que um jovem delinquente cheio de raiva é entrevistado por um repórter cretino que faz perguntas para estimular o garoto a dizer coisas detestáveis, que estimulam o ódio e o asco do outro, é um exemplo de fetichização. Em vários momentos, o espetáculo assume o mesmo regime de visibilidade das imagens, quando mostra uma tentativa de identificação com o sofrimento, com a miséria, com a pobreza. E também quando fetichiza o esforço do artista.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Outra questão que talvez comprometa a dimensão crítica e política da peça é o fato de que o espetáculo está “pregando para convertidos”. Me parece que o público da peça é aquele que já sabe que a especulação mobiliária é desumana e higienista, que a polícia é violenta e abusiva e trabalha a favor do capital, e que uma parte imensa da população mundial vive em condições de precariedade absoluta. Quando todo mundo concorda, quando tudo já está dado, sem possibilidade de questionamento, não há debate. Sem debate, não há dimensão crítica. Ao espectador, só cabe confirmar o que já sabe e baixar a cabeça para o discurso dos artistas. Isso não é político. A vitimização de um e a demonização do outro não dá espaço para a reflexão. Por mais que essa polaridade faça sentido na vida, me parece que na arte precisamos ir além dos conceitos binários para instaurar um espaço de pensamento.

A ideia mesma de deslocar os espectadores também é uma espécie de fetiche, que parte de uma crença de que o espectador tem que estar literalmente se mexendo, sendo fisicamente tocado, sensoriamente incomodado ou atingido por alguma substância ou objeto que os artistas atiram na sua direção para ser um espectador “ativo”. Como se dar atenção a um espetáculo, criar imagens e desenvolver um pensamento sobre o que vê fosse de uma passividade condenável. No caso dessa peça especificamente, percebo uma pressuposição com relação ao espectador com a qual não compactuo: a de que o espectador precisa ser despertado da sua ignorância. No discurso da peça e no tom geral da montagem, especialmente quando o diretor entra em cena e começa a falar diretamente com o público sobre si mesmo e o seu próprio trabalho, me pareceu nítida a ideia de que os personagens e os artistas estão em um lugar de superioridade. Pelo tom messiânico do diretor, fica a impressão de que ele se sente detendor de verdades que os espectadores precisam ouvir. A encenação da “entrega” revela mais vaidade do que modéstia.

Em seu artigo O espectador emancipado, Jacques Rancière apresenta uma argumentação muito coerente sobre essa noção de teatro como lugar simplificado da assembleia, no qual o espectador é tratado como se estivesse numa condição de menoridade. Como o espaço do texto e o prazo de publicação são curtos, não me detenho na referência, mas recomendo a leitura, que ajuda a esclarecer o que estou querendo dizer sobre essa relação desigual entre artista e espectador.

É muito difícil quando o teatro tenta fazer denúncias no calor da hora. A urgência da pauta da denúncia não dá chance para o distanciamento necessário para a elaboração poética. A violência é expressão da maldade do homem, mais que dos interesses capitalistas e das diferenças de classe. E a maldade é uma das coisas mais complexas que a humanidade tem que enfrentar como condição própria. Se o mal é condição da humanidade como espécie, representá-lo como condição do outro (um outro esterotipado) pode parecer ingênuo e auto-indulgente.

Falemos exaustivamente daquele (do nosso) tempo

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia, do grupo OPOVOEMPÉ, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino Americana de Teatro de São Paulo

6 de novembro de 2015

Se a ignorância aprisiona as possibilidades do sujeito, o conhecimento é capaz de transformá-lo. Como já pregava Paulo Freire, a maneira mais efetiva de construir esse conhecimento talvez seja respeitando individualidades, levando-se em conta o que enxergamos do mundo ao nosso redor e as nossas potencialidades como seres em desenvolvimento. Sabedores disso, os atores do grupo Opovoempé, de São Paulo, propõem a experiência e a partilha no espetáculo Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia como forma de reconstituir o que foram os anos da Ditadura Militar no Brasil, tendo como elemento disparador da dramaturgia a batalha entre estudantes da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, no ano de 1968.

Quando entra no espaço cênico, uma instalação visual, o público logo se depara com um local repleto de informações e proposições; e, sendo assim, com a necessidade real de se fazer presente efetivamente na construção daquela experiência, baseada prioritariamente na informação. A responsabilidade é dividida entre todos que, de alguma forma, se percebem integrantes de um sistema que só funciona com a colaboração e a participação consciente: algo está sendo elaborado em conjunto, somos todos coautores de um processo que trata da apropriação da nossa própria história.

Nas várias mesas dispostas no Anexo do Centro Cultural São Paulo, na X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, jogos propunham a convivência e a discussão a partir de diferentes questões. Em determinada mesa, as pessoas debatiam como seria a sociedade ideal. O que de fato poderia caracterizar essa sociedade? Haveria a presença do Estado? O trabalho se faz necessário? Logo ali ao lado, no jogo de cartas, a proposta era elaborar construções de pensamentos a partir de determinadas palavras-chave. No jogo da memória, as imagens se sucedem em associações, em negociações semânticas. Enquanto uns jogavam, outros caminhavam pelo espaço, se demorando nos painéis com manchetes de jornais, nos livros, nas imagens, nos áudios disponíveis.

