Dois amores carece de intensidade

Foto: Divulgação
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Crítica do espetáculo Dois amores e um bicho, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

4 de agosto de 2014

É louvável, no texto Dos amores y un bicho, do venezuelano Gustavo Ott, a capacidade do autor de sobrepor elementos em camadas do que constitui o humano, com suas zonas tenebrosas que assustam quando expostas. Mas sua encenação exige, como em Beckett, que esse teatro seja o espaço da essencialidade da linguagem. A montagem da Cia. Experimentus Teatrais, de Itajaí, Santa Catarina, não conseguiu extrair as sutilezas da situação e as personalidades fissuradas dos personagens envolvidos em Dois amores e um bicho, apresentada na IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo, em São Paulo.

A peça tematiza a intolerância. A partir de uma crítica do dramaturgo ao preconceito homossexual, um dos mais arraigados da humanidade, da submissão da mulher e o desmoronamento do pai como herói.

Com direção de Daniel Olivetto, Pablo (Marcelo F. de Souza) interpreta o pai, que 15 anos antes espancou o cachorro Cabral até a morte, quando descobriu que ele tinha relações homossexuais com outro cão. Por isso ele foi preso, ficou 40 dias na cadeia e saiu após pagar uma fiança de 5 mil dólares. O assunto nunca mais voltou à tona na casa.

Até aquele dia em que ele e a mulher (Sandra Knoll) vão ao zoológico visitar a filha, já médica veterinária (Jô Fornari), e ficam sabendo que um orangotango está numa jaula separada porque molestou outros animais. O passado volta para prestação de contas com o presente.

O protagonista tem um ódio mortal aos homossexuais.

Bem, o problema me parece que esse sentimento do personagem contaminou toda a encenação, e o que deveria ser um posicionamento em defesa da liberdade fica amarrado ao preconceito.

Era preciso ressaltar o que Ott nos diz com inteligência e sagacidade. É urgente respeitar verdadeiramente as diferenças (e como isso é difícil). Nessa metáfora da relação de poder do homem sobre o homem, um dia o subjugado por dizer “chega!”, como ocorre na peça com a figura da mãe. Casada há 30 anos com a aquele homem, chega um momento em que ela fala que quer ter um filho “com outro homem”, usando da ironia e o humor negro que valorizariam os diálogos em todo o espetáculo.

Pablo exige do ator uma grande intensidade dramática. Ele é o articulador de um universo que aparentemente está em paz. Mas no sótão da memória estão guardados acontecimentos ocorridos 15 anos e uma pergunta desencadeia o desmoronamento de uma estrutura que já estava apodrecida por dentro. O personagem é figura cênica ameaçadora, mas que tem suas fragilidades. A questão é que o intérprete salienta o lado infantilizado do personagem e com isso diminui a complexidade do papel. Seu Pablo é indeciso, com um risinho irritante a cada vez que se sente questionado. Faltou o caleidoscópio de emoções. Faltou a tensão da agressão física e psicológica.

Essa dor não é somente da família de Galvarino

Foto: Divulgação
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Crítica do espetáculo Galvarino, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

3 de agosto de 2014

O espetáculo Galvarino é carne viva. De lembranças e vácuos de informação, e de indignação de uma pequena família chilena, de etnia mapuche, pelo descaso político do governo. Gente pobre e anônima é vítima da omissão e arrogância dos poderosos em todo mundo. Mas nesse caso, o teatro dá uma dimensão universal ao drama familiar. Galvarino Ancamil, que dá título à peça fez um exílio voluntário na época do golpe de Estado no Chile e vivia na Rússia desde o início dos anos 1970.

Trocava poucas cartas com a família, mas quando a correspondência cessou – depois da derrocada do comunismo, a irmã Marisol Ancamil pediu ajuda ao Ministério das Relações Exteriores do governo chileno para localizar o irmão. Silêncio das autoridades e insistência da personagem.

Ficamos sabendo depois que um grupo de neonazistas exterminou o chileno de origem indígena, nas cercanias de Moscou, em 1993.

É sobre essa ausência que fala a montagem da Compañia Teatro Kimen, de Santiago.

A diretora do espetáculo, Paula González Seguel (sobrinha de Marisol Ancamil,) é quem interpreta a irmã de Galvarino.

Com Galvarino, Paula fecha uma trilogia de “teatro documental”. Antes, ela dirigiu Ni pu tremem – Mis antepassados (2008) e Território descuajado – Testimonio de um pais mestizo (2010).

O teórico Patrice Pavis define Teatro Documentário como “Teatro que só usa, para seu texto, documentos e fontes autênticas, selecionadas e ‘montadas’ em função da tese sociopolítica do dramaturgo”

O espetáculo do grupo Kimen faz parte de uma corrente, não necessariamente ordenada, de um teatro anti-mainstream. É um um teatro militante a partir de drama pessoal. De caráter politizado, de denúncia.

Galvarino conta uma história a partir de uma micro-perspectiva privada. Borra barreiras entre realidade e ficção. E ao revisitar o episódio da história de sua família no palco, a encenadora e atriz atesta na cena que a verdade é relativa e pode ser manipulada.

Com vestimenta teatral, esse passado ganha uma poderosa capacidade de reinterpretacão. A experiência dolorosa é transformada em linguagem artística.

O cenário do espetáculo é composto de uma cozinha/sala de jantar de uma casa pobre. Os três personagens aparecem, falam pouco entre si. É um tempo de espera. A notícia da morte de Galvarino ainda não chegou. Na cozinha, a mãe (a atriz Elza Quinchaleo) depena uma galinha e prepara um caldo. A filha põe a mesa e Luis Seguel, que é o pai, interpreta o pai.

