Para escrever um texto curto sobre Brickman Brando Bubble Boom, ou simplesmente BBBB, espetáculo do Agrupación Señor Serraño realizado em 2012 em parceria com o Centre d’Arts Escèniques de Terrassa e com o apoio de diversas instituições, é preciso concentrar-se em um recorte específico, tendo em vista que o espetáculo – barroco em sua multiplicidade de meios, temas e técnicas – oferece diversas possibilidades de entrada. Também é preciso abrir mão de fazer uma descrição mais generosa para o espectador que não viu a peca. O recorte específico desse texto é a observação da montagem – procedimento presente em várias camadas da construção da cena – como operação crítica nuclear do espetáculo.
A peça do coletivo da Espanha tem um motivo central, subjacente a todos os seus elementos: o anseio por um lar, que se desdobra no desejo da compra de uma propriedade, necessidade real mas ao mesmo tempo mais um paradigma de consumo capitalista. A partir daí, o grupo apresenta duas narrativas cruzadas – o que já se configura como montagem. Uma delas, a vida e os empreendimentos imobiliários de um personagem fictício da Inglaterra do século XIX, Brickman. Outra, a vida de Marlon Brando e sua lida problemática com a ideia de lar, família e suas excêntricas propriedades. Entre as duas biografias, montagens de cenas de diferentes filmes de Brando, dubladas ao vivo e legendadas de modo a parecer (jocosamente) a narrativa da vida de Brickman vivida no cinema pelo ator norte-americano. As duas biografias são contadas com imagens capturadas ao vivo de maquetes montadas na hora e de uma série de objetos, jogos, brinquedos e imagens replicadas de dispositivos eletrônicos. Essas imagens são mixadas ao vivo e projetadas em grandes folhas de isopor que, ao longo do espetáculo, servem como tela de projeção e elementos para montar uma casa de uma maquete de proporções humanas.
Com esses procedimentos e tendo a música ao vivo como estratégia para estabelecer uma atmosfera de diversão e despojamento, os artistas de BBBB, Alberto Barberá, Alex Serraño, Diego Anido e Pau Palacios, comentam os diversos regimes narrativos (a biografia, a narrativa ficcional, o documentário, a reportagem jornalística, a escrita da história) e imagéticos (o cinema mudo, os filmes dos tempos áureos de Hollywood, a TV dos EUA, o universo lúdico infanto-juvenil) com os quais lidamos no cotidiano. O agenciamento dessas narrativas e imagens, pelo procedimento da montagem, descontextualiza e recontextualiza o que mostra, provocando o olhar e o entendimento do espectador a rever tudo o que vê, a desconfiar das verdades construídas.
A proliferacão de pequenos detalhes técnicos do espetáculo, a quantidade de objetos e de imagens editadas, as numerosas tarefas que os artistas executam e a atmosfera de chiclete Bubble Boom: tudo isso funciona quase como artifício de distração. A peça é construída de maneira a dar a ilusão de que esses diversos dispositivos são a coisa em si, que trata-se apenas de uma dramaturgia de chistes pontuada pelo exibicionismo carismático de virtuosismos performativos e tecnológicos.
Até que as imagens reais da violência da polícia espanhola em atos de desapropriação imobiliária, em que pessoas reais são de fato expulsas à força de suas casas, com violência física perpetrada pelo estado, apontam rapidamente que, embora a peça tenha uma elaboração complexa de construção formal, o teatro que está se fazendo ali é um teatro que está no mundo. As questões da peça não se resumem aos seus próprios procedimentos. A breve duração da projeção dessas imagens e a escolha por colocá-las perto do final da peça são fatores determinantes para não torná-las explicativas. Ao mesmo tempo, elas redimensionam as imagens que vimos anteriormente e subvertem até mesmo o clima descontraído em que a peça enreda os espectadores.
Para encerrar, podemos dar mais um exemplo de como a montagem funciona como operação crítica e nos faz olhar com mais acuidade para as camadas de crueldade no que vemos todos os dias na TV. Não me refiro apenas às imagens literalmente violentas. A inserção de trechos do reality show Extreme Makeover – Reconstrução Total Home Edition (já houve uma versão do programa que reformava a aparência de seres humanos!) evidencia a violência perversa da imbecilização das pessoas, quando um programa criado para vender produtos de reforma, construção e decoração explora a miséria alheia ao forjar um espetáculo de idiotas, que vêm suas casas miseráveis se transformarem em show room de ambientes decorados como parques temáticos.
Com a performatividade festiva do teatro contemporâneo e o perspicaz agenciamento das imagens, BBBB é um comentário rascante e discretamente sombrio sobre o mundo em que vivemos e as ficções que inventam os nossos desejos.