Através de depoimentos reais, os atores reconstroem o que foi o episódio da Rua Maria Antônia, quando estudantes de direita e de esquerda se enfrentaram com a conivência do poder estabelecido, causando muita destruição, pavor e morte. O prédio da antiga Faculdade de Filosofia da USP era considerado um reduto de resistência ao regime militar. Outras histórias se sucedem para fazer perceber o que de fato acontecia naqueles anos de repressão, como era comum que alguém desaparecesse, como alguém do alto escalão do Exército poderia estar sentado ao seu lado na sala de aula, como um professor, um catedrático, era espancado em plena luz do dia.

Opovoempé constrói um espetáculo de teatro documentário pleno de potência justamente porque se revela capaz de fazer refletir não só sobre os fatos históricos, mas aponta os indícios do quanto o passado ainda se configura como presente na sociedade brasileira. A nossa democracia impregnada por resquícios de um regime ditatorial. Somos capazes de pensar o nosso presente e as suas mazelas justamente a partir do empoderamento trazido pela consciência do que já passamos como coletividade. Nesse sentido, a montagem se faz ainda mais necessária quando percebemos, entre o público, a presença de muitos jovens, crianças até, que só ouviram falar da ditadura pelos livros de história, pelo professor do colégio.

Se vivemos novamente um momento de crise ideológica, se nos assustamos e nos sentimos perplexos quando o vizinho levanta a bandeira da volta da ditadura militar, o presente nos exige posicionamentos, exatamente como naqueles anos de repressão declarada, quando não havia a possibilidade de manter qualquer tentativa de imparcialidade. O trabalho do Opovoempé nos faz perceber o quanto ainda precisamos tratar de forma quase exaustiva de ditadura, dos nossos traumas, da nossa história. Talvez na experiência de contar e recontar e contar de novo, possamos de alguma forma nos libertar e construir novas perspectivas de presente.

Arqueologias do presente é um carimbo de quanto a arte é fundamental nesse processo de construção de memória coletiva. Cada vez que nos apropriamos dos acontecimentos do passado, estamos mais aptos a dialogar com as experiências do hoje, que não se revelam menos opressoras. Que liberdade queremos? A nossa realidade carece dessa capacidade de interpretação. Como lidar diariamente com os “Amarildos”? Com o fato de que grande parcela da população não tem o menor apreço pelos direitos humanos? Com o fato de que seu parente policial militar, na conversa na roda de amigos, diz que, sim, tortura bandido.

As memórias da ditadura precisam ser expostas, com urgência, como forma de resistência e luta contra uma política do esquecimento que não tem a menor intenção de nos empoderar. Na experiência artística circunscrita pelo tempo finito, em pouco mais de uma hora e meia de duração do espetáculo, encontramos, como um respiro, mesmo que doído, a possibilidade de convivência e de superação de realidades. Estamos tratando aqui de um teatro absolutamente necessário. O público impregnado nem aplaude, como se não coubesse o êxtase depois daquela partilha sensível. Vai saindo aos poucos… mas os resquícios permanecem em cada um. E isso não pode ser mensurado.

Da lama ao caos do encontro

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo A cidade dos rios invisíveis, do grupo Estopô Balaio (De)Criação, Memória e Narrativa, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo

6 de novembro de 2015

O trajeto entre as estações Brás e Jardim Romano dura algo em torno de 40 minutos. Antes mesmo de começar o caminho, se você entrou no trem assim que ele abriu as portas, a espera é um pouco maior: até quem parece enfadado depois de um dia de trabalho, desenvolve certa solidariedade por aquele que desce as escadas correndo apressado para não perder o transporte. Ah, até porque os papeis sempre podem se inverter no dia seguinte. Em tudo na vida.

Fechadas as portas, enquanto o trem avança em direção ao extremo leste de São Paulo, temos tempo suficiente para nos perdemos em nós mesmos. Os olhos vagueiam pela janela e dentro do próprio trem, no encontro visual com personagens anônimos. Quanto mais longe do Centro, mais as pessoas se entregam à exaustão, dormem; mais as paisagens e a arquitetura mudam. As verticalizações da “cidade-progresso” dão espaço a outros arranjos habitacionais, geralmente bem mais coloridos e diversos.

Nesse percurso, ouvindo uma gravação no mp3 (sim, o som alto, que se instaura para a coletividade, é proibido no trem) que incluiu o barulho do rio, textos poéticos, reflexões e depoimentos, começa o espetáculo A cidade dos rios invisíveis, do grupo Estopô Balaio (De)Criação, Memória e Narrativa. Foram três sessões dentro da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, todas marcadas pela chuva que caiu na capital nesses últimos dias.