O tempo corre devagar, com o ar tenso, e as três figuras desenvolvem pequenas atividades caseiras. Há uma singeleza da dor da perda que nos atinge.

Quando a protagonista escreve as cartas, elas são mostradas numa tela. O silêncio dos dois outros personagens é gritante.

A música mapuche imprime uma dimensão de ancestralidade aquele encontro familiar. Marisol Ancamil apoxima-se de Antigone, quando exige do governo que faço o que for preciso para devolver o corpo do irmão morto. Seu discurso explode de sofrimento e revolta, na posição de impotência diante das autoridades que não cumprem seu papel público.

 

Ah! que dia mais feliz… com Clowns de Shakespeare

Foto: Ivana Moura
Foto: Ivana Moura

Crítica do espetáculo Muito Barulho Por Quase Nada, do grupo Clowns de Shakespeare, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

2 de agosto de 2014

A IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo (da Cooperativa Paulista de Teatro), começou festiva, com doses de fina ironia sobre as fraquezas humanas (que são muitas e risíveis) e a busca constante pela experiência do amor. Com duas sessões no Teatro Jardel Filho (Centro Cultural São Paulo) o grupo Clowns de Shakespeare apresentou o espetáculo Muito Barulho Por Quase Nada, adaptação da obra do bardo inglês, com temperos potiguar e mineiro, dos diretores Fernando Yamamoto (integrante dos Clowns), e Eduardo Moreira, um dos fundadores do Grupo Galpão, de Belo Horizonte.

Muito barulho por quase nada é uma encenação do repertório do grupo, erguida em 2003, quando o coletivo completou 10 anos de atividades. Os Clowns tiraram a encenação da cartola, na passagem dos 20 anos. E o que é melhor, com toda a vivência de anos de palco, resultado do confronto e cumplicidade com públicos diversos; com a lapidação do trabalho de corpo e voz do conjunto rumo a uma comédia popular. Isso dá mais graça e leveza ao jogo.

O elenco se entrega a essa brincadeira com alegria e domínio cênico. O time de atores lança mão de muitas sutilezas dos personagens para arrancar o riso dorminhoco de dentro de cada um. Como nos espetáculos populares do Nordeste do Brasil, a montagem está repleta de riqueza nas minúcias, mas com simplicidade. Essa aproximação de Shakespeare clássico da cultura popular se estabelece e o grupo já dá a dica no próprio título, com a inclusão da palavra “quase”. Das três versões da obra de William Shakespeare que assisti dos Clowns – Sua Incelença Ricardo III, HamletMuito barulho por quase nada parece a melhor resolvida na graça popular, nas subversões, na incorporação de um material (gestual e sonoro) urbano e contemporâneo

É um espetáculo luminoso, em que o elenco dança, faz pantomima, canta, toca vários instrumentos. E alguns atores interpretam mais de um personagem.

Na peça, o patriarca viúvo Leonato anseia por casar sua sobrinha Beatriz e sua filha Hero. A paixão romântica e idealizada se instala na relação de Hero e Claudio. Mas os caminhos do amor são mais tortuosos entre Benedicto e Beatriz, que preparam o terreno amoroso a partir de um duelo de palavras nada lisonjeiras. O anfitrião Sr. Leonato, o Príncipe Dom Pedro e outros personagens buscam unir essas duas criaturas ágeis no pensamento e que desdenham dos sentimentos nessas comemorações de retorno vitorioso da guerra.

Mas não faltam os golpes baixos. Por inveja das conquistas de Claudio, Don John (o irmão bastardo do Príncipe) forja uma situação para incriminar de deslealdade a doce Hero.

O grupo Clowns de Shakespeare desenvolve há anos uma pesquisa sobre a presença cênica do ator, a música na cena, e teatro popular de comédias. Além disso, a equipe investiga as técnicas do clown em amplo diálogo estético com o imaginário nordestino e seus heróis que subvertem as lógicas.

Com um elenco afinado, os atores mostram domínio de suas funções. Marco França interpreta Benedicto e Corniso, e explora o jogo com maestria das técnicas do clown e as variações da comédia (do melodrama ao musical).

A personagem Beatriz, da atriz Renata Kaiser, é cheia de atitudes nessa peleja amorosa. Há uma graça selvagem na aparente dureza da donzela. Paula Queiroz explora facetas opostas como a suave Hero e como o cafajeste interesseiro, Borracho, quando usa máscara e tem um gestual mais caricatural. Joel Monteiro faz um Mensageiro nas dobras do clichê e de grande apelo popular e trabalha os detalhes para diferenciar a personalidade dos irmãos Dom Pedro, e Dom John. João Ricardo Aguiar faz o divertido Leonato e o bocó Vinagrão. Camille Carvalho explora as idiossincrasias de Margarete.

Por alguns momentos os atores deixam transparecer a própria arte interpretativa, embaralhando personagens, como um delicioso flash de metateatro.

Os cenários, os figurinos e os adereços de João Marcelino são coloridos e levam para a cena a beleza do Nordeste em alusão à riqueza cultural da região, como nas sandálias dos cangaceiros de Lampião, nas casacas dos vaqueiros e nos bordados e rendas nordestinas e mineiras.

A música ocupa um lugar especial na montagem e tem direção de Marco França. São músicas singelas. Uma delas, com Marco França ao violão, é um acróstico com o nome Beatriz. “Ah, mais que dia feliz! Ah, como estou tão feliz! Quem me ama? Quem me ama? Be-a-triz!”. A iluminação de Rogério Ferraz simples e eficiente.

