Arquivo da categoria: Festivais

Deslocamentos do desejo em Senhorita Julia

Foto: Divulgação MITsp
Foto: Divulgação MITsp

Crítica do espetáculo Senhorita Julia, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

14 de março de 2015

O protagonismo do espetáculo Senhorita Julia, do grupo alemão Schaubühne, baseado na obra do sueco August Strindberg (1849-1912), migrou da personagem-título para a cozinheira da casa, Cristina. A releitura dirigida por Katie Mitchell e Leo Warner provoca um deslocamento de olhar (ponto de vista) do drama original de 1887, numa montagem multimídia, na qual convergem performance teatral, efeitos sonoros e filmagem ao vivo, como a exposição dos equipamentos de produção. A peça está em cartaz até domingo na 2º MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, no Sesc Pinheiro.

A misoginia borbulha nesse clássico, em que o jogo de poder se assenta entre classes sociais distintas e, em determinado momento, é suplantado por um poderio sexual masculino. Uma pequena sinopse da história: a aristocrata Julia tem um caso com Jean, o empregado do Solar. Ele é noivo em segredo da cozinheira Cristina, que percebe o envolvimento. Após o ato sexual, a relação de dominador/dominado entre Julia e o serviçal é invertida. Isso está lá em Strindberg.

Com o deslocamento do sujeito do enunciado, a direção cria uma complexidade desse lugar, tendo como camadas subjacentes o texto literário. Mas com o acréscimo na perspectiva da cena de contar essa história a partir da mulher traída. É uma outra visão feminina, que abre espaço para a subjetividade de uma personagem subalterna, de pouco destaque na obra textual. Não diria que chegaria ao viés feminista (na sua acepção mais pura), porque as posições adotadas por Cristina ainda reservam espaço para uma subserviência ao masculino, reveladas em pequenos detalhes, depois da traição, como o assessoramento do barbear de Jean.

O experimento envolve de forma radical a captação e edição de imagens ao vivo no palco. Esse procedimento amplia detalhes, expressões faciais das personagens e manipula as sutilezas, que vão para o grande quadro de visão do espectador. Praticamente todo o maquinário está exposto ao público – a movimentação das câmeras, a atuação da equipe técnica, os músicos, os efeitos sonoros. Tudo é milimetricamente marcado, com maestria na execução do desenho da cena.

A percepção é um aspecto perturbador. Existe um cenário realista ambientado em uma casa sueca do século XIX. Técnicos e atores manejando as câmeras. O olhar do espectador é direcionado a partir dessas filmagens, que aceleram e desaceleram. Expõe intimidades, enquanto o mecanismo de como aquilo é produzido também está à mostra. Tecnicamente é um trabalho magistral.

Não vou me deter no ponto de se é cinema feito ao vivo, em cena ou se a linguagem audiovisual se sobrepõe ao teatro. Isso merece uma tese. O que a diretora tem dito é que utiliza os recursos tecnológicos justamente para potencializar a experiência teatral. Penso que intensifica de forma belíssima.

Enxergo movimentos de dobras e desdobras quanto aos conteúdos questionados, principalmente da luta de classe e da situação da mulher. A utilização da tecnologia (numa execução magistral) aponta, na sua dureza de captação/reprodução de imagens e sons, e na opção de cenários e figurino de época, que esse poderia ser um Strindberg a ser visto com distância no longínquo século XIX. Mas, enquanto esse movimento é sinalizado, é também negado nas reflexões sobre os conteúdos problematizantes citados. Somos convocados e refletir novamente sobre as mudanças e como elas são devolvidas da ficção para a realidade. Como funciona o poder nas relações íntimas, nas relações privadas. As questões levantadas pelo dramaturgo não foram totalmente superadas.

A luta silenciosa travada por Jean – em que amor e ódio revezam o protagonismo no coração do personagem masculino – na sua cultivada necessidade de ascensão permite pensar nos resquícios desses conteúdos emocionais em pleno século XXI.

Se os espaços reais se distanciam, os psicológicos dessa estrutura arcaica permanecem latentes. Isso me mobilizou nos movimentos de superaproximação, na frieza técnica das atuações. Os diálogos mínimos contribuem para isso.

A recepção na estreia foi calorosa, a tirar pelos aplausos do público que compareceu ao Sesc Pinheiro. O debate transversal com a psicanalistas Maria Rita Kehl, sob o ponto de vista das pessoas da plateia que se pronunciaram, problematizou questões desde a provocadora estética da cena, passando pelas escolhas textuais e de condução do olhar da direção.

O mito da proximidade e o desequilíbrio de conjunto

Crítica das peças Morrer de amor, segundo ato inevitável: Morrer e Matando o tempo, primeiro ato inevitável: Nascer, de Jorge Hugo Marín.

MITsp 2015

Neste texto, pretendo falar sobre os dois espetáculos do grupo colombiano La Maldita Vanidad apresentados no contexto da MITsp: Morrer de amor, segundo ato inevitável: Morrer e Matando o tempo, primeiro ato inevitável: Nascer.