Os criadores do grupo chegaram ao Jardim Romano no ano de 2011, pouco depois que as águas haviam baixado. Durante quatro meses, o rio que passa por trás da comunidade entrou mais uma vez nas casas que ficam na parte mais baixa do bairro. Da mesma forma que, muitas vezes sem pedir licença, tomamos o espaço da natureza, vez ou outra, recebemos um sinal. Talvez não seja nem uma resposta desaforada, mas é assim mesmo que geralmente encaramos. O rio que invadiu e alagou as casas deixou marcas em diversos âmbitos na comunidade.

Enquanto as crianças diziam que tinham visto peixes “pularem” no meio da enchente, jovens e adultos carregavam outras memórias e experiências normalmente bem menos lúdicas. Desde então, tendo a comunidade como parte efetiva do grupo, o Estopô Balaio já fez outros dois trabalhos a partir das vivências no Jardim Romano. O terceiro é justamente A cidade dos rios invisíveis, que usou como uma das referências o livro As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino.

O movimento de travessia em direção ao encontro está no cerne do projeto. Na itinerância do Brás ao Jardim Romano, no caminho pelas ruas e becos até o rio. No encontro entre os atores “profissionais” e atores “moradores”, entre esses e o espectador. No encontro entre a poesia e os relatos da vida cotidiana. Os atores vão conduzindo a itinerância: que, dependendo da chuva, tem até 13 momentos, a maioria deles marcados por personagens do próprio bairro. Na Rua Miguel de Quadros Marinho, por exemplo, ouvimos a entrevista de Dona Jacira, nordestina, que fala sobre a condição da mulher. Na Rua Cochonilha, o público se depara com invenções, para ver a vida de outra forma. No Beco da Rata, mais poesia. Crianças da comunidade acompanham o percurso inteiro empolgados (até que algum pai ou mãe chama) e também participam da encenação.

Se as relações, inclusive na arte, podem ser mais rápidas e fortuitas, não foi o que aconteceu entre o Estopô Balaio e o Jardim Romano. Isso é muito claro para quem acompanha a apresentação e faz a diferença completamente nesse projeto, que diz muito mais sobre respeito e empoderamento do que só sobre arte e teatro em si. Foi no bairro, por exemplo, que o grupo instalou sua sede, numa demonstração efetiva de que o olhar estrangeiro queria ser tomado, fundido, pelo olhar local.

Esse talvez seja o principal mérito desse trabalho. Ao mesmo tempo em que os atores “profissionais” realmente acumulam experiências de vida e não só simulacros e memórias, os atores “moradores” atravessam o caminho em direção à própria voz. Estão todos no mesmo barco, na mesma rua de paralelepípedo, no mesmo beco enlameado que tem as paredes cobertas de poesia. Todos se influenciam, se misturam, se deixam afetar.

É um espetáculo também que desperta a noção de pertencimento, discute a cidade que queremos, a vida que desejamos levar, os sonhos pelos quais lutamos. Se durante muito tempo na comunidade, era o rio quem vinha ao encontro dos moradores, impondo como eles mesmo dizem, os tempos da água, da lama e do pó, agora somos nós que vamos ao rio, num movimento não só de autocompreensão, mas de tentativa de diálogo com o mundo no qual estamos inseridos.

Armadilhas do real

Foto: Jennifer Glass
Foto: Jennifer Glass

Crítica do espetáculo Caminos invisibles…La Partida, da Cia Nova de Teatro, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

X Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo

6 de novembro de 2015

Lidar com o real no teatro revela-se uma equação complexa. No artigo Entre mostrar e vivenciar: cenas do teatro do real, escrito por André Carreira e Ana Maria de Bulhões-Carvalho para a revista Sala Preta, os autores afirmam que “os espetáculos que utilizam o real como matéria, ou dialogam com o real como tema, pedem uma reflexão sobre como podemos construir percepções do real que se projetam para além do efeito imediato, sustentado principalmente pela informação de sua presença na cena”. O espetáculo Caminos invisibles…La Partida, da Cia Nova de Teatro, envereda pelo desafio de tratar da trajetória de imigrantes que chegam ao Brasil e são cooptados por um sistema cruel de subjugação. A montagem, com direção e dramaturgia de Carina Casuscelli, e direção artística e iluminação de Lenerson Polonini, participou da X Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo com apresentações no Centro Cultural da Juventude, no extremo norte de São Paulo.

Na montagem, brasileiros e bolivianos dividem o palco para retratar a situação de imigrantes sul-americanos que chegam ao Brasil em busca de melhores condições de vida, mas acabam empregados em fábricas de costura, tornando-se vítimas do trabalho escravo. A narrativa se desenrola principalmente através da história da personagem principal, uma boliviana interpretada pela própria Carina Casuscelli. Mesmo que o papel principal seja de uma brasileira (que realmente parece boliviana no palco), a potência da montagem me parece calcada basicamente no fato de que os bolivianos (há uma banda de bolivianos fazendo a música do espetáculo ao vivo, além das mulheres da fábrica e de um feitor) estão em cena, como documentos de suas próprias histórias, testemunhos vivos, conferindo abrangência de possibilidades narrativas e, claro, legitimidade à proposta teatral inicial. Mesmo que não tenha acontecido de forma literal com aqueles bolivianos, isso não fica claro, o enredo principal é fincado no real. Todos os andinos ali, certamente, de alguma forma, já sofreram as consequências de serem estrangeiros no Brasil: fronteiras raciais, preconceito, invisibilidade social, injustiças.