A graça está no corpo dos atores, se espalha pelo palco e contagia o público, que aplaudiu fervorosamente às sessões do espetáculo da sexta-feira, dedicadas ao crítico Sebastião Milaré, homenageado da Mostra.

 

PERCEPÇÕES EM DESLOCAMENTO

Crítica de “De Repente Fica Tudo Preto de Gente”, por Soraya Belusi (Horizonte da Cena)

Deslocar-se. Instaurar novos espaços. Desarticular as categorias. Fazer mover os corpos. Mudar de lugar o olhar. Contaminar o outro. Desviar os comportamentos dominantes. Imperativos que se apresentam, independentemente da abordagem crítica, na fruição de De repente fica tudo preto de gente. São noções que parecem ser inerentes à obra de Marcelo Evelin e dos performers da Demolition Inc., e que provocam, entre outras coisas, a desestabilização do espectador, em sua maneira de percepção e de disponibilidade corpórea, e a própria relativização das categorias artísticas, por seu caráter híbrido e pela prioridade em estabelecer a experiência e a amplitude de sentidos.

Além das múltiplas leituras possíveis na relação com a obra – algumas delas apresentadas em conversas com professores-pesquisadores e estudiosos de outras áreas do conhecimento; neste caso, com Nina Caetano e Pedro Cesarino, respectivamente; que ofereceram chaves de aproximação através da investigação dos conceitos e procedimentos de construção da obra, assim como a noção cosmológica colocada em jogo no espetáculo –, parece despontar, no exercício de metacrítica realizado pelo Coletivo de Críticos (*), a ideia de deslocamento, seja da relação passiva com o espectador, seja pela contaminação de procedimentos de disciplinas artísticas distintas, seja, principalmente, pela atitude que demanda daquele que a assiste, tanto na tentativa de convívio quanto na pura contemplação.

Em De repente tudo fica preto de gente, não são apenas os corpos dos performers que se colocam em movimento. Mais que andar pelo espaço, o público é provocado a mover-se de seu estado habitual, a colocar sua própria fisicalidade em jogo e a expor-se também ao olhar do outro. O efeito que a proximidade entre performers e espectadores assume sobre o ato performativo, já ressaltado em teorias e práticas cênicas ao longo da história recente, parece ser também uma das forças de ação que constituem a explosão de percepções e possibilidades que De repente tudo fica preto de gente nos suscita.

Em suas ondas de movimento – da aglutinação à degeneração, da integração à individuação, da estagnação ao deslocamento -, as massas corpóreas dos performers mobilizam também estados distintos no público, do desejo à repulsa, da entrega à negação, da aproximação ao afastamento. A obra demanda que público estabeleça também um comportamento físico, tornando-se, assim como os performers, uma força propulsora das dinâmicas que se estabelecem no espaço e no tempo do acontecimento performático, permitir-se ou não o contato, entregar-se ou não ao contágio, realizar ou não o toque, deixar-se, ou não, perceber a si mesmo e ao mundo através da pele e dos rastros que nela ficam.

Como afirmou o próprio Evelin em conversa com o público, é como se houvesse uma “coreografia do espectador”, cujo fluxo de movimentos, assim como o dos performers, também assume uma característica, um padrão, um procedimento no desenrolar do espetáculo.  Não se trata mais apenas de colocar em crise a cognição do espectador ou de provocar sua transição pelo espaço, mas também de fazer-lhe assumir uma postura diante dos corpos com os quais compartilha a experiência. A ocupação compartilhada entre criadores e espectadores no platô coloca em confronto, como num ringue, as tradicionais convenções de quem age e de quem é apenas o alvo da recepção. O espectador, sua materialidade corpórea, é parte indispensável da visualidade e do movimento da cena, tornando-se parte da experiência do grupo de espectadores presentes. Fica tudo preto de gente mesmo.

Há uma escolha (ou uma recusa) a ser feita pelo espectador. Existe uma tomada de decisão do público que preexiste e ultrapassa o ato de olhar e atribuir sentido ao que se vê. Se o público não quer “empretecer”, é preciso agir. E se não quer agir, é preciso decidir ficar do lado de fora do ringue. Para esses, que se mantêm do lado de fora, caberia apenas a contemplação, a construção de um argumento e a necessidade do sentido. Para os que estão dentro não existe contemplação, mas a exposição de todos que compartilham o ato. De repente tudo fica preto de gente é, em sua relação com o espectador, ao mesmo tempo, exposição e contemplação, experiência e sentido, pensamento e movimento.

Assim como o deslocamento da percepção do espectador (sobre si mesmo e sobre a obra), o espetáculo nos levou a refletir, ainda, sobre a noção de campo expandido das artes, em que as categorizações não são mais capazes de enquadrar todos os desobramentos (éticos-estéticos-técnicos-filosóficos) da obra em questão. Retomando a ideia de convivio entre espectador e obra, espectador e espectador, espectador e performers que De repente tudo fica preto de gente proporciona, os campos do teatro e da dança, assim como da performance e da instalação, nem sempre têm a oportunidade de convívio que aqui se desenha.

A ampliação dos campos nas artes – uma ideia que pode ser vislumbrada com a leitura de A escultura no campo ampliado, de Rosalind Krauss – é também uma questão para a crítica. Se antes, uma categoria se definia por atributos técnicos específicos, hoje, esta se dá menos vertical e mais horizontal, no campo de experiências possíveis. Sendo assim, conceitualmente, temos que intervir sobre a dinâmica da experiência com forma de encontrar nela a possibilidade de sua condição. Aproximar-se de De repente fica tudo preto de gente por um único enquadramento possível seria limitador para a própria experiência relacional com a obra.