Coloca-se um problema para a crítica quando as questões técnicas falam mais alto que as propostas artísticas. Quando o projeto se materializa com toda a sua potencialidade, ou pelo menos com boa parte dela, podemos conversar com a obra, experimentar uma escrita codiscursiva, que de algum modo se quer criativa ou propositiva. Quando isso não acontece, a crítica fica limitada a falar sobre as escolhas formais, tentando entender a fenda entre a intenção e a realização. Assim, começo este texto correndo o risco de escrever a crítica mais chata de toda a Prática da Crítica da MITsp, exercendo um tipo de crítica que geralmente não me interessa ler nem fazer. Ou seja, vou me arriscar a cair na crítica-polícia.

Uma das questões que se apresenta nas duas peças do grupo La Maldita Vanidad é o uso do espaço não convencional como algo essencial ou constitutivo das obras. Aqui podemos identificar algumas confusões. A primeira, que é só um detalhe, é ainda tratarmos esses espaços outros para além do edifício teatral de “não convencionais” quando a realização de peças em casas e apartamentos já é uma prática estabelecida, tem até seus próprios festivais, premiados e patrocinados com dinheiro público. Ou seja, não são mais tão não convencionais assim. Vemos até mesmo o quanto essa prática já tem os seus clichês.

Mas a confusão problemática que identifico neste caso específico e que também aparece nas críticas a Morrer de amor é o mito da proximidade, a crença de que a proximidade física insere ou provoca uma espécie de fusão entre ator e espectador, ou, ainda, que enfatiza a dimensão de convívio. Não é bem assim. Para que aconteça algum vislumbre de fusão ou para que se enfatize o convívio, é necessário um trabalho muito mais complexo de elaboração formal da dramaturgia e das atuações do que a mera instalação das cadeiras da plateia a poucos centímetros das cadeiras do cenário.

No caso específico destes dois trabalhos, o espaço dito não convencional não interfere na poética do espetáculo, pois eles parecem ter sido criados com premissas bastante convencionais do palco italiano.

As atuações, por exemplo, tendem ao histrionismo, pois há um trabalho de composição de personagem calcado nos trejeitos e na fisicalidade. Os gestos e reações são marcados, sublinhados, enfatizados. Há um excesso de composição característico da distância. Isso acontece em maior ou menor grau entre os atores e entre as duas peças, mas não consigo identificar um trabalho de hiper-realismo, que, segundo li em algum lugar, faria parte da pesquisa do grupo. Na primeira peça, até a movimentação dos atores caberia perfeitamente no palco italiano, porque favorece a frontalidade. Quem está na lateral, por exemplo, vê a peça de lado. E me pareceu que os atores estavam sempre preocupados em não ficar de costas para o maior número de pessoas possível.

Foto: Juan Carlos Mazo.
Foto: Juan Carlos Mazo.

No que diz respeito à dramaturgia, também podemos identificar uma filiação ao palco italiano – o que não considero, em hipótese alguma, um mal, apenas uma contradição nesses casos particulares. Me parece que o grupo opta pelo drama – e vamos combinar que o desenlace que se quer surpreendente ou a presença de desgraças na trama não transformam o drama em melodrama, nem em novela. Melodrama é outra coisa. Novela é outra coisa. Nesta opção pelo drama, as peças do grupo, pelo que pude entender, servem à ideia de passar uma mensagem, ou seja, querem comunicar alguma coisa, fazer uma denúncia, expor uma situação. Nesse contexto, a proximidade física, assim como o uso do espaço que não é um palco, podem não passar de fetiches – ou de mitos.

No drama, há uma demanda de clareza, de foco, de causalidade. Em Morrer de amor, a dramaturgia realiza a sua proposta, ou seja, passa a sua mensagem. Depois da peça, o assunto das conversas é o tema da intolerância e da homossexualidade: missão cumprida. Talvez uma missão modesta demais, poderíamos dizer, para o contexto da MITsp, mas depois voltamos a isso.

No caso de Matando o tempo, o barroco da dramaturgia, a profusão de desejos de criar tantos personagens, de expor tantas variações de comportamento, tantos pequenos casos e subtramas e narrativas prévias, acaba por ofuscar o que era a intenção do drama: revelar a diferença de classes a partir da figura da empregada doméstica. Mas a encenação delega tudo à narrativa e aposta todas as suas fichas numa conclusão epifânica ao final da peça. E essa conclusão, a meu ver, não se materializa. E não se materializa principalmente porque ela não foi construída no corpo dos atores, não foi construída cenicamente, está apenas levemente apontada na acepção literária do discurso da peça, ou seja, na informação veiculada nos diálogos. Não vejo diferença de classes no corpo dos personagens, por exemplo. São corpos de jovens atores, não são corpos de aristocratas, nem de proletários. Todos têm o mesmo corpo: não há tensão real, palpável, visível.

Ao contrário do que geralmente se diz, o drama não é “só um drama” – como se fosse muito fácil fazer o drama acontecer. Rejeitar o drama pelo drama é tão conservador e ingênuo quanto conceber o drama em 2015 como se nada tivesse acontecido nas artes desde antes do início do século XX. Mas, para o drama ganhar corpo e fazer sentido, especialmente num momento histórico do teatro em que o gênero passou por tantos atravessamentos, e chega a ser alvo de tantos ataques, a demanda de elaboração formal da encenação e das atuações é muito maior do que se imagina. O drama demanda rigor e coerência. Para fazer o drama, é quase preciso defender o drama – com trabalho e técnica, não com discurso. Para nos arriscarmos em formas tradicionais, precisamos ser ainda mais diligentes com a técnica e mais insubordinados com os mitos e fetiches.