A questão é que, ainda que o principal argumento da encenação sejam os imigrantes e eles estejam em cena, há muitas armadilhas pelo meio do caminho. A narrativa, apesar de tentar englobar vários âmbitos da questão, faz isso de maneira bastante superficial. Os personagens caem facilmente na caricatura: o feitor que, mesmo sendo boliviano, obriga as mulheres a trabalhar incessantemente; uma jornalista de televisão que entrevista uma estilista deslumbrada; a polícia carrasca e desonesta; o político corrupto; o pastor que se aproveita dos outros. As interpretações, em sua maioria, estão na chave do histrionismo, do sensacionalismo, não permitindo nuances e enveredando por radicalizações.

Além disso, na cena tudo está dado de forma “mastigada”, não esboçando as complexidades, as diferenças, os conflitos, de maneira que o espetáculo tentasse possibilitar ao espectador criar suas próprias perspectivas sobre o tema. A capacidade desse espectador é negligenciada, numa montagem em que não há espaços para associações, questionamentos, interpretações. Como exemplo, a última fala da peça resume o tema/resultado da encenação, como se isso já não houvesse ficado claro o suficiente.

A direção ainda envereda pelo uso da linguagem audiovisual, principalmente quando faz projeções de cenas. Mas o recurso não traz outras camadas que possam causar qualquer fricção com o que já se mostra estabelecido na encenação. Para o desenrolar da dramaturgia, não faz grande diferença ter a presença do diretor em cena que, no caso, exerce o papel de cinegrafista em momentos específicos da peça.

Se a ideia do projeto é rica em possibilidades, a concretização da cena pouco possibilita ao espectador a experiência da troca. Seja qual for a temática, em se tratando ou não de imigrantes, talvez uma das chaves esteja na capacidade de enveredar por estratégias de encenação que enxerguem o outro não como um espectador que precisa ser doutrinado, mas como alguém capaz de estabelecer conexões e reflexões entre arte e vida real de maneira mais autônoma.

Exposição precoce

Crítica da peça Punaré e Baraúna da Agrupação Teatral Amacaca (ATA)

Cena Contemporânea 2015

 

O número musical que abre (e fecha) o espetáculo Punaré e Baraúna da Agrupação Teatral Amacaca (ATA) já nos indica que se trata não simplesmente de um grupo que está em início de carreira, o que está explicitado no programa do festival, mas que vamos assistir a um espetáculo voltado para o público jovem. Nesse número, os integrantes do grupo tocam, cantam e dançam com muito entusiasmo uma música sobre eles mesmos, numa espécie de apresentação.

Para falarmos sobre Punaré e Baraúna, peça dirigida por Hugo Rodas, precisamos embaçar a ideia de que a peça está na programação de um festival internacional. Sempre vemos as coisas em relação a outras, isso é inevitável, e ver uma peça dentro de um festival também é ver essa peça em relação às demais que compõem o recorte da curadoria. Mas não podemos fazer isso com esse espetáculo, tendo em vista que seu ponto de partida é bem diverso das peças de diretores e grupos que integram esse recorte, como Christiane Jatahy, Marcio Abreu, e Adriano e Fernando Guimarães, para ficarmos entre referências do teatro brasileiro. Mas não proponho aqui uma crítica paternalista. A proposta desse texto é pensar o espetáculo pelo que se apresenta na cena, tentando enxergar as ideias de teatro que podem ser fundadoras dos problemas que ali aparecem.

Foto: Daniela Magalhães.
Foto: Daniela Magalhães.

Vemos logo de cara uma noção geral de trabalho de ator, que aparece em maior ou menor medida em todo elenco e coro: aquela ideia de que o esforço físico aparente é sinônimo de qualidade e teatralidade por excelência. Aparecem os fetiches de “desafios” para o ator iniciante, como fazer um animal, um personagem bêbado ou louco, mostrar habilidades físicas, como fazer acrobacias, se arrastar na terra, dançar, cantar e fazer sotaques. Natural da juventude, essa ideia me parece fazer parte de uma cultura de escola de teatro que toma o fazer teatral como um sonho a se realizar, algo especial e idealizado, que diz respeito mais à fantasia de ser artista do que à criação de obras que precisam estar no mundo. Percebe-se um encantamento pela ideia geral de “ser ator” e “fazer teatro”, que vem na frente do trabalho em si.

Esse olhar de idealização aparece até mesmo na escolha do texto e do tema: um sertão idílico, da pobreza lírica e da miséria romantizada. Daí vem a armadilha do sotaque “nordestino”, que não se percebe de que parte do nordeste poderia ser. A falta de rigor no exercício da prosódia puxa o tapete da ambientação cênica, que tem sua plasticidade mas acaba funcionando apenas como moldura visual.