No caso desse espetáculo, o público não está meramente passivo ao procedimento, é ele parte fundamental ao movimento de construção dos performers. A obra se estabelece como a correlação entre o convívio estético do espaço, obra e observador, uma instauração que parte de processos de entropias possíveis ao entendimento de proximidade ao outro. A criação assinada por Evelin e pelos performers da Demolition Inc., porém, não nos faz mais indagar, como sintoma das poéticas híbridas que se afirmam na contemporaneidade, se o que está diante dos nossos olhos é dança ou não. Esta pergunta parece não responder outra que se impõe de maneira ainda mais potente na fruição do espetáculo, ao voltar o questionamento não somente ao artista acerca dos procedimentos escolhidos por ele, mas, principalmente, a nós mesmos, espectadores, de como nos relacionamos com o que nos é apresentado. Exige, sim, olhar para esses espaços fronteiriços como eles se instauram em suas particularidades, não determinar categorias para eles que de algum modo os limitem.

 

Equilíbrio delicado

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Metacrítica a partir do espetáculo Nós somos semelhantes a esses sapos + Ali, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?

MITsp 2014

26 de março de 2014

Fazer metacrítica de um espetáculo nos coloca numa situação estranha, mas desafiadora. Buscar o sentido ampliado, com o reforço de outras vozes. Encontrar outros caminhos e uma dicção mais original de um trabalho visto há alguns dias. E, no caso de uma obra dentro da programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp (realizada entre 8 e 16 de março na capital paulista), com os acréscimos de camadas sensoriais e interpretativas de outras montagens, conversas com pares e ímpares, palestras, outras visões. Além do fator tempo. Estar distanciado do momento da expectação não significa necessariamente uma vantagem. E sim uma dubiedade. Mas com o olhar é deslocado. “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali foram apresentados na Sala Jardel Filho, do Centro Cultural São Paulo – CCSP, em sessões lotadas e recepção calorosa do público.

Utilizei de vários sentidos de deslocamento como chave de leitura para o espetáculo “Nós somos semelhantes a esses sapos…”, da companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (As Mãos, os Pés e a Cabeça Também), que exibiu em seguida o duo Ali. Das andanças pelo palco – Hedi Thabet, Artemis Stavridi e Mathurin Bolze -, do reposicionamento do eixo gravitacional e das referências aos movimentos migratórios mundiais e suas questões de identidades. Mas o deslocamento mais importante se opera no vocabulário dos movimentos alimentados pelas acrobacias circenses, que se descolam de outras bases da dança contemporânea para criar sua singularidade.

O trabalho também processa uma transformação na percepção do que é apontado como normalidade. “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali, não se resumem a um tratado sobre a deficiência física ou sua “exploração espetacular”. Hedi Thabet (dançarino e artista de circo belga que teve a perna amputada) disse, na conversa com o público após a segunda récita, que a peça “Nós somos…” é  “jogo de situações dramáticas sobre o amor”.

Em “Nós somos…”, a triangulação do desejo começa com movimentos repetidos mecanicamente, do casal que anda em círculos pelo palco. A noiva de camisola, o noivo de camisa branca, calça e paletó pretos. A terceira figura desse trio entra para desestabilizar o idílio amoroso dual, o homem de muletas.

O título do espetáculo é um verso do poeta René Char (1907-1988), “Nous sommes pareils à ces crapauds qui dans l’austère nuit des marais s’appellent et ne se voient pas, ployant à leur cri d’amour toute la fatalité de l’univers” (Nós somos como esses sapos nos pântanos que na noite austera se comunicam e não se veem, dobrando em seus gritos de amor toda fatalidade do universo).

Esses corpos carregam possibilidade erótica, enquanto instância também de poder. E extrapolam fronteiras com subversões poéticas. Estar no mundo é repleto de ironias, em questionamento de ser inteiro, pleno e fragmentado e incompleto. O que falta. Mas a imagem da mutilação não se apresenta como obstáculo, mas sim potência.

É a partir dessa ausência, porém, que se estabelecem os jogos de multiplicação e mutação dos corpos. Nessa reinvenção e reconfiguração corporal, são compostas formas humanas e supra-humanas, mitológicas, animalescas, em que os corpos se reorganizam, se fundem, se redefinem.

Imagens de potência em constante construção – uma rainha gigante com três pernas ou o gozo da noiva lânguida, Artemis Stavridi, erguida sobre o corpo de Hedi Thabet. Com os movimentos acrobáticos exacerbando a dança contemporânea, “Nós somos…” constrói um vocabulário de movimentos que busca confrontar a gravidade e reelaborar a noção de equilíbrio.

A música é executada ao vivo por quatro instrumentistas oriundos da Grécia e da Tunísia. Eles tiram texturas sonoras que aquecem, ganham formas e sabor ou estão carregadas de melancolia. A trilha salienta passagens mais passionais, com canções da tradição rebetiko e o som folclórico do Oriente.

O discurso amoroso também está presente em Ali, mas o registro é da ordem do fraterno.  A falta exposta se apresenta como elemento organizador da coreografia. A amizade articula os jogos, armados e desarmados entre os dois homens. Vai da ludicidade das brincadeiras infantis à disputa pelo poder como energia vital. Em Ali, as muletas se transformam em objetos de ligação entre os dois bailarinos. Cumplicidade, companheirismo, afeto entre Mathurin Bolze e Hedi Thabet. Eles se desafiam e confundem, se desdobram, se encaixam numa plasticidade comovente. O corpo pode ser outro, de outro modo, outro ser vivente.

