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Formas para a transgressão e a reintegração

Crítica de Notas de Cocina, do grupo Teatro do Embuste, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

28 de dezembro de 2015

No acúmulo das cenas de “Notas da Cocina”, o grupo colombiano Teatro do Embuste segue linhas do texto do dramaturgo argentino Rodrigo García para percorrer alguns dos desvios do desejo numa sociedade de capitalismo tardio, cujo imperativo consumista, em tensão com a extrema desigualdade econômica, produz aspirações de ostentação para distrair do vazio da experiência cotidiana. Ícones mais ou menos decadentes dessa high society, como Eike Batista ou o restaurante Fasano, apontam para um modo de vida reconhecível no imaginário do brasileiro, arrolados num discurso cênico modalizado pelo cinismo.

A atitude de desprezo pelas convenções sociais e morais gera uma sequência desconcertante logo de início: a mãe que, para proteger a filha da mediocridade padronizadora do sistema de ensino, embebeda-a antes de ir à escola. A presença de uma criança como rastro do real em cena tensiona ainda mais uma construção ficcional que, em si, já é conflituosa pelo choque entre a razão crítica e o despautério. Esse impasse abre uma primeira indagação possível de ser formulada a partir do trabalho: qual a potência política do cinismo como crítica social?

Esta pergunta se reforça no contexto em que o espetáculo é apresentado no Brasil, integrando a programação da II Bienal Internacional de Teatro da USP, cuja curadoria propõe um olhar para dramaturgias transgressoras sob o mote “A Esquerda do Sol: poéticas e políticas Latino-Americanas”. E a ela não se pretende, nesta crítica, dar uma resposta conclusiva, senão ensaiar alguns apontamentos.

O cinismo seria uma distorção estilística correspondente, na linguagem, ao diagnóstico de uma distorção na forma de vida contemporânea em relação às expectativas sustentadas pelas normas sociais. Entre as muitas reflexões apresentadas por Vladmir Safatle no livro “Cinismo e Falência da Crítica”, consta a ideia de que o padrão de racionalidade de nossa sociedade, no atual estágio do capitalismo, seria o do cinismo. O modo cínico de operação estaria relacionado a uma sociedade em processo de “crise de legitimação”. “Para o cínico, não é apenas racional ser cínico, só é possível ser racional sendo cínico”, diz. Um ponto interessante da argumentação do autor é que, na chave cínica, não só o sistema de lei, mas também a própria transgressão, são anunciados como normativos.

Pensando isso em relação a “Notas de Cocina”, interessa observar as transgressões àquilo que se estaria criticando à primeira vista. Tal como o disparatado embebedar da criança contra o sistema de ensino, há o casal que desafia os salamaleques gastronômicos de um restaurante de luxo comendo, enquanto bebe a champagne mais cara da casa, uma porção de batatas fritas trazidas de algum boteco. Está clara a provocação contra ambições sociais que são como balões de ar, invólucros de pouco ou nada.

Então as transgressões recaem em outro extremo da estupidez (pelo vazio) da conduta humana. O cinismo seria esse lugar da falência da crítica? O espetáculo aponta para o insustentável desses desejos fúteis, debocha deles; ao mesmo tempo em que os absorve na ironia sobre a indignação, talvez ela mesma um modo de satisfação das angústias derivadas da falta de autenticidade, significado ou experiência que legitime nossos modos de viver.

O comercial da marca de jeans que se apropria de imagens e discursos de protesto para vender seu produto vem atestar que nada sobra como potência crítica. É uma posição indubitavelmente defensável, embora atinja o solo brasileiro justo no momento em que, ante uma hipocrisia generalizada, a potência crítica apareça rediviva pela força da mobilização política estudantil. Tempo e geografia estão sempre a interferir nos sentidos e afetos produzidos por um acontecimento teatral.