Nas atuações, podemos perceber alguns vícios de grupo iniciante de teatro. Um exemplo disso é o trabalho da atriz que faz a personagem Cicica. Logo no início, ela também faz uma senhora, que se dirige diretamente à plateia. Ela passa diretamente ao registro de atuação de teatro infantil, sublinhando a idade avançada da personagem, criando uma voz específica mas pouco elaborada, marcando com todos os recursos possíveis a diferença para o outro personagem, também defendido numa chave única: a da sensualidade de menina que não duvida de si. Todos os demais personagens também poderiam ser mais alegóricos do que esquemáticos, mas as atuações não conseguem dar essa dimensão.

Os números musicais, que por um lado merecem elogios, por outro também denunciam aquela atmosfera de autocelebração, o que fica bem claro na repetição (um excesso) do número que abre o espetáculo, em que os integrantes do grupo estão tomados pelo élan da realização pessoal, mas que os expõe em um lugar um tanto infantilizado. Teatro se faz mais com rigor e senso crítico do que com garra e entusiasmo. E o entusiasmo mal direcionado pode ser inimigo da criação.

É interessante que o festival ofereça uma programação para diferentes faixas etárias, mas é problemático que isso não esteja exatamente demarcado. Punaré e Baraúna, mesmo com seus problemas, poderia ser melhor apreciado, encontrar (e colaborar para formar) um outro público de teatro, se estivesse numa mostra de teatro jovem ou algo assim, mas ficou um pouco deslocado na programação do Cena Contemporânea.

Sensualidade de corpos-poemas

Foto: Nityama Macrini
Foto: Nityama Macrini

Crítica do espetáculo Los Cuerpos, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2015

31 de agosto de 2015

O espetáculo Los Cuerpos transporta uma carga erótica desconcertante. Uma energia masculina, viril. Corpos jovens, vigorosos, com técnica dominada. São dois homens que aparecem com cabeça de cavalo, numa visão quase mítica vinda das sombras. São centauros reversos. Força de guerra entre civilização e barbárie. A coreografia, interpretada e dirigida por Ramiro Cortez e Federico Fontán, ressignifica a cada momento nessa proposta impactante. O duo de dança contemporânea foi vencedor da categoria de Projeto a Desenvolver na Bienal de Arte Jovem de Buenos Aires, Argentina, de 2013. Depois disso já frequentou vários festivais.

Com o palco vazio, os jovens criadores inundam a sala com esfinges. Desejos que explodem. Luta corporal. Desafios das carnaduras. Eles colidem, batem, provocam, tocam, se arrastam, beijam. Instinto de corpos selvagens. Jogo de dominação. Narciso e seu espelho.

Nesses tempos de vigília do corpo e de seus desejos enquadrados em códigos de consumo, a coreografia de Ramiro Cortez e Federico Fontán se manifesta como posicionamento político pela liberdade mais pura, por impulsos indomáveis.

A maioria dos movimentos é realizada no chão. Eles trabalham em vários eixos em empreitadas árduas. A brutalidade sobrepõe à sutileza nessa aposta em que há o tempo da fusão dos corpos.  A dinâmica do duo desperta paixões.

Eles traçam uma cena corajosa, com gestual incomum, por vezes contínuo, repetitivo. Em situações insinuantes de invasões de territórios, com braços ou pernas, os bailarinos empreendem lances difíceis. Provocam um ao outro. Seus ventres se contraem e expandem.

Com o tórax desnudo e usando a apenas calças pretas (em figurino de Alejandro Mateo), eles transpiram libido e fornecem munição para a fantasia do espectador.

A iluminação de Paula Fraga conduz o olhar da plateia, clareando os trechos do palco para revelar situações ou deixar os corpos na penumbra.

Amantes. As cabeças equinas atuam como máscaras que abrem comportas do desejo. Fisicalidade animal. Corpos exaltados. Respiração ofegante. Expressão de violência erótica. Eles desafiam seus próprios limites.

A pulsação, a batida, os deslocamentos são conceituais. Em uma operação de movimentos elegantes e fortes, um calcanhar de um deles é absorvido pela boca do companheiro. Eles prosseguem o movimento sem separar-se. O trajeto de ambos parece uma alavanca. É um jogo de energia, quando um deles tenta separar-se, o outro ataca sua presa. Eles chegam a fundir-se.

Há o gozo. Eles se debatem no chão separados. A música de Martin Minervini, eletrônica e minimalista, possibilita esses cortes abruptos. Tentativas de mudança de direção.

É de extrema plasticidade esses jogos que testam os limites de cada um. Insaciáveis pela dança, os corpos são carregados de densidades, sensualidade, timbres. As envergaduras traçam ousadias. E se renovam nesses corpos-poemas.