Atravessando o território do Gólgota

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Metacrítica a partir de Gólgota Picnic, de Rodrigo García, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

26 de março de 2014

O lugar do calvário virou cenário para piquenique. Mas quem seria sacrificado? Jesus Cristo não estava sozinho na crucificação proposta pelo diretor argentino Rodrigo García e sua companhia La Carnicería em Gólgota Picnic, apresentada durante a primeira edição da MITsp. Mesmo com todo distanciamento proposto pela encenação do palco italiano, é o público quem está ali enfrentando “as verdades” de uma sociedade que não deu certo; embotada pelo capitalismo desenfreado, pela sede de poder, pela guerra.

O discurso cênico não se deixa encerrar numa só análise; e isso se dá principalmente por conta da quantidade de estímulos a que a plateia é submetida. Se fosse, aliás, apenas por exercício mental, para resumir leituras e significados, excesso seria uma boa palavra. Excesso de palavras, excesso visual, excesso performático. Sem verticalidades, o texto desfia um rosário de críticas que, em algum momento, de uma maneira ou de outra, irão atingir o espectador. Mesmo aquele que, inicialmente, consegue se distanciar do discurso quase panfletário da montagem, talvez seja capturado quando a função da própria arte e os seus conceitos são questionados. Há espaço para tudo: desde os artistas que retrataram o calvário até críticas sobre o mercado de arte e as suas instituições.

Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García transita pelos limiares do panfletário, dessa construção calcada em clichês e superficialidades. Ao mesmo tempo, no entanto, é esse acúmulo que constrói a potência do discurso que se rebela contra o estabelecido e nos faz questionar as bases da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: estamos todos ali participando do mesmo piquenique, satisfazendo os nossos desejos, nos utilizando da arte para saciar as próprias falências e deficiências.

Ainda que atinja tantos alvos, o enunciador desse discurso se mostra sempre um só. Não há diálogos entre os atores, que não assumem personagens definidos. São todos participantes de um encontro na grama de hambúrgueres de que é composto o cenário. Essas pessoas não têm identidade – podem ser qualquer um de nós em discursos ditos de maneira isolada ou em confabulação e sem contrapontos advindos do embate que qualquer diálogo pode trazer. Não há outra visão, quebras ou rupturas na construção dessa mensagem. Isso se confirma também na maneira como os atores dizem o texto – em tom de conversa, às vezes de confissão, de narração. Essa linearidade entra em choque imediatamente com a profusão visual da montagem.

Rodrigo García constrói uma instalação. As artes visuais estão entranhadas no seu teatro. As projeções em vídeo e também em tempo real em proporções gigantescas que nos levam para dentro da tela; os 25 mil pães dispostos no chão; a maneira como a performance dos atores se desprende da realidade. Eles mesmos reinventam os seus próprios quadros sacros ou profanos. Eles são os personagens – mesmo que ausentes de personas definidas – da simulação da vida. Recebem a tinta no corpo como se fossem as árvores que carregam os frutos e são banhadas com inseticidas.

O pão simboliza o sagrado, o corpo de Cristo, mas também a consagração do consumismo, do fast food. A maneira doentia como a nossa sociedade se relaciona com a comida; a crise de alimentos que assola o mundo enquanto a cultura do desperdício é instaurada. As metáforas podem ser claras assim ou nos levar por caminhos desconhecidos, que chegam quanto mais nos distanciamos da obra. A potência está exatamente na possibilidade de reverberações e imagens que a encenação de Rodrigo García nos permite formatar.

As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real; mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo de maneira muito clara e efetiva.

Mesmo que o lugar de espectador seja preservado, somos provocados e desestabilizados o tempo inteiro. Seja pelo cheiro desconfortável dos pães, pelas minhocas colocadas dentro do sanduíche, pela sujeira da tinta azul e vermelha, pelo bolo da comida mastigada que, projetada na tela, nos causa embrulho no estômago e ânsia de vômito.

Quando, por fim, parece que passamos por tudo isso e a divindade bate à porta, não sabemos lidar com ela. E isso, mais uma vez, nos tira do lugar do conforto. O pianista se despe para executar a obra Sete últimas palavras de Cristo na cruz, de Joseph Haydn, mas a mudança de estado no espectador proposta pela música clássica que, inicialmente, nos conforta, também sufoca. E incomoda pensar que ela nos inquieta. Que à estética do Gólgota estamos bastante habituados, a rapidez desconcertante, uma quantidade incomensurável de estímulos, a poluição, a sujeira, a violência. O choque é tão brutal que não conseguimos absorvê-lo e continuamos nos debatendo como se não conseguíssemos sair do Gólgota para o lugar do sagrado – se é que ele realmente existe.

 

Reflexões da perturbação

Metacrítica a partir de Yo No Soy Bonita, de Angelica Liddell, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2016

26 de março de 2014

Angélica Liddell não se identifica como feminista, embora as questões invocadas em sua obra coincidam com a pauta do movimento. A distinção provavelmente está nos modos como a artista espanhola as problematiza. Causa estranhamento, à primeira vista, a postura da performer em Eu não sou bonita. Isso se deve a um discurso margeado por estereótipos do ser-homem e ser-mulher como dois papéis sociais definitivos e associados, respectivamente, ao binômio agressor-vítima, sem escapatória. Contudo, como se disse na ocasião de Escola, do chileno Guillermo Calderón, é preciso desconfiar dos discursos que aparentem uma integridade. E o de Liddell, por mais que brade uma radicalidade, não é menos poroso.