Há outro desdobramento para essa discussão, que surge da reflexão à luz da obra de Rodrigo García. Longe de querer atar um espetáculo ao texto do qual partiu, cabe pensar o que distintas escolhas no modo de apropriação geram em termos de efeito.

Em peças como “Gólgota Picnic”, apresentada no Brasil em ocasião do FIT-BH 2012 e da MITsp 2014, García concebe dramaturgias transgressoras dispostas a deslocar o espectador de sua zona de conforto e criar rupturas na percepção, desestabilizando sentidos, provocando reações físicas, sensoriais, emocionais, intelectuais. Isso se constrói numa intrincada rede de imagens e discursos que não convergem para um ponto pacífico, antes criam nódoas, furos, abalos na experiência de quem está na plateia e precisa redescobrir os modos de se relacionar com o que o palco lhe oferece. Determinante, para isso, tanto quanto essa forma polissêmica de tensão entre linguagens, é a postura dos performers, numa espécie de distância crítica em relação aos conteúdos expressos e ao público.

A criação do Teatro do Embuste dispensa o maior investimento em uma camada imagética e recorta o texto, concentrando a dramaturgia em cenas que apresentam situações de conflito. Estas são representadas pelos atores com um reforço na composição de personagens, o que se vê pelos figurinos, registros vocais e virtudes de interpretação distintas da fluidez performativa de encenações de García.

A opção do grupo colombiano é por um tratamento mais dramático, ainda que em sua forma expandida e fraturada, afinal, estão em cena elementos de uma gramática teatral contemporânea, como o vídeo e o skype, a irrupção do real nas participações da criança e de um cachorro (notadamente bem adestrado) e o trânsito dos espectadores por lugares de figurante ou testemunha. Disso resulta, talvez, uma postura menos transgressora, que, se não fura o tecido social do qual debocha, a seu modo esgarça-o, cria dobras, enquanto busca a adesão do público por meio da identificação, do gesto relacional e do humor.

 

Empreendedorismo Made in Cuba

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Cubalândia, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Conforme o próprio nome já sugere, o espetáculo Cubalândia, realizado pelo grupo cubano Teatro El Cervo Encantado, apresenta aos espectadores um curioso programa de turismo na terra de Fidel , chamando atenção às contradições de um país que, mesmo apontado por muitos como o último reduto anti-capitalista do mundo, progressivamente se converte em uma atraente mercadoria a ser consumida. Temos acesso, então, por meio da Cubalandia Excursiones, a uma nação gradativamente iniciada ao que se costuma chamar de ideologia liberal, testemunhando, a esse respeito, a disseminação de estratégias e práticas relacionadas ao empreendedorismo e à ampliação de supostos mercados consumidores.

É justamente como potenciais consumidores, aliás, que somos tratados ao longo de todo o espetáculo. Recebidos pela hiperativa e hipermaquiada agente turística Yara La China, conhecemos um amplo programa de turismo que envolve diferentes partes da ilha. Habana, Varadero, Viñales, Trinidad y Santiago de Cuba são alguns dos destinos oferecidos aos espectadores no decorrer de uma encenação bastante despojada, na qual as luzes da platéia estão permanentemente acesas e a cenografia – mínima – é armada diante do público.

Conduzida por uma profissional extremamente liberal que, sem qualquer tipo de pudor, coloca à venda o próprio país, tal qual suas paisagens e sua história peculiar, Cubalândia destaca o caráter predatório que recorrentemente caracteriza o turismo abaixo da linha do Equador. Tal predação, conforme percebemos no decorrer da montagem, estende-se desde o meio ambiente da ilha até a própria tradição cultural cubana, ali condensada em algumas faixas de reggaeton “tipo-exportação” que nossa entusiasmada anfitriã não se cansa de dançar, em breves interlúdios que separam as negociações com o público.

Aos poucos, no entanto, revela-se certa precariedade do programa oferecido ao público, ao mesmo tempo em que se reforça o lema “fazemos qualquer negócio” que parece lhe mover. É aí que Yara dá início a um quadro composto por negociações durante as quais sempre ressalta aos clientes a ideia de recuperar o dinheiro investido na viagem.