E, então, para começar a concluir, penso que se é um desejo do grupo falar sobre esses assuntos, nesses termos e dessa maneira, no contexto em que vive e trabalha, não cabe à crítica questionar o projeto. Mas questiono, de fato, a presença das duas peças em uma programação de espetáculos cujas poéticas são tão arrojadas, mesmo com tantas diferenças. É estranho ver o díptico colombiano ao lado de trabalhos como Woyzeck, A gaivota e Stifters Dinge.

Sempre falo da necessidade da cumplicidade na crítica, acredito mesmo que críticos e artistas devem ser parceiros artísticos. Falamos sobre isso na oficina ministrada pelos integrantes da DocumentaCena na programação da MITsp. Mas cumplicidade não é sinônimo de adesão incondicional. Apesar de falar dos problemas, esta não é uma crítica contra a peça. Não seria cúmplice da minha parte passar a mão na cabeça, justificar os problemas do espetáculo com os percalços práticos de produção, comuns em turnês internacionais, e dizer “ah, como são jovens, ainda estão aprendendo.” Eu também sou jovem, eu também estou aprendendo e detesto quando me tratam dessa maneira. A crítica cúmplice não é a crítica hipócrita, muito menos a crítica paternalista.

Humanidade abortada pelo poder

Foto: Divulgação MITsp

Crítica do espetáculo Matando o Tempo, Primero Ato Inevitável: Nascer, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

13 de março de 2015

Os altos níveis de violência, o tráfico de drogas, as desigualdades sociais, a guerrilha e a crise que enfraquecem a Colômbia estão ficcionados no espetáculo Matando o Tempo, Primero Ato Inevitável: Nascer, do autor e diretor Jorge Hugo Marín e da companha colombiana La Maldita Vanidad. O quadro explosivo não é explícito. E não há imagens de guerrilheiros e assassinatos. O contexto é deslocado para a sala de jantar de uma família de classe alta, um microcosmo das vísceras do aparelhamento de controle e opressão. O diretor trabalha no hiato de um hiper-realismo em que onze personagens se digladiam, oprimem, competem e são humilhados durante um almoço familiar de domingo. O embate entre essas pessoas em situações extremas esquadrinha a degradação humana e revela um equilíbrio sempre por um triz. Aí está uma chave para uma das leituras da peça, seja na encenação ou no desempenho dos atores.

Algo parece prestes a desmoronar a qualquer momento. As personagens riem muito, em suas gargalhadas falsas (ou forçadas), enquanto exercem pequenos poderes umas sobre as outras. Apesar de se tratar de uma família matriarcal, as mulheres da cena são oprimidas, ora pelos homens, ora pelas outras mulheres, as mais fortes.

Uma mulher grávida, cujo bebê poderia mudar o destino da família, pode ser condenada a perder seu herdeiro. Um jovem que foi estudar em Cambridge, mas ainda é ameaçado pelo pai de apanhar de cinturão, é apontado como o novo líder. E vai ganhar o seu cavalo. Mas sua subida ao trono requer o massacre de uma vila de pobres enfurecidos.

A companhia ocupa espaços não convencionais em suas montagens e, na 2ª edição da MITsp, a apresentação ocorre em uma das salas da Oficina Cultural Oswald de Andrade, no Bom Retiro. Com escadas de um lado e do outro e o salão à frente do público, a cena se desenvolve enquanto a família bebe. Como afirmavam os antigos romanos: “in vino veritas” (“no vinho está a verdade”), e as personagens soltam a língua e deixam cair a frágil máscara de hipocrisia, revelando ressentimentos, invejas e expondo o intricado nó de mentiras.

As figuras trocam ideias de coisas sem importância, valorizando lugares como Cambridge, Inglaterra e a sua realeza. Matam o tempo em aparentes banalidades, a beber e exercer a opressão sobre a empregada Margarita, nome mais gritado dos primeiros minutos da peça.

As criaturas subalternas da cena são confrontadas e humilhadas, expondo o lugar de derrotadas. Desse núcleo, Margarita, é a complexa. Ela é solicitada o tempo inteiro a servir a todos que, do alto das suas arrogâncias, empurram-na para baixo. Ela, em alguns momentos, pode até pensar que faz parte da família ao abraçar o menino ou bater palmas para o tio cantante. É lembrada sempre de que não. Seus passinhos curtos e ligeiros, sua carinha de quem guarda segredos que ouve “sem querer” dão a dimensão dessa natureza. A família não tem para com ela nenhum tipo de humanidade. Margarita está em sintonia com os outros pobres da Colômbia, subtraídos na potência de riqueza do país, com as ações de corrupção realizadas pelos donos da casa.

A mulher deslocada tenta fazer parte da roda dos seus chefes. Nessa postura, tenta seduzir ora um, ora outro. Um terceiro personagem desse grupo exerce uma função colaborativa – o capacho –, é um agente da corrupção, que viabiliza a compra de terras ilegais. Ele funciona em outro registo, o falso vencedor. Naquela casa, que fica a meia quadra do palácio presidencial, eles fazem suas falcatruas praticamente debaixo do nariz do governo. Essa informação geográfica está repleta de significados.