É preciso desconfiar também da performer e de sua construção cênica autorreferencial. Os elementos (supostamente) reais da narrativa e da materialidade da cena deixam de sê-lo quando tomados como componentes de uma poética, ainda que mantenham um apelo e uma força de realidade. A fabulação de um abuso sexual não reverbera com a mesma contundência de um depoimento de abuso que se entenda como real. Um cavalo vivo em cena ultrapassa o simbólico (sem deixar de sê-lo), é uma força da natureza, domesticada só em parte, posto que não obedece a vontade da performer e sua ação comporta o imprevisível – a ameaça do perigo. É com essa sensação do real e sua capacidade de despertar no espectador uma percepção aguçada, urgente, que Liddell joga.

Quando se apresenta como uma mulher indelevelmente marcada por um abuso sexual sofrido na infância, a artista instaura essa zona imprecisa entre real e ficcional e de indistinção entre seu corpo fenomênico e a figura dramática, de modo que o público tende a identificar a figura que se apresenta como a própria Liddell – cujo sobrenome de batismo é outro; este emprestou da verdadeira Alice (Liddell) que inspirou Lewis Carroll. Tomado como real o ato de abuso, está o público diante de uma vítima real e, portanto, o posicionamento que lhe é demandado não se acomoda numa relação palco/plateia ativo/passiva. Ileana Diéguez (2011) observa que “o retorno ao real faz um apelo ao entrecruzamento entre o social e o artístico, acentuando a implicação ética do artista”. A do espectador também.

A performer-atriz Angélica Liddell ocupa então uma posição liminar, no “entre” do tecido cultural, cujas potencialidades previstas por Turner (1988) comportam a outorgação de poder aos fracos, dentro de experiências arriscadas no interstício entre dois mundos. O corpo de Liddell não é significante, mas produtor de presença e de sentidos, articulados num campo de ações concretas, poéticas e simbólicas que permitem a reelaboração simbólica do trauma e o empoderamento daquele antes assujeitado.

Liddell opera na zona do desconforto. O mal-estar é uma chave dramatúrgica importante em todos os aspectos da encenação. Ao público, oferece-o, entre outras formas, na narrativa imagética com que descreve o desejo sexual por crianças, sugerindo à imaginação daqueles que a ouvem imagens geradoras de intenso mal-estar por sexualizar o corpo infantil e deslocar o espectador para a posição do desejante e, portanto, potencial opressor.

A artista transita por territórios tabus também na complexa cena de insinuação sexual ao cavalo. Esse momento deixa latentes ao menos três leituras contraditórias. Há uma relação de poder exercida por Liddell ao portar um corpo que deseja (justamente o que é impedido às mulheres na construção cultural que ela denuncia). Uma relação de impotência diante do agressor (a pequenez da artista-criança-vítima diante cavalo-soldado-agressor). E uma relação de mal-estar que invade a sexualidade feminina na nossa cultura. A impossibilidade de síntese – a coexistência dessas (e outras possíveis) leituras concomitantemente – está na base da força maior que a obra tem: a de plantar angústias e incômodos que a mantenham fermentando na mente e no corpo do espectador dias além.

A domesticação exercida pela cultura sobre o corpo feminino e que o coloca à mercê do desejo doentio de posse e subjugação por parte do macho é alvo de críticas diretas no campo discursivo que expõem as entranhas do funcionamento sociocultural determinante do universo limitado de possibilidades do masculino e do feminino em uma sociedade patriarcal e dicotômica.

Liddell sintetiza essas carapuças da divisão binária das identidades de gênero em dois extremos: à mulher cabe somente ser boa ou má chupadora (a legitimação está no prazer masculino, nunca no feminino); ao homem, ser o mal. Esse discurso extremista se constrói pelo recurso a símbolos que acenem para realidades mais amplas. Dois deles: a fotografia de uma mulher de beleza “padrão” praticando sexo oral remete às imagens publicitárias e pornográficas e provoca em parte do público feminino risos desencaixados, que entram em fricção com o discurso (e Liddell parece buscar essas arestas), apontando para a manutenção da crueldade machista também no comportamento feminino; e a cruz florida, em referência às mais de mil mortes e desaparecimentos (e outros incontáveis casos de estupro) de mulheres em Ciudad Juárez, no México, cenário-símbolo do ódio à mulher. Liddell se volta contra uma sociedade patriarcal que perpetua a violência de gênero e trata os espectadores como cúmplices e agressores – culpados.

A violência autoinfligida pela artista por meio de cortes novamente faz irromper o real em cena. Ao mesmo tempo, a ação pesa como símbolo da imolação praticada contra a mulher historicamente. Há ainda uma possibilidade de leitura psicanalítica (Liddell tem formação em psicologia) que a remeta à atitude masoquista, pela qual a posição de gozo coincide com a posição de submissão na articulação entre erotismo, dor e subjetividade, além de um ato de multiplicação da dor para exercer controle sobre ela. Liddell se aproxima de uma teatralização do excesso, dando extravasamento à violência e exibindo os martírios da carne, para colocar diante do espectador a “evidência espetacular do sofrimento”, como diz Diéguez, oferecendo-lhe a escuridão do trauma.