Percebemos, então, que, independentemente do destino, na Cubalândia Excursiones o turista é sempre tratado como empreendedor e a viagem, como investimento. E entre as táticas de capitalização recomendadas ao público, vale ressaltar, figuram a extração ilegal de minerais preciosos, corais raros e outros patrimônios do país, instantaneamente submetido, então, a ordem capitalista e exploradora que rege boa parte do mundo.

Considerando especificamente a sessão que gerou essa crítica, vale ressalvar que a intermediação das legendas durante as interações entre atriz e público parece consistir um desafio à apresentação da obra em países de língua não-espanhola, como o Brasil. Por conta dessa intermediação quase sempre necessária, comprometeu-se, em alguns momentos, a acelerada dinâmica imprimida em cena pela atriz, provocando certo desgaste em relação à repetição que caracteriza a estrutura dramatúrgica da peça.

Elemento central de uma obra na qual a convivialidade entre a personagem e o público constitui-se como um dos pilares da encenação, a personagem se mostra, logo de início, como uma carismática e confiante vendedora. Capaz de cativar a plateia ainda na entrada do teatro, ela rapidamente deixa ver o despojamento, a irreverência e a ironia que, entre outras qualidades, permeiam o trabalho. Como numa típica obra de Brecht, é ao público que Yara se dirige durante boa parte da peça, sendo brevemente interrompida, em algumas ocasiões, por chamadas telefônicas vindas de supostos colaboradores.

É durante uma dessas ligações, aliás, que o público toma consciência de que os pacotes turísticos oferecidos podem se mostrar não somente nocivo ao país, mas também aos próprios turistas, e a festiva fachada inicialmente criada pela personagem finalmente se esvai. Anunciada aos espectadores desde o início da obra, as contraditórias ofertas da Cubalandia Excursiones precisam, então, ser reconhecidas pela própria vendedora, gerando um saudável desvio em relação ao tom leve, cúmplice e bem-humorado que permeia o trabalho.

Desejos sem direção

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Crítica a partir do espetáculo Anatomia do Fauno, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Parece importante despir-se de eventuais preconceitos e julgamentos morais para assistir ao espetáculo Anatomia do Fauno, trabalho realizado pelo coletivo Teatro da Pomba Gira, de São Paulo, que traz como importante elemento inspirador o desregramento que permeia a vida e a obra do “mal-comportado” poeta francês Artur Rimbaud (1854-1891). Dedicada a reunir e converter em cena diferentes fisionomias do homoerotismo, a montagem praticamente dispensa a palavra e encontra na linguagem visual da performance o seu esteio, constituindo-se a partir de uma série de quadros ao mesmo tempo independentes e articulados, sobretudo quando consideramos o universo temático que igualmente os envolve.

Conduzida por mais de uma dezena de atores, a peça se insere em um amplo conjunto de espetáculos recentes que recusam moralismos sobre corpo e sexualidade, articulando-se em certo sentido, como uma resposta artística ao crescimento do conservadorismo no cenário sócio-político brasileiro. Em Anatomia do Fauno, no entanto, o que se experimenta é uma improvável combinação entre atmosferas míticas, sem tempo ou lugar, das quais o fauno mencionado no título rapidamente se apresenta como símbolo central e um dos eixos da peça, e contornos bastante concretos e essencialmente contemporâneos, reforçados, por exemplo, pelo uso de aparelhos e aplicativos eletrônicos em determinados momentos da encenação.

Imersos, logo de início, em uma espécie de “açougue-underground”, assistimos à chegada do fauno – meio homem, meio bicho – a uma cidade povoada por numerosos corpos masculinos. Somos convocados, então, a reconhecer em nós mesmos certa curiosidade sobre o corpo do outro, assim como sobre as possibilidades de encontro e troca entre esses corpos. Testemunhamos, então, a sucessivos embates que de um modo geral remetem a paixões intensas, violentas e fugazes, traduzidas em vigorosas relações de atração e repulsa estabelecidas entre os corpos que se movem diante de nós.