A tensão explorada na cena deixa escapar as fissuras da criação enquanto obra. Na linha tênue de falar sobre abusos de poder, a peça parece incorporar em alguns momentos esse mesmo lugar. Como se a introjeção de uma realidade fosse carregada também dos próprios preconceitos a que, a princípio, parece combater. Isso transborda nos diálogos que, na minha escuta, não conseguiram abrir caminhos para uma análise em um nível mais libertário daquele quadro. Os ecos de Ricardo III, de William Shakespeare surgem aqui e ali, mas sem grande potência.

Os julgamentos e falas das personagens dão margem para uma justaposição da conformação política da própria obra nas suas brechas e isso gera um incômodo de desesperança. Ao tratar de assuntos privados como extensão do público, o combate à corrupção e aos males da Colômbia, a peça não incorpora uma força libertária na sua poética, nem na sua dramaturgia, nem na cena.

Arquivo e a capacidade de se colocar no lugar do outro

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.
Crítica a partir do espetáculo Arquivo, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)MITsp 2015

Segundo a filosofia budista, a capacidade de se colocar no lugar do outro e compartilhar seu sofrimento é uma das funções mais importantes da inteligência humana. Pois é a esse exercício que se propõe o bailarino e coreógrafo israelense Arkadi Zaides no espetáculo Arquivo, de 2014. Habitante da próspera Tel Aviv, cidade situada a apenas 20km da Cisjordânia, o coreógrafo compartilha com o público uma complexa partitura audiovisual, corporal e vocal criada a partir de uma observação minuciosa da realidade da fronteira e, sobretudo, dos corpos que habitam aquela realidade social – os quais são trazidos ao palco no próprio corpo do bailarino.

Talvez como forma de dar a ver essa complexidade, Zaides opta por uma encenação não-espetacularizada, na qual importantes aspectos do contexto de criação são revelados ao público logo no início da apresentação. A partir de procedimentos comuns ao teatro documentário, o artista nos informa, sem rodeios, que as imagens exibidas no telão foram filmadas por moradores palestinos e trazem, nesse sentido, somente cidadãos israelenses como ele. Se não há palestinos nas imagens, é pelo olhar deles que testemunhamos, assim como o próprio artista, as diferentes fisionomias – e corporalidades – da disputa pelo território da Cisjordânia. É com olhos de palestinos, portanto, que testemunhamos o mundo ao longo de pouco mais de uma hora.

Trabalho de grande força documental, vinculado à produção audiovisual do Projeto Câmara de B’Tselem (um centro de informações israelenses pelos direitos humanos nos territórios ocupados), Arquivo nos permite acessar, em detalhe, aspectos pouco conhecidos de um universo quase sempre visto à distância. Instantaneamente imersos em uma realidade na qual vida e guerra se misturam, percebemos que também crianças e adolescentes estão envolvidos no conflito, experimentando desde cedo um contexto em que o outro é visto e tratado como adversário, a despeito das semelhanças entre as condições de vida daqueles que, em meio à fronteira, se atacam e se defendem.

Ataque, defesa e observação, aliás, são três estados sucessivamente experimentados pelo coreógrafo, a partir de mimesis corporais que estabelecem diálogos mais ou menos diretos com o material exibido no vídeo. Enquanto alguns gestos e posições corporais estabelecem relações imediatas com o que vemos na tela, outras surgem no palco antes de terem revelados seus contextos de referência, deixando ao público a responsabilidade de lhes atribuir significado e memória. Aos poucos, contudo, vamos nos familiarizando com o “arquivo” gestual de Zaides, e as ações realizadas no palco, mesmo quando desvinculadas do vídeo ou quando o vídeo se faz ausente, passam a nos trazer memórias, significados e imagens sociais.

Se, de início, o próprio Zaides, como morador de Tel Aviv, parece observar de longe aquele contexto de vida, aos poucos tanto ele quanto nós nos aproximamos das disputas entre colonos israelenses e palestinos. De meras testemunhas do espetáculo, passamos, com o tempo, a fazer parte dele, como fica evidente nos momentos em que somos observados por personagens do vídeo e quando o próprio Zaides, em desdobramentos coreográficos de gestos do duro cotidiano que nos apresenta, repetidamente avança em direção ao público, com passos firmes e olhar aguerrido. Experimentamos, ali, o lugar do outro, já imersos em conflitos que – por que não? – também são nossos.

Bastante presente no espetáculo, a repetição de gestos e imagens tem marcantes efeitos sobre a obra e o público. De um lado, é a partir da repetição que gestos cotidianos são convertidos em coreografias, e estas vez ou outra incluem saltos e giros que em algo lembram movimentos da dança clássica. De outro, também é a repetição – de gestos e vozes, vale ressaltar – que nos atenta à escala e à persistência do conflito.

Em síntese, Arquivo nos propõe uma experiência de imersão na violenta rotina de pessoas que não conhecemos e que, em cena, se constituem como outro. Não por representarem outras etnias, nacionalidades ou religiões, mas por, de modo semelhante a muitos brasileiros, não terem seus direitos humanos assegurados e viverem em permanente estado de exceção.