Na forma hiperbolizada de representação do sofrimento por meio da restauração da violência contra si a cada apresentação de Eu não sou bonita e do discurso extremista sobre o binômio homem-mulher, cabendo ao primeiro palavras de ódio, vê-se que Liddell se afasta do exercício da alteridade rumo à exacerbação do eu: não lhe interessa a voz do “outro” (homem) quando o outro por definição é a mulher. Não há dois sujeitos quando um é assujeitado. A artista busca a confusão entre essas categorias de sujeito e objeto, sugerindo a partir de si a identificação com toda história da violência de gênero. A denúncia do horror imposto à mulher é tensionada até o insuportável à medida que Liddell encena o limite no qual não há saída para o homem além do papel de opressor, nem para mulher além do de oprimida. O mecanismo terapêutico não se direciona à artista, mas ao público, uma vez constituído por Liddell o espelho dessa limitação à qual cabe ao público – não à artista – reagir.

A caracterização com longos cabelos e vestes pretas, a afirmação da feiura e o ódio ao masculino aproximam Liddell ainda da imagem estereotipada da bruxa – aquela ilustrada em livros infantis e perseguida pela Inquisição. Categoria na qual a mulher que não se encaixasse aos padrões culturais vigentes poderia ser aprisionada. Eu não sou bonita é uma tomada de posição: a escolha não pelo imaginário da princesa, destituída de erotismo e de poder, mas pelo da bruxa, portadora de um poder acima dos domínios dos homens. Essa leitura, como observou a crítica Daniele Ávila, permite tomar “as manifestações de ódio e as acusações proferidas na cena como parte das invocações de um gesto de bruxaria”, que “também se dão em um plano simbólico-performático”. Liddell agencia outros saberes além dos discursivos e terapêuticos, dominados num contexto cultural logocêntrico e patriarcal. Sua explosão das paredes que limitam o ser mulher e o ser homem (dois componentes do mesmo binômio, afinal) passa pelo recurso às forças do corpo. Simultaneamente, uma presença imanente e uma presença transcendente.

Ps. A MITsp trouxe, entre outras reflexões tantas, a experiência redescoberta do teatro como acontecimento. Enquanto o crítico Luiz Fernando Ramos reafirmou a importância de que a crítica veja além dos “acidentes” da apresentação, lançando um olhar sobre o espetáculo que constitua uma história do teatro, há de se considerar que é justamente no acidente que o teatro se faz, ou seja, não existe na idealização prévia ou posterior do que o espetáculo deveria ser, mas somente em seu acontecer num tempo-espaço de encontro com o espectador.

Assistir ao episódio dois de Bem-vindo a casa num grupo de 15 pessoas das quais a maioria não viu o primeiro episódio transforma o convívio e, consequentemente, a experiência. Assistir ao espetáculo Eu não sou bonita com uma interrupção em seu decurso altera também a experiência, portanto, o espetáculo. Pode-se, quiçá, projetar o que seria o mesmo espetáculo no campo das ideias. Mas a percepção se dá no mundo físico. A irrupção do real pela intervenção dos manifestantes pró-animais, que, por minutos, coabitaram o palco com Liddell, sendo inicialmente aceitos sem surpresa pela artista, reforçaram o caráter de realidade do que acontecia sobre o palco e a impressão de que era a própria Angélica quem agia, ressaltando o corpo fenomênico sobre o corpo representacional. Outro efeito, provavelmente mais grave do ponto de vista da expectação, foi a quebra de um desenho de forças seguido pela artista, que afeta justamente a dimensão não-semiotizável da experiência teatral, fundamental em um trabalho como Eu não sou bonita.

Tragédia da Imaginação

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Hamlet, da companhia lituana OKT, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

19 de março de 2014

Hamlet, da companhia lituana OKT, principia com uma pergunta: “Quem é você?”, variação do encenador Oskaras Koršunovas para a frase da peça de William Shakespeare “Who’s there?”. O questionamento é feito pelos nove atores da trupe que, de costas para a plateia, se miram no espelho. Vão do sussurro ao grito, num crescendo. O público também está refletido. O cenário é um camarim com bancadas móveis que se transfigura no reino da Dinamarca. O sistema de espelhos compõe ângulos reveladores, como o do pai de Hamlet fantasma (Dainius Gavenonis) que se olha e vê Claudius (que ele matou) dentro de si, numa alusão ao fratricídio Caim e Abel.

O diretor não inventa Elsinore no palco. Desvia do espaço vazio e compõe um local onde são sobrepostas as máscaras (ou maquiagem) como tradução do presente. Nesse metateatro, Elsinore é criado na imaginação do espectador. Hamlet traça esse enfrentamento com os meios teatrais a partir de sua consciência. Nesse jogo, busca se apossar da consciência do rei, o fantasma, o Old Hamlet, para fazer justiça e do tio Claudio para executar sua vingança. Mas como manter-se humano neste mundo desumano de Elsinore? Essa pergunta ecoa nos jogos de palavras e nas redes de intrigas.

Hamlet de Koršunovas é uma tragédia da imaginação. Isso é reforçado pela expressão Mind’s eye utilizada por Hamlet, quando diz que parece que está vendo seu pai e acrescenta: “com os olhos da alma, Horácio” (in my mind’s eye, Horatio). O protagonista opera uma memória visual ou imaginação. O encenador seduz o público para a “ratoeira” da imaginação de Hamlet, imprimindo camadas ou apagando fronteiras do teatro, o espaço da ação, atores e papéis. A música de Antanas Jasenka tem um desempenho fundamental.

Há algo de podre no Reino da Dinamarca e um enorme rato branco que mostra a cabeça e pousa a cauda nas mesas de maquiagem. O roedor volta a aparecer em vários momentos da montagem. O mundo é um teatro em que se finge e mente e essa encenação de Koršunovas não chega a iluminar possíveis lugares ainda obscuros de Hamlet. Mas traz em si acertos de conta com o passado e muitas dúvidas com relação ao futuro. Tem as referências da cultura pop e as potentes interpretações dos atores. E chama para um debate sobre camadas de representação em fogo brando.