Uma peça-mediação ou “Hamlet adora o teatro”

Crítica de Hamlet – Processo de revelação do Coletivo Irmãos Guimarães

Cena contemporânea 2015

 

Mediação foi um termo bastante usado nos debates do Colóquio DocumentaCena de Crítica de Teatro, realizado há alguns dias no Leituras da Cena. Foi discutido o papel da crítica como mediação criativa na relação do teatro com o público na atualidade, diante da heterogeneidade das poéticas contemporâneas. Mas também podemos dizer que a mediação já é um papel do próprio teatro, sendo o espetáculo teatral uma mediação entre ideias imateriais dos artistas criadores e a materialidade da cena. Hamlet – Processo de revelação do Coletivo Irmãos Guimarães é um exemplo de explicitação disso. Não se trata de uma encenação da peça de Shakespeare, mas de uma apresentação comentada de sua trama e de uma hipótese sobre suas questões dramatúrgicas.

Outro solo da programação poderia se aproximar desse Hamlet, a montagem de Ricardo III, em que o ator Gustavo Gasparani apresenta a trama e faz cenas, interpretando diversos personagens. Mas a criação dos Guimarães com Emanuel Aragão parte de premissas completamente diferentes. O ator, que também assina a dramaturgia, não faz personagens, nem cenas, com exceção de alguns solilóquios do protagonista. Nem é proposta da peça passar por todas as cenas. Muita coisa fica de fora, sem perdas. Ofélia não é uma questão, Fortimbrás não é sequer mencionado. O foco é o Hamlet, as questões existenciais que comandam a trama e a razão do postergar-se da ação. Algumas imagens, como a descrição da violência do mar nas falésias de Elsinor, têm um papel mais potente na construção de uma contextualização do enredo do que teria uma exposição minuciosa da narrativa com todas as suas subtramas.

Foto do programa da peça.
Foto do programa da peça.

Estamos falando da apresentação de uma leitura crítica, ou seja, uma interpretação que faz escolhas, que confere ênfases, que assume um posicionamento diante de um objeto, que toma para si uma dimensão autoral do Hamlet. Isso fica claro quando logo no início o ator diz que eles precisaram fazer uma nova tradução do “ser ou não ser”. Ele apresenta argumentos para escolhas diferentes daquelas que já conhecemos e mostra a tradução, que está no programa da peça, sem fazer pra valer, por enquanto, o momento clássico e temido da tragédia de Shakespeare. O deslocamento desse solilóquio na trama é como uma defesa, uma evidência, a argumentação definitiva da hipótese sobre a peça que é apresentada na tradução desse texto nuclear do entendimento que se tem sobre o Hamlet: exemplo preciso do que é uma ação de dramaturgia sobre um texto prévio.

Nos solos do protagonista, o ator começa falando sobre o que vai fazer, situando na trama aquele trecho que vai dizer, e desliza delicadamente para uma “atuação propriamente dita” (expressão que uso aqui na pressa, na falta de outra e com muitas ressalvas, por isso entre aspas). Sem dúvida, ele está atuando o tempo inteiro, mesmo que esteja fazendo a si mesmo, lançando mão de uma série de truques de atuar como se não estivesse atuando, mas nesses momentos ele passa a “fazer o Hamlet”, embora dando a perceber, apenas sub-repticiamente, que continua apresentando uma hipótese sobre a peça.

Em um texto mais longo e com maior tempo de elaboração, poderíamos fazer uma digressão sobre as ideias de verdade e revelação presentes nesse Hamlet. Emanuel apresenta Horácio como aquele que diz a verdade e aponta que Hamlet, quando se dirige à plateia, fala a verdade. O fantasma do pai procura o filho para contar a verdade. Hamlet diz que o teatro é capaz de fazer um criminoso confessar a verdade. A peça de teatro escrita por Hamlet e a subsequente reação de Claudio funcionam como uma comprovação de que o fantasma do pai disse a verdade. E temos, no subtítulo, a palavra revelação. Poderíamos pensar no conceito de aletheia, que diz respeito à verdade como desvelamento (um processo), que pode ser uma espécie de revelação, uma ideia de verdade que não é o oposto de mentira, mas a negação do esquecimento – uma questão seminal do personagem Hamlet. Mas isso vai ter que ficar para outra ocasião.

Por fim, vale comentar a ênfase da peça sobre o teatro. Antes de narrar a cena dos atores, Emanuel nos fala do quanto Hamlet adora o teatro, da proporção que o teatro tem na peça e do fato de que Shakespeare escreveu para si mesmo o papel do primeiro ator. Em certa medida, podemos ver a peça como uma homenagem, uma declaração de amor ao Hamlet e ao teatro a partir desse exercício de mediação sobre um clássico do teatro que também é cheio de mediações sobre o teatro. E nesse sentido esse Hamlet se aproxima de Teatro Invisível, do grupo Matarile Teatro, que esteve na programação do festival alguns dias atrás.