Publicado no site da MITsp em 12 de março de 2015.

http://mitsp2015.wixsite.com/mitsp/single-post/2015/03/12/Arquivo-e-a-capacidade-de-se-colocar-no-lugar-do-outro

Morrer de amor: sobre família e ignorâncias

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Morrer de amor, segundo ato inevitável: morrer, da Fundación La Maldita Vanidad Teatro, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

11 de março de 2015

“(…) extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás, lá pra trás não há nada,
e nada mais”
Paulo Leminski

As paredes da casa estão impregnadas de história. Sabe aqueles segredos não revelados por anos? Os assuntos escondidos? As conversas que não chegaram nem a acontecer? Em Morrer de amor, segundo ato inevitável: morrer, da Fundación La Maldita Vanidad Teatro, da Colômbia, despontam as dores advindas de relações que se deixaram empalidecer pelo tempo, pela falta de liberdade de nos mostrarmos como somos.

A encenação proposta pelo colombiano Jorge Hugo Marín nos leva a observar de perto os sentimentos e conflitos que se instauram durante o velório de Luís (Miguel González). Estamos ali, sentados na sala da casa onde familiares choram o morto. Somos/estamos cúmplices da encenação. A carga semântica implícita ao local torna-se um dos elementos da teatralidade nessa escritura cênica. Não adiantaria estar dentro de uma casa, do ponto de vista estético, se não houvesse uma apropriação do potencial simbólico do lugar, o que possibilita ao espectador uma mudança de perspectiva da cena. O jovem grupo colombiano, formado há cinco anos e que já tem pelo menos sete montagens no repertório, realmente se empodera da materialidade espacial da encenação. O caixão no meio da sala, como nos velórios de antigamente ou nas casas pelo interior do país, permite que estejamos diante de conflitos familiares que não conseguem permanecer incólumes, mesmo diante da morte.

A dramaturgia assinada pelo diretor Jorge Hugo Marín trata de questões arraigadas na cultura não só da Colômbia, mas de toda a América Latina, principalmente posições de intolerância e ignorância diante das diferenças. Muitos jovens homossexuais ainda sofrem sim todo tipo de preconceitos e violência, dentro e fora de casa. Não podemos esquecer o contexto em que estamos inseridos. No Brasil, em 2015, ainda precisamos de uma comissão especial na Câmara dos Deputados para discutir se o conceito de família pode estar restrito à união entre um homem e uma mulher, como prega o Estatuto da Família, projeto de lei proposto pelo deputado pernambucano Anderson Ferreira. Uma lei que desconsidera as relações homoafetivas e ainda veta a adoção de crianças por casais gays.

Como montagem que opta pelo caminho do realismo, Morrer de amor traz atuações que transitam por um limite tênue. Por muito pouco, as interpretações poderiam soar over, exageradas e aí perder a relação com a realidade proposta pela encenação. O que não permite que isso aconteça é o talento dos atores e da direção, aliado à clareza de possibilidades e de compreensão da cena, inclusive a partir da dramaturgia. O texto serve ao propósito de revelar o cotidiano de uma família classe média baixa que não sabe lidar com os seus conflitos. Se todos os atores conseguem trabalhar no mesmo diapasão, um dos destaques é a atriz Juanita Cetina, intérprete da jovem Olga, que foi namorada de Luís (Miguel González) na infância. As oscilações na voz, o medo no olhar, os trejeitos assumidos pela personagem levam muitas vezes a plateia ao riso ou à impaciência diante da ingenuidade.

Morrer de amor nos leva à certeza de que, se não podemos extinguir todo remorso, como propõe o poema Bem no fundo, de Paulo Leminski, é melhor encarar as fissuras causadas pelas ações, ausências e omissões. Como plateia, sentimos não só o morto da família. Choramos não só a ficção. O que lamentamos mesmo é a realidade de Morrer de amor.

A carne da palavra numa intimidade desconcertante

 

Foto: Divulgação MITsp
Foto: Divulgação MITsp

Crítica do espetáculo Canção de muito longe, de Ivo van Hove, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

11 de março de 2015

O protagonista de Songs from Far Away (Canção de Muito Longe), Willem (Eelco Smits) escreve cartas numa tentativa desesperada de estabelecer uma relação com seu irmão morto. Essas missivas, sem o destinatário vivo, remetem para afetos extraviados, afeições profundas escondidas sob a velocidade do tempo e da distância autoimposta pelo personagem, que deixou para trás pessoas queridas. Nesse rito de passagem, ele inventa um território para resgatar a vida amorosa largada em Amsterdam, quando migrou para Nova York.

Única estreia mundial da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, Canção de Muito Longe é uma coprodução entre a MITsp e a Toneelgroep Amsterdam. A encenação do belga Ivo van Hove (com dramaturgia do inglês Simon Stephens) amplifica a intimidade de um jovem banqueiro no seu processo de luto. As canções de Mark Eitzel criam uma gama de sensações dessa perda irreversível.

O encenador provoca pequenas explosões. Algumas vezes, quase imperceptíveis. Outras chegam como convulsões no corpo do ator. E transborda de conceitos da cena, apagando fronteiras e surpreendendo. Um teatro da palavra, vinculado à performance.  O “extremo contemporâneo” nas palavras da pesquisadora Josette Féral.