Desprovidos de personagens ou ainda de uma narrativa a ser contada, tais corpos se alinham em um estado performático e pouco humanizado, aparentemente mais propício a tensões do que propriamente a afetos – ainda que as fronteiras entre tais noções muitas vezes se borrem, claro. E mesmo que boa parte dessas acontecimentos culminem em encontros entre dois ou mais performers, o que se tem ali, ao menos num primeiro momento, são corpos autocentrados e guiados sobretudo pelos próprios desejos, mostrando-se pouco interessados na verticalização das relações estabelecidas com os outros corpos que encontram em cena.

Seja, portanto, a partir de metáforas ou situações bastante concretas, tais quais as que remetem aos aplicativos já mencionados, mas também a encontros fortuitos em banheiros públicos, por exemplo, o espetáculo não raro nos apresenta vestígios de um sistema social que impele à competição, à comparação e ao individualismo, deslocando, em certo sentido, a vigorosa ideia de obsolescência programada também ao campo dos desejos.

Se as relações entre os performers são quase sempre fugazes, o mesmo não acontece com boa parte dos quadros que estruturam o espetáculo, os quais frequentemente se estendem até o ponto de se esgotarem. Enquanto algumas vezes esse recurso denota justamente a perda – ou a falta – de sentido das ações trazidas à cena, em outros momentos, o que se verifica é um certo desgaste do recurso, provocando uma sensação de repetição ou permanência em um mesmo estado de coisas.

Desse modo, apesar da liberdade e da libertinagem que desde o início dão o tom do espetáculo, o caminho construído pela sucessão de quadros que integram Anatomia do Fauno talvez não encontre – e nem procure – a atmosfera de plenitude e esplendor um dia almejada por Rimbaud. Pelo contrário: mesmo quando se organizam em um grande grupo, substituindo os iniciais embates por composições coletivas situadas entre a festa, a orgia e o ritual, os múltiplos corpos que habitam a cena parecem ser colocados, ali, como equivalentes. Com isso, mesmo após a impactante entrada de um corpo feminino em cena, parece haver pouco espaço para a emergência de singularidades ou perspectivas que atribuam nuances mais complexas ao coletivo de corpos então formado.

Criação repleta de significados abertos, na qual mais se apresenta um contexto do que se entrega crítica ou reflexões sobre ele, Anatomia do Fauno deixa ao público o papel de experimentar, testemunhar ou julgar o que vê em cena. Enquanto alguns espectadores podem torcer o nariz para o excesso de “imoralidade” trazida ao palco, outros decerto saem ressentidos pelos raros momentos de efetiva presentificação do público, sobretudo quando consideramos a recorrente tensão estabelecida entre palco e plateia.

Sendo assim, àqueles minimamente familiarizados a práticas e imagens homoeróticas, o espetáculo termina por oferecer uma justaposição de acontecimentos visuais bastante potentes, mas pouco propícios a gerar deslocamentos de perspectiva em relação ao universo investigado. Àqueles menos familiarizados ao mesmo universo, o espetáculo pode, de fato, impressionar, mas corre o risco de apenas reiterar, sem acusar, defender ou adensar, características e comportamentos estereotípicos associados ao já bastante mal-compreendido e simplificado “universo gay”.

A dívida como horizonte, herança e história

Foto: Ana Laura Leardini
Foto: Ana Laura Leardini

Crítica a partir do espetáculo O que fazíamos em 1985?, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Há, decerto, uma lógica perversa que permeia a prática de empréstimos e a contração de dívidas, recurso tão familiar ao Estado quanto ao cidadão brasileiro e, quiçá, latino-americano. Filhos de nações que já nascem endividadas por um passado-presente de intensa exploração, há muito naturalizamos também a subordinação a modos de vida vindos de fora. Contraímos, então, por vias bastante distintas, dívidas que se referem tanto àquilo que éramos e tentamos deixar de ser, quanto aos modelos externos que tomamos como objetivos que jamais alcançaremos. E, enquanto permanece esse imperativo, parece não haver, de fato, muitos caminhos para que tais dívidas sejam superadas.