Outras observações poderiam ser feitas sobre a dramaturgia, como a ótima variação de extensão e ritmo na expansão ou condensação de diferentes partes da peça de acordo como a temperatura de cada ato, ou as pequenas idiossincrasias da dramaturgia de Emanuel Aragão, que no início e no final carimbam uma espécie de assinatura do dramaturgo, como se houvesse uma necessidade de colocar ali uma marca da filiação desse trabalho a projetos anteriores de sua autoria. Mas, passados os limites de extensão e prazo de entrega do texto, paramos subitamente por aqui…

Um encontro de teatro

Crônica da apresentação de Os idiotas, com o ator e diretor Sidiki Bakaba

Cena Contemporânea 2015

 

Antes de falarmos propriamente de Os idiotas, faço uma breve observação. Na programação do festival, a peça está apresentada como performance, o que pode causar mal-entendidos. Em francês, inglês e espanhol, performance pode querer dizer simplesmente espetáculo ou peça de teatro. Mas em português, quando falamos que vamos assistir a uma performance, estamos nos referindo a algum trabalho de performance art. O que Sidiki Bakaba nos oferece é uma peça de teatro, que não tem relação com a performance art.

Em ocasiões anteriores, tive oportunidade de conhecer um pouco (muito pouco, na verdade) do teatro de países africanos de língua portuguesa, que me pareceu bastante influenciado pelo Teatro do Oprimido de Augusto Boal, um teatro socialmente engajado que se entende como arma pedagógica. Nesta peça da Costa do Marfim, país africano de língua francesa, o compromisso com as questões sociais aparece como inspiração temática e o tratamento dado é mais literário do que dramático. Vemos ali um teatro reflexivo, que não é explicitamente político. O texto de Os idiotas é quase exclusivamente narrativo.

Foto: Rômulo Juracy.
Foto: Rômulo Juracy.

Os idiotas é um solo do ator e diretor marfinês de longa e bem-sucedida carreira no teatro e no cinema, Sidiki Bakaba, importante figura pública da Costa do Marfim. Trata-se de um espetáculo de dezessete anos atrás, que foi trazido de volta à cena especialmente para essa passagem de Sidiki por Brasília, para participar das atividades formativas do Cena Contemporânea com uma oficina para atores. Além de atuar, ele divide a direção com Khoffi Kwahulé.

A dramaturgia é estranha para a nossa cultura de texto dramatúrgico. Há um texto inicial que funciona como um prólogo, no qual um personagem (que vamos conhecer) é apresentado. Em seguida, entra o personagem, que vai contar histórias para um interlocutor invisível ao longo do espetáculo. Esse recurso do personagem invisível fragiliza a ação da peça, até porque não há uma preocupação da encenação em legitimar o código. Na verdade, não há um trabalho de encenação como o conhecemos, mas uma economia de recursos, que concentra toda a responsabilidade na presença do ator. Além disso, o registro de atuação de Sidiki também não é familiar. Para nós, espectadores de um festival, interessados no teatro contemporâneo internacional, com suas poéticas singulares, vemos em Os idiotas um teatro que parece não apenas de um lugar cultural distante, mas de outro tempo histórico.

Diante dessas constatações, logo de início é possível perceber que, para estabelecer um diálogo com o trabalho que se apresenta diante de nós, precisamos nos desfazer dos parâmetros que costumam nos acompanhar no teatro. Mas isso não é nada fácil. Assim, nos encontramos em uma situação de enfrentamento com o fenômeno teatral: precisamos lidar com o outro – outra linguagem, outra noção de teatro, outro contexto cultural.

Não à toa, a peça não está na programação de espetáculos e sim nos Encontros do Cena. Se o festival nos convida ao intercâmbio com artistas de diferentes países, precisamos entender que tipo de troca podemos fazer em cada caso. Mesmo assim, caberia uma melhor mediação, que pudesse contextualizar o teatro marfinense, a situação política do país e sua produção cultural.

Diante de Os idiotas, não sabemos a princípio em que território estamos nem se vamos conseguir nos deslocar para algum lugar de onde possamos co-habitar aquela ideia de teatro. Minha impressão particular é de que não consegui fazer esse deslocamento, não tive uma experiência estética, artística, mas tive uma experiência cultural: conheci um artista, um espetáculo, compreendi algumas questões relevantes para o seu meio cultural.

Houve uma série de problemas técnicos com as legendas. Isso provocou um atraso, o que fez com que alguns espectadores precisassem sair antes do fim. Mas as legendas também falharam muitas vezes durante a peça, especialmente na segunda metade, impedindo que os que não entendem francês acompanhassem a narrativa. E isso também fez com que muitos desistissem e fossem embora. Essa falha provocou a perda do valor literário do texto, perda significativa diante da poética narrativa da peça – motivo pelo qual chamo esse texto de crônica, não de crítica. Mas um grupo de espectadores ficou até o fim, mesmo não entendendo as palavras, e o ator, diligente, continuou o seu trabalho. E o que aconteceu ali no auditório do Museu Nacional de Brasília foi realmente um encontro.

Não se vai embora do teatro. Nunca se sabe o que nos reserva o final. Após os sinceros e dedicados aplausos, Sidiki nos apresentou uma breve fala sobre como ele vê o Brasil, seu desejo de se apresentar no país e a importância da sua passagem por aqui. Assim, depois de conhecer seu teatro e sua técnica, conhecemos também a ética de homem de teatro presente no seu discurso e no seu cansaço – e a ética do teatro nos circunscreve em um mesmo universo, viabilizando a transposição das fronteiras estéticas.

