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Na pele do outro

Foto: Janosh Abel

Crítica a partir do espetáculo Black Off, de Ntando Cele, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MITsp 2017

Há muitas hipóteses que envolvem as origens do racismo no Brasil e no mundo. Geralmente associadas, em nossa cultura, à experiência da escravidão durante a colonização do país, tais origens podem remeter, no entanto, não a quinhentos anos, mas a algo entre seis e doze mil anos atrás. Foi nesse intervalo, segundo algumas hipóteses, que se deu o chamado processo de diferenciação racial: a partir de uma humanidade até então predominantemente negra, que ocupava pelo menos a África, a Europa, o Oriente Médio e a Ásia Meridional, teriam surgido os primeiros povos brancos e amarelos. Pouco mais tarde, possivelmente devido a disputas territoriais, surgiriam as primeiras narrativas que pressupunham algum tipo de superioridade genética de um fenótipo sobre outro, desembocando em um pensamento que racializou a humanidade e tem servido, em diferentes contextos e momentos históricos, como justificativa tácita para a manutenção de opressoras hierarquias raciais.

O combate institucional ao racismo, por outro lado, tem origens mais recentes e conhecidas. O Brasil, por exemplo, é apontado como o quarto país do mundo a enfrentá-lo a partir de políticas de Estado, intensificadas somente a parte de 2003, com o ensino da história africana nas escolas. Antes de nós, somente os Estados Unidos, durante as décadas de 1960 e 1970, Cuba, a partir de 1959, e África do Sul, a partir de 1992, haviam lançado reformas referentes à própria ordem sociorracial.

Levado à cena pela artista sul-africana Ntando Cele, o espetáculo Black Off talvez nos ajude a enxergar o pensamento racializador como construção presente em cada um de nós, assim como a problematizar atitudes cotidianas que nos impedem de superar esse pensamento. Inicialmente trajada e maquiada como a loiríssima Bianca White, Ntando usa e abusa, com propriedade, do seu lugar de fala, expondo ao público uma suposta ingenuidade branca cuja violência contra o outro ganha, em cena, ares de ironia, mas somente devido à pele negra que temporariamente se esconde por trás de muita maquiagem. A partir dessa suposta ingenuidade, Bianca reproduz sucessivos clichês relacionados a preconceitos raciais dirigidos, ali, tanto a negros quanto a brancos. Intencionalmente ou não, suas palavras muitas vezes provocam o riso da plateia, revelando algo da trivialização e banalização do racismo entre muitos de nós.

Por meio desse procedimento, no entanto, o que se alcança parece ser uma percepção nítida sobre o conteúdo extremamente frágil que, desde tempos imemoriais, têm sustentado o pensamento racista. À medida que tais clichês se acumulam cena afora, estendendo-se em muitos momentos às relações estabelecidas entre a artista e os músicos, assim como entre a artista e os integrantes do público, parece esvaziar-se por completo qualquer sentido associado ao pensamento racista, afirmando-o como uma construção essencialmente histórica que em muito limita nossas visões e relações com o outro, assim como, de parte a parte, nossa própria experiência social. “O que significa ser um artista negro?”, questiona, sem resposta.

Como traços evidentemente racistas de nossas relações e experiências sociais, Ntando chama atenção, por exemplo, ao discurso e à prática da filantropia, cuja presença é maciça em território brasileiro, mas certamente ainda maior quando se pensa no continente africano. Muitas vezes midiatizada, quase sempre revestida de valores como benevolência e solidariedade, a prática filantrópica, historicamente branca, é revelada pela artista a partir de seu caráter eminentemente conservador, uma vez que reforça relações de dependência, de subalternização e até mesmo de cooptação do outro e de sua visão de mundo.

A esse respeito, também os incensados programas de ajuda a crianças e famílias africanas são problematizados em cena, convertendo-se num possível complemento à xenofobia que continuamente ganha espaço em nosso dias. “Os negros devem ficar na África”, escutamos, à certa altura, a partir de um raciocínio que culpabiliza os povos historicamente oprimidos por reivindicarem, agora, a partir de diferentes estratégias e contextos, algum tipo de justiça e igualdade social.

Mais adiante, já despojada da alva personagem que nos recebe, a artista oferece ao público outras possíveis imagens de si mesma. Deixando de lado a aparente delicadeza de Bianca White e seu estilo stand-up comedy, Ntando atribui à própria presença outras qualidades, desempenhando uma série de ações performativas de grande simplicidade e potência, provocando, sem pressa, nos espectadores, reflexões, impressões, afetos e, quem sabe, atitudes em relação à humanidade que nos une e que precisa resistir e se impor a tantos séculos, quem sabe milênios, regidos e condicionados por pensamentos racistas.

Enquanto, com ares de princesa, Bianca White profere impropérios nas entrelinhas de sua aparente delicadeza e doçura, a voz de Ntando Cele passeia, no decorrer do espetáculo, por diferentes atmosferas. Entre tons que remetem a própria ancestralidade e ações silenciosas que muito nos dizem, a artista arrisca-se ainda em um pequeno concerto punk, quem sabe afrofuturista, no qual a aparente agressividade das palavras talvez nada tenha a ver com qualquer pulso de violência, mas, sim, com a urgência de fazer-se ouvir e reverberar sobre a pele e, principalmente, sobre a consciência histórica e social do outro.