Pois é justamente a temática da dívida que serve como eixo do espetáculo O que fazíamos em 1985?, trabalho que se organiza em três episódios caracterizados por recursos e linguagens artísticas bastante distintos, ligados a pesquisas dos grupos [pH2| Estado de Teatro (Brasil), La Maldita Vanidad (Colômbia) e Lagartijas Tiradas al Sol (México). Formados, em sua maioria, por artistas nascidos ao longo dos anos 1980, os grupos não por acaso tomam as trajetórias de seus pais, mães e governantes – ou seja, quase sempre de integrantes de uma geração anterior – como universo de análise sobre a perpetuação de dívidas recentes que claramente ainda pairam sobre nós.

Somos apresentados, ao longo do espetáculo, a pais, mães e governantes, constantemente desafiados por economias em crise, Estados enfraquecidos e a permanente sombra do imperialismo estadunidense – ou, como é comum aos nossos dias, de um imperialismo internacional. Testemunhamos, assim, a momentos históricos e contextos sociais cujos complexos sentidos, se é que existem, até hoje nos demandam grandes esforços de reconstrução.

Atravessados por histórias que remetem a desastres políticos, econômicos e também naturais, os três episódios nos põem diante de desafios e soluções encontradas por esses países e seus povos no decorrer de caminhos marcados pelo desejo de galgar alguns degraus no que se costumava chamar de “ordem mundial”. Desafiados por processos tardios de industrialização e urbanização, assim como pela abertura econômica a produtos, mercados e eventos “internacionais”, os contextos apresentados pelos quadros de O que fazíamos em 1985? parecem trazer como traço comum, seja nos níveis pessoal ou nacional, constantes processos de readequação a relações de subordinação e colonização que se estendem às esferas econômica, cultural e comportamental.

Intitulado O Retrato da Mulher Endividada, o primeiro episódio é composto por um filme no qual imagens ficcionais ganham tratamento documental, reunindo mulheres que foram mães nos anos 1980 e que constroem, juntas, a história da personagem Helena Fracasso, uma espécie de síntese da experiência da dita classe média brasileira ante o contexto que sucedeu a redemocratização do país. Chama bastante atenção, nesse caso, a escolha de um ponto de vista feminino para tratar do tema, a partir de cômicas provocações sobre a tardia inserção da mulher no precário mercado de trabalho brasileiro, concomitantemente à aceleração do consumismo no país – tudo isso sob a onipresença da televisão e da publicidade entre os meios de (des)informação da população.

No segundo episódio, O Retrato do Homem Endividado, passamos da linguagem audiovisual a moldes bastante tradicionais do teatro, a partir de uma narrativa conduzida por três irmãos que se encontram após a morte do pai, o qual deixa-lhes como herança uma casa em ruínas e uma dívida difícil de se pagar. Aos poucos, no entanto, o contexto familiar é perturbado pela presença de uma vizinha rica, “americanizada” e bastante ambígua, responsável por cobrar dos irmãos certa dívida que não contraíram, mas, sim, lhes pertence. Também contribuem para a desestabilização da encenação recorrentes e impactantes aparições de um bombeiro que alerta tanto os atores quanto o público sobre uma iminente catástrofe de amplo significado.

Ainda que atravessadas por aviões, táxis e até mesmo uma curiosa e resistente tartaruga de estimação, a direção e a dramaturgia deste episódio parece apostar na imobilidade dos personagens – e da própria situação –  como questão a ser problematizada. Pressionados pelas catástrofes anunciadas por seus visitantes, assim como pela entrada de “duplos” que lhes servem como canais mais brutos de expressão, os três irmãos gradativamente deixam escapar traumas e revelam, entre outras coisas, certo complexo de inferioridade em relação a vizinhos de dentro e fora do país.