Um teatro que desnorteia. Podem conviver a evocação da estrutura dramática de ilusão do real, com os confrontos e restrições do recurso mimético, e a ampliação das possibilidades da cena contemporânea. Carrega a “extrema manifestação de corporeidade” da qual fala Hans-Thies Lehmann, numa presentação, que envolve corpo, espaço e tempo, articulados magistralmente.

O processo de luto é delicado. O protagonista desce a regiões inimagináveis em que o nervo exposto é refletido em dor profunda, que vibra como um instrumento de corda e atinge os lugares de sensibilidade do espectador. Nesse processo de luto, ele passa por todas as fases, da revolta à aceitação.

 Na trajetória desse arco lança desejos e inquietações para um território inalcançável, o passado. Mas reelabora sua cartografia amorosa ao reinventar esse lugar. Sua presença pulsa e ocupa o palco em carga eletrizante.

Em princípio, Willem parece um robô de ganhar dinheiro. Mas se desfaz de seus gestos programados ao despir-se das vestes. Capa, casaco, blusa, calça. Desnudo, ele perscruta o humano. Seu corpo lateja ao percorrer um espaço da memória.

O texto se torna carne viva para atuar na produção de sentido. O corpo se torna o dispositivo cênico da própria fala, das canções, da ambiência. Ivo van Hove des-hierarquiza os componentes cênicos num processo perturbador.

A cenografia e a iluminação de Jan Versweyveld criam uma atmosfera de apartamento, quarto de hotel, com poucos elementos em cena. Assumem outras metáforas de espaços geográficos concretos e subjetivos. A janela faz o contato com o mundo externo, a neve, o frio, que influenciam no estado do personagem e da plateia.

Essa experiência sensível ecoou como uma dificuldade de controle da dor íntima. Uma vertigem a que somos submetidos em algum momento da peça, a partir de efeitos de luz e som. Parece reforçar uma das falas do personagem quando diz que todos nascemos, todos morremos e não vale a pena comentar. Mas a exposição da intimidade grita em sentido contrário.

UMA FACETA COMEDIDA DO CONTEMPORÂNEO

Crítica a partir do espetáculo “Canção de Muito Longe”, por Soraya Belusi (DocumentaCena/Horizonte da Cena)

As características que marcam a trajetória de Ivan Van Hove – ressaltadas pela pesquisadora Josette Féral na palestra realizada na MITsp, na qual empregou a expressão “extremo contemporâneo”, emprestada do poeta Michel Deguy, para designar o caráter performativo das criações de Van Hove – estão lá, presentes em todos os componentes da cena: na construção do espaço, na dimensão não descritiva do texto, na presença da música em uma relação que ultrapassa a ilustração, e na relação do ator com todos esses elementos. Porém, em vez de saltarem aos olhos do espectador, de se afirmarem de forma impositiva e evidente, esses traços da escritura cênica do encenador belga se apresentam em “Canção de Muito Longe” em sua faceta comedida, como se o artista, nesta obra, (re)experimentasse suas próprias marcas em doses moderadas.

O espetáculo, que fez sua estreia na MITsp, apresenta-se como uma narrativa sobre a perda e o luto. Willem estava um dia em Nova York, quando recebe um telefonema de sua mãe. A morte de seu irmão Pauli faz com que o jovem banqueiro retorne à cidade natal. Como forma de retomar o contato com o irmão – ou talvez consigo mesmo -, Willem lê as cartas que escreveu para ele.

Autodefinido como “um diretor de texto”, o encontro de Van Hove com Simon Stephens, dois criadores referenciais da cena contemporânea mundial – o primeiro considerado um dos encenadores mais criativos em atividade, e o segundo, um dos principais nomes da dramaturgia inglesa atual – comprova tal qualidade que o diretor se atribui, talvez a que fique mais evidenciada para o espectador em “Canção de Muito Longe”. A dramaturgia de Stephens permite que Van Hove trabalhe cada momento com esmero, escavando os potenciais sentidos e formas de cada palavra, preenchendo seus significados com contradições, estados em oposição.

Van Hove e o texto de Stephens promovem um incessante cruzamento espaço-temporal. Ao mesmo tempo que o texto evidencia a impossibilidade de se voltar ao passado, de recuperar os sentimentos um dia vividos ou viver aquilo que não se concretizou, a encenação reforça esses atravessamentos, conduzindo o público a uma jornada, interior e exterior, “sem sair do lugar” – concretizando o que a teórica Erika Fischer-Litche nomeia de “desvio performativo” do teatro contemporâneo, em que o entendimento cede espaço à experiência ou à “travessia do evento proposto”. (FISCHER-LICHTE, 2007, p 36).

“Por um momento, parecia que tudo acontecia no presente”, diz um trecho do texto. Van Hove parece reforçar essa sensação, embaralhar a noção do espectador de espaço-tempo definidos, forçando-o a adaptar rapidamente sua percepção de acordo com as sugestões que se apresentam diante dele. Não sabemos se o personagem chega a seu apartamento em Nova York, ou se está no hotel em que se hospedou em Amsterdã, ou se visita o antigo quarto do irmão na casa de seus pais.