O famoso “Ser ou não ser” é dito duas vezes pelo ator Darius Meškauskas. Na primeira vez ele joga e mente como “ser” melancólico. Na segunda vez, furioso, diante do “não ser”. Oskaras Koršunovas insiste com seus conjuntos de imagens sobre o tema do artifício que a realidade não existe mais. Apenas fragmentos dela estão espalhados e refletidos em vários espelhos.

 

Espaços para desconfiar do discurso

Crítica de Escola, de Guillermo Calderón, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2014

16 de março de 2014

Até o torturador cria para si histórias que o convençam de que faz o bem. Dita quase com essas palavras em Escola, tal frase é indício da perspectiva complexa com a qual o diretor Guillermo Calderón aborda temas políticos em espetáculos como Villa+Discurso, apresentado no Brasil em 2011 e 2012, e este Escola que ora traz à MITsp. É preciso desconfiar dos discursos. Deles escapam contradições, que revelam a concorrência de forças sob a superfície de uma convicção.

Em Villa, tais forças se mostravam mais evidentes na dramaturgia, separadas em opiniões distintas sobre o melhor modo de representar a memória da violência cometida durante a ditadura chilena a partir de um problema concreto: a construção de um museu. O conflito de pontos de vista estruturava as ações e se dava a ver na superfície dos discursos; e o encaminhamento dado a eles depunha sobre o caráter ilusório de um consenso ou uma verdadeira solução.

Parece ser dessa descrença no consenso que Calderón parte em Escola. Embora se ouça somente a perspectiva de um grupo de guerrilheiros em formação, a abordagem passa longe do dogmatismo. O teor reflexivo agora se encontra agora nas zonas quebradiças do discurso sustentado precariamente.

Personagens com os rostos ocultos por capuzes recebem ensinamentos para ir à luta armada contra o regime ditatorial nos anos 1980. Aprendem noções primárias de capitalismo, tiro e conspiração. O ensino ao qual o público é igualmente exposto sofre das limitações comuns à aprendizagem na escola: a veiculação de um discurso quase catequizante, do qual o aluno-espectador há de desconfiar por si mesmo. A escola surge como esse lugar de uma verdade que instrui, mas de cuja solidez se deve duvidar.

O trabalho de Calderón demanda um espectador não ingênuo e trabalha com concepções brechtianas livremente recriadas pelo encenador chileno. Os desencaixes entre cenas rompem a fluidez da fruição, incitando a leitura crítica a partir de sutilezas e subtextos. A defesa de uma forma de organização popular que faça uso da violência para instaurar um novo estado social, por exemplo, esbarra no baixo nível de formação política desses militantes, que pontualmente manifestam ingenuidades e contradições. Mesmo a legitimação da violência ganha sombras absurdas frente à descrição do funcionamento do revolver e do explosivo. A encenação realista, em espaço diminuto e cenografia econômica, atesta ainda certa ética da representação praticada por Calderón, que se esquiva à espetacularização.

Em sua exposição de uma célula de resistência popular, Escola ganha um caráter de urgência pelo diálogo com o contexto atual da América Latina, no contraponto de um passado ditatorial com as manifestações de descontentamento político do presente. A formação política deficiente, aliás, é um dos inúmeros pontos de aproximação possível do espetáculo com os protestos iniciados em junho passado no Brasil. Outro é o questionamento em relação à ditadura ter cedido a um governo falsamente democrático, que ainda operaria sob princípios autoritários e interesses alheios à população.

Calderón dispõe um lugar especial ao espectador: o de um encontro com uma ou mais visões de mundo que não tentem convencê-lo – posto que o convencimento seria um autoritarismo – mas demandem dele o assumir de uma postura. Essa operação se torna mais potente na medida em que a dramaturgia contempla um endereçamento ao futuro, ao pressupor que aquele momento político decisivo para o Chile seria retomado adiante e que a luta popular tem o exemplo de erros e acertos de um passado não muito distante.

Mesa-redonda Crítica da crítica na MITsp 2014

Além da cobertura crítica realizada na MITsp 2014, no contexto do Coletivo de Críticos, os integrantes da DocumentaCena participaram da mesa-redonda intitulada Crítica da Crítica, com Kil Abreu, Luiz Fernando Ramos e Edelcio Mostaço.

O pensamento crítico sobre a cena contemporânea desenvolveu-se muito nas últimas décadas, mas tem ficado restrito aos circuitos especializados. Já a crítica direcionada ao espectador parece precisar permanentemente se reinventar diante da crise sem fim de interesse e espaço dedicado a ela nos veículos de comunicação tradicionais. De onde vem essa contradição? O teatro participa cada vez menos dos grande debates nacionais por ter reduzido poder de impacto e por isso tem se tornado objeto de especialistas? As transformações recentes que impactam as mídias impossibilitam o adensamento do pensamento crítico e pasteurizam as formas de arte em circulação privilegiando suas formas massivas? A crítica teatral em jornal vai acabar? A internet e a possibilidade que ela oferece de alcançar os espectadores diretamente é o futuro da crítica teatral? As formas coletivas, polifônicas, colaborativas podem contribuir para recolocar o pensamento crítico em diálogo com os artistas e as obras e oferecer ao espectador repertório para sua recepção em tempos de criações compartilhadas?

A mesa-redonda foi realizada no dia 15 de março de 2014, no Itaú Cultural.

Foto: Felipe Vidal.
Foto: Felipe Vidal.

Plataforma de Crítica