Deixando de lado a linguagem ficcional e as múltiplas metáforas presentes no quadro anterior, a sequência que encerra o espetáculo, intitulada O Retrato do País Endividado, recorre a uma linguagem bastante direta para estabelecer um interessante paralelo entre experiências de endividamento compartilhadas por Brasil e México durante os anos que precederam grandes eventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Frequentemente defendidos pela mídia e pelo Estado como signos de certa ascensão internacional, tais eventos são associados, em cena, a desastres naturais de incontestáveis consequências sociais.

Ao combinar elementos do teatro documentário e da performance, o quadro que encerra O que fazíamos em 1985? ganha força nas imagens e ações construídas diante do espectador. A construção textual, por outro lado, ainda parece carecer de um tratamento mais aprofundado em relação à questão do endividamento no contexto latino-americano. Organizada como uma sucessão de depoimentos, notícias e comentários sobre a história recente de Brasil e México, tal construção apoia-se – sobretudo no caso brasileiro – em informações e reflexões já conhecidas por boa parte do público, assim como parece perder contundência ao simplesmente citar recentes acontecimentos do noticiário nacional, sem indicar ou problematizar, de fato, suas relações com a relevante reflexão que serve como eixo ao ambicioso projeto artístico que constitui este trabalho.

Em defesa da desordem

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Crítica a partir do espetáculo Stereo Franz, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Logo de início, já se percebe que há algo de estranho na banda que recebe o público do espetáculo Stereo Franz, realizado pela companhia [pH2] Estado de Teatro, de São Paulo. Sob o comando de um virtuoso vocalista com trajes de açougueiro, a banda assume o palco do improvisado bar onde se organizam os espectadores, criando uma atmosfera de tensa empatia que contamina os primeiros momentos do espetáculo. Enquanto isso, Franz e Maria, personagens aos quais ainda seremos apresentados, cruzam por várias vezes o espaço, dançando e beijando-se como se fossem pessoas comuns, como se fossem apenas mais dois freqüentadores daquele bar. Mas eles não são.

Inspirada em Woyzeck, obra mais reverenciada do dramaturgo alemão George Buchner, a montagem recria à própria maneira a história de seu personagem-título – aqui Franz – e sua esposa, chamando atenção à loucura e à violência que surgem a partir de quadros sociais marcados por degradação, precariedade e subordinação aos mandos e desmandos do outro. Ainda que tal situação de subordinação fique clara pelos constantes chamados – prontamente atendidos – que ambos recebem de seus “superiores”, rapidamente se vê Franz quanto Marie, sua esposa, apresentam alguns desvios.

Enquanto ele enxerga e fala demais, por vezes tomando para si o sofrimento causado por boa parte das opressões da história e do mundo, Marie não consegue parar de se mexer, como se de fato já não coubesse no estreito lugar social que lhe parece reservado. Em permanente trânsito entre o bar onde estamos e o espaço externo ao teatro, o qual acessamos pela porta de entrada, quase sempre aberta, e também por imagens geradas por câmeras instaladas na área externa e exibidas em televisores instalados dentro do bar, como parte da cenografia da montagem.

A partir desse jogo de entrar e sair, de ocupar o campo e o extracampo, constituem-se dois universos ao mesmo tempo conectados e bastante distintos, marcados, respectivamente, por sucessivos monólogos dirigidos ao público e ações performáticas cuja potência se apóia, sobretudo, em aspectos visuais e composições entre os corpos dos atores e os diferentes espaços que integram a área externa. De um lado, o bar surge como uma arena delirante, na qual somos constantemente atravessados por relatos e reflexões em que ciência, misticismo e invenção se misturam de modo perturbador. De outro, a área externa serve como mecanismo de inserção das personagens em um contexto mais concreto de existência, reforçado pela presença de um lixeiro que, em meio às próprias atividades, vez ou outra faz companhia a Franz e Marie.