Eelco Smits, ator que dá vida a Willem, performa de modo a presentificar a narrativa do passado, como se, ao ler as cartas, pudesse (ou quisesse) reviver aquilo que narra. A atuação assume um tom aparentemente realista, mas configura-se sutilmente performativa, à medida que o ator, mais que interpretar o texto, parece pretender jogar com ele, lançá-lo a diferentes paisagens sonoras, brincar com os sentidos e provocar contradições, correr com as palavras ou torná-las música.  Além disso, não parece ser a psicologia do personagem, mas os diferentes estados corporais e jogos rítmicos a reger a leitura dessas cartas, sugerindo momentos de nostalgia, raiva, culpa, arrependimento, entre outros.

Ao ator cabe ainda uma coreografia de diálogo com o espaço-luz proposto por Van Hove e seu parceiro Jan Versweyveld, uma linda composição no espaço, como numa pintura que tem o ator como elemento figurativista em meio ao abstracionismo das formas geométricas.

O espaço assume uma dimensão inacabada, quase completamente vazio, com uma neutralidade praticamente asséptica, em que o procedimento de fusão entre o interior e o exterior se faz novamente presente em uma de suas criações. Indefinido, mas sugestivo, o espaço revela-se vazado para o “fora” do “real”, sem criar nenhuma barreira para o público, como se o palco atingisse e integrasse a plateia ao espaço, num enquadramento quase cinematográfico, e para o externo na “ficção”, com duas grandes janelas que conectam o dentro e o fora do suposto apartamento.

Há um tensionamento-dubiedade-coexistência na assinatura artística de Van Hove – entre o clássico e o contemporâneo, o texto e a cena, o realismo e o performativo – que se manifesta em pequenas doses nesta mais recente criação. Neste primeiro contato com o público brasileiro de “Canção de Muito Longe”, Van Hove apresenta suas credenciais artísticas de modo a ainda guardar segredos e surpresas para um próximo encontro.

O aquário absurdo e a profusão de imagens no Woyzeck de Andriy Zholdak

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Woyzek, de Andriy Sholdak, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

10 de março de 2015

Enquanto a Ucrânia amarga uma situação de guerra, com 5,2 milhões de pessoas morando em áreas de conflito, o diretor ucraniano Andriy Zholdak, radicado na Alemanha, apresenta um Woyzeck em estado de tensão permanente. Uma sociedade presa dentro de um aquário transparente, que se movimenta em espaços circunscritos e delimitados. Podem ser todos ratos de laboratório ou coelhos, ou simplesmente homens animalizados, acorrentados a situações de dominação e fatalidade.

Assim como o próprio texto do alemão Georg Büchner, a performance midiática proposta pelo diretor ucraniano tem caráter político. A questão no primeiro plano continua sendo o desamparo e as relações de poder num mundo absurdo; no caso da encenação, especificamente, em diversas instâncias: desde as referências mais diretas e facilmente assimiláveis, com imagens que ressaltam a desigualdade social e a citação de que “somos 15 milhões de pobres”, o imperialismo, o militarismo, a globalização, até disputas internas que se dão noutras instâncias, como no campo da própria teatralidade.

Patrice Pavis já dizia no livro A encenação contemporânea que, na concorrência entre a imagem fílmica e o corpo real do ator, não é necessariamente esse último que ganha. No caso do Woyzeck proposto por Zholdak podemos dizer que o que se instaura é uma desorientação (propositada, obviamente) espacial do espectador. Desde o inicio, quando passamos por uma antessala e nos deparamos com a visceralidade da atuação dos performers em deliberada anarquia, até estabelecermos uma relação de frontalidade com o espetáculo, percebemos que o que se revela é uma instalação visual e sonora. O diretor bebe nos campos de várias linguagens, música, cinema, artes visuais, para compor um espetáculo que não se deixa enquadrar por um elemento sobrepujante de condução. Pode ser facilmente estudo de caso da teoria do teatro pós-dramático do alemão Hans-Thies Lehmann.

A fricção entre os vários componentes dessa ópera caótica nos deixa inicialmente aturdidos. As camadas vão se sobrepondo a cada instante com signos que não serão compreendidos em sua totalidade. Nem essa é, de maneira alguma, a intenção do diretor, que assina ainda roteiro dramático e coreografia. Assim como os atores, estamos nadando em aquários, perdidos na profusão das imagens que nos remetem a um mundo de seres absurdos no ano de 2108, seja em alguma grande metrópole ou numa nave espacial com destino a Saturno. De qualquer maneira, assim como acontece no palco, somos levados a recorrer a uma edição de imagens, de texto, de expressões e sonoridades, mesmo que, no espectador, os significados possam ser depurados muito tempo depois.

O texto de Büchner, com sua fragmentação de dramaturgia, um “drama de farrapos”, como pontua Anatol Rosenfeld, é um aliado na construção da engenhosa teatralidade de Zholdak. Sobre o texto, Anatol Rosenfeld complementa: “É um fragmento; mas é uma obra que só como fragmento poderia completar-se. Ela cumpre a sua lei específica de composição pela sucessão descontínua de cenas sem encadeamento causal. (…) Tal fato desfaz a perspectiva temporal; boa parte das cenas pode ser deslocada, a primeira cena não é mais distante do fim do que a sétima ou a décima-quarta”.