Montagem: operação crítica sobre ficções e desejos

Crítica da peça Brickman Brando Bubble Boom, do Agrupación Señor Serraño
Cena Contemporânea 2015

 

Para escrever um texto curto sobre Brickman Brando Bubble Boom, ou simplesmente BBBB, espetáculo do Agrupación Señor Serraño realizado em 2012 em parceria com o Centre d’Arts Escèniques de Terrassa e com o apoio de diversas instituições, é preciso concentrar-se em um recorte específico, tendo em vista que o espetáculo – barroco em sua multiplicidade de meios, temas e técnicas – oferece diversas possibilidades de entrada. Também é preciso abrir mão de fazer uma descrição mais generosa para o espectador que não viu a peca. O recorte específico desse texto é a observação da montagem – procedimento presente em várias camadas da construção da cena – como operação crítica nuclear do espetáculo.

A peça do coletivo da Espanha tem um motivo central, subjacente a todos os seus elementos: o anseio por um lar, que se desdobra no desejo da compra de uma propriedade, necessidade real mas ao mesmo tempo mais um paradigma de consumo capitalista. A partir daí, o grupo apresenta duas narrativas cruzadas – o que já se configura como montagem. Uma delas, a vida e os empreendimentos imobiliários de um personagem fictício da Inglaterra do século XIX, Brickman. Outra, a vida de Marlon Brando e sua lida problemática com a ideia de lar, família e suas excêntricas propriedades. Entre as duas biografias, montagens de cenas de diferentes filmes de Brando, dubladas ao vivo e legendadas de modo a parecer (jocosamente) a narrativa da vida de Brickman vivida no cinema pelo ator norte-americano. As duas biografias são contadas com imagens capturadas ao vivo de maquetes montadas na hora e de uma série de objetos, jogos, brinquedos e imagens replicadas de dispositivos eletrônicos. Essas imagens são mixadas ao vivo e projetadas em grandes folhas de isopor que, ao longo do espetáculo, servem como tela de projeção e elementos para montar uma casa de uma maquete de proporções humanas.

Foto: Alfred Mauve
Foto: Alfred Mauve

Com esses procedimentos e tendo a música ao vivo como estratégia para estabelecer uma atmosfera de diversão e despojamento, os artistas de BBBB, Alberto Barberá, Alex Serraño, Diego Anido e Pau Palacios, comentam os diversos regimes narrativos (a biografia, a narrativa ficcional, o documentário, a reportagem jornalística, a escrita da história) e imagéticos (o cinema mudo, os filmes dos tempos áureos de Hollywood, a TV dos EUA, o universo lúdico infanto-juvenil) com os quais lidamos no cotidiano. O agenciamento dessas narrativas e imagens, pelo procedimento da montagem, descontextualiza e recontextualiza o que mostra, provocando o olhar e o entendimento do espectador a rever tudo o que vê, a desconfiar das verdades construídas.

A proliferacão de pequenos detalhes técnicos do espetáculo, a quantidade de objetos e de imagens editadas, as numerosas tarefas que os artistas executam e a atmosfera de chiclete Bubble Boom: tudo isso funciona quase como artifício de distração. A peça é construída de maneira a dar a ilusão de que esses diversos dispositivos são a coisa em si, que trata-se apenas de uma dramaturgia de chistes pontuada pelo exibicionismo carismático de virtuosismos performativos e tecnológicos.

Até que as imagens reais da violência da polícia espanhola em atos de desapropriação imobiliária, em que pessoas reais são de fato expulsas à força de suas casas, com violência física perpetrada pelo estado, apontam rapidamente que, embora a peça tenha uma elaboração complexa de construção formal, o teatro que está se fazendo ali é um teatro que está no mundo. As questões da peça não se resumem aos seus próprios procedimentos. A breve duração da projeção dessas imagens e a escolha por colocá-las perto do final da peça são fatores determinantes para não torná-las explicativas. Ao mesmo tempo, elas redimensionam as imagens que vimos anteriormente e subvertem até mesmo o clima descontraído em que a peça enreda os espectadores.

Para encerrar, podemos dar mais um exemplo de como a montagem funciona como operação crítica e nos faz olhar com mais acuidade para as camadas de crueldade no que vemos todos os dias na TV. Não me refiro apenas às imagens literalmente violentas. A inserção de trechos do reality show Extreme Makeover – Reconstrução Total Home Edition (já houve uma versão do programa que reformava a aparência de seres humanos!) evidencia a violência perversa da imbecilização das pessoas, quando um programa criado para vender produtos de reforma, construção e decoração explora a miséria alheia ao forjar um espetáculo de idiotas, que vêm suas casas miseráveis se transformarem em show room de ambientes decorados como parques temáticos.

Com a performatividade festiva do teatro contemporâneo e o perspicaz agenciamento das imagens, BBBB é um comentário rascante e discretamente sombrio sobre o mundo em que vivemos e as ficções que inventam os nossos desejos.