A escritura cênica no campo visual encontra reverberação no corpo do ator, submetido a uma experiência rigorosa. O caos é orquestrado e coreografo em minuciosos detalhes pelo diretor. Se a escritura cênica é marcada pelo excesso e pela profusão e multiplicidade de imagens, o efeito que isso tudo produz na plateia, no entanto, é de muito distanciamento ao final das duas horas de sessão. Como se toda frieza das relações em cena também fosse transposta para o espectador. A tentativa de humanizar aqueles seres se mostra vã. Os limites do aquário, mesmo que invisíveis, não são rompidos ainda que a cena aconteça no telhado, numa possibilidade frustrada de expansão. Quando, ao final de contas, tenta-se falar de amor, não há laços construídos que se encaixem em padrões a que estejamos minimamente familiarizados. O único ponto de conexão com alguma delicadeza possível é a criança; a esperança remota de que, em 2108, o mundo de Zholdak não esteja definitivamente instaurado em sua totalidade.

Julia do XXI ao XIX

Crítica da peça Julia de Christiane Jatahy

MITsp 2015

É sempre um problema escrever sobre uma peça que está circulando há algum tempo. Depois de tanta coisa que foi dita e escrita sobre Julia, fica o questionamento (um questionamento para a crítica, em todas as ocasiões): como não chover no molhado? O que não foi dito sobre Julia? Ou: será o caso de falar sobre o que já foi dito?

Superado o bloqueio inicial, três pontos se apresentam como pequenas reflexões. O primeiro, a questão da lida com um material prévio, uma questão do teatro por excelência. É um clichê da crítica tratar o enfrentamento de uma encenação com um texto prévio pela comparação, o que é sempre feito sob um pensamento massacrante e conservador de que o “original”, ou o passado, é sempre um ideal a ser alcançado, um monumento da tradição. Ou ainda, conferir se a “adaptação” ou a “atualização” é eficaz. Diante de Julia, de Christiane Jatahy, vejo uma nova criação – e não acho que seja o caso de compará-la ao texto de Strindberg. Me parece que a peça conversa abertamente com Senhorita Julia, se coloca frente a frente com ela. E o que Julia, do século XXI, pode dizer para Senhorita Julia, do final do século XIX? O olhar da encenação é um olhar de enquadramentos, emolduramentos, recortes. Não me interessa questionar se a interação entre teatro e cinema “funciona” ou não. Me interessa pensar: A partir do fato de que isto é feito desta maneira, o que produz? O que o foco no rosto da personagem Julia produz? O que o seu olhar mediado pelo dispositivo cinematográfico nos diz?

Foto: Steven Gunther / Calarts.
Foto: Steven Gunther / Calarts.

Uma resposta é que o olhar não é dos personagens, mas dos dos atores – e aqui aparece o segundo ponto. O dispositivo cinematográfico criado pela encenadora e por Marcelo Lipiani somado à linguagem das atuações de Rodrigo dos Santos e Julia Bernat me faz ver que há, ao longo de toda a peça, um depoimento dos artistas envolvidos sobre as questões em jogo. Não me refiro aos momentos em que a ideia de depoimento é levada ao pé da letra, mas a pontos mais sutis da linguagem do espetáculo. O momento de acusações ferozes entre os personagens, em que os preconceitos aparecem em palavras duríssimas, revela melhor o depoimento pessoal de cada artista na dificuldade visível que eles têm para lidar com aquele diálogo do que nos comentários que fazem diretamente para a plateia em seguida. A meu ver, todo o dispositivo de recorte e de dobra das imagens em Julia constrói uma distância entre o discurso dos personagens e o discurso da peça. O discurso da peça é um discurso crítico – mas não simplesmente porque pensa sobre a forma como os personagens se comportam, mas especialmente na medida em que destrincha os problemas apontados naquela situação.

Para além da diferença de classes que falava mais alto na peça de Strindberg, Christiane Jatahy acrescenta uma colocação sobre a separação cultural e social entre negros e brancos num país fundado sobre uma cultura escravocrata que ainda corre nas veias das cidades – longe de ser apenas no Rio de Janeiro. Parece que muito foi dito sobre isso. No entanto, no debate depois da peça, proposta dos Diálogos Transversais, Luciana Romagnolli apontou a visibilidade da questão de gênero, que talvez fique escamoteada. Esse é o terceiro ponto, e talvez o mais importante.

Não seria o caso de vermos, em Julia, um enquadramento da questão de gênero quando, por exemplo, durante o sexo, a câmera revela o constrangimento incrédulo no rosto da menina ao dar-se conta de que está sendo comida por um babaca? Que de repente está sendo tratada como um degrau num projeto de ascensão social oportunista, ouvindo um discurso egoísta bizarro enquanto é penetrada? Ou quando a atriz diz algumas frases como se a personagem estivesse repetindo falas que aprendeu em algum romance de banca de jornal, como “agora beija o meu pé”, “beija a minha mão”, “manda em mim”? A autoridade forçada sobre a mulher não aparece o tempo todo? A submissão forçada da mulher, e da mulher jovem, não é uma questão tanto quanto a submissão forçada do empregado, e do empregado negro?

E então refaço a pergunta: O que as Julias do século XXI têm a dizer para as senhoritas Julias do final do XIX? E vice-versa? E o que será que a Senhorita Julia de Katie Mitchell e Leo Warner vai nos dizer sobre isso?