Trazendo os olhos e a língua como recorrentes órgãos-metáforas que remetem às capacidades de enxergar a realidade e de se expressar sobre ela, Stereo Franz parece defender a consciência e a voz como importantes ferramentas de transformação, ainda que, no fim das contas, o desenrolar dos acontecimentos parece deixar pouca esperança em relação à possibilidade de mudança.

Gradativamente, Franz, Marie e também o lixeiro rebelam-se, cada um ao próprio modo, em relação a uma realidade cujo horizonte de aspirações lhes parece bastante restrito. Os esvaziados – e por vezes cômicos – discursos conduzidos pelo vocalista-cientista-açougueiro e a tecladista-vidente-astróloga passam, então, a conviver com recorrentes questionamentos e reflexões de Franz acerca de vidas que, tal qual sua própria existência, parecem valer muito pouco.

“Por que Deus não apaga o Sol com um sopro, para que tudo gire na desordem?”, pergunta Franz, à certa altura, convertendo em voz a recém-tomada consciência sobre uma ordem social que pouco o favorece. “Rodem, girem, rodem”, repete insistentemente, na sequência, lançando ao público um apelo sobre a importância de se mudar a ordem das coisas, de se movimentar (como Marie?), de não se acomodar em um sistema social tão injusto quanto cruel, do qual a fuga parece sempre mais possível do que a luta pela transformação.

Por vezes trazendo à cena gritos e gestos transbordantes, a montagem parece trazer o direito à voz como uma de suas reivindicações centrais. Ao explorar de modo quase permanente a tênue fronteira entre a consciência e o delírio, entre a subordinação e a proposição de novas ordens, Stereo Franz nos convoca a pensar a institucionalização de privilégios, a naturalização da desigualdade e, em momento pertinente, a eleição de corpos e vidas que valem menos do que outros – “muertos que no hacen ruído”.

É preciso estar atento e forte

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo El Rumor del Incendio, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

A concentração do poder em poucas mãos e as variadas táticas desenvolvidas, ao longo da história, para redistribuí-lo servem como eixo ao espetáculo El Rumor do Incêndio, realizado pelo grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol e apresentado na II Bienal Internacional de Teatro da USP. Tomando alguns movimentos armados do México dos anos 1960 e 1970 como contexto a ser compartilhado e examinado diante do público, a montagem passa pelo Brasil em momento oportuno, quando, já há algum tempo, ruas e – mais recentemente – escolas se tornaram arenas de contestação em relação aos abusos de poder que marcam nossa realidade política. Ao longo dessa revisão por aproximadamente duas décadas de história mexicana, El Rumor del Incêndio problematiza questões como a participação da juventude na luta por mudanças e o uso de violência em ações anti-Estado, assim como as correntes noções de democracia e luta de classes.

“A soberania nacional reside essencial e originalmente no povo. Todo poder público emana do povo e se institui para benefício dele. O povo tem, a qualquer momento, o direito inalienável de alterar ou modificar a forma de seu governo”. Declamado logo nos primeiros instantes do espetáculo, o – utópico? – Artigo 39 da Constituição mexicana é apresentado como uma espécie de estopim da montagem, deixando ver, logo de cara, algumas das numerosas contradições que permeiam a tradução de instrumentos legislativos em efetiva prática social.

Para tanto, o grupo desenvolveu uma dramaturgia ao mesmo tempo fragmentada e claramente guiada por uma personagem central: a antropóloga e guerrilheira Margarita Urias Hermosillo, nascida em 1944. Integrante da geração anterior à dos três atores que conduzem a cena, Margarita viveu intensamente os conturbados anos 1960 e 1970 e nos apresenta, a partir de uma trajetória que combina pesquisa, ativismo e sucessivos afetos, facetas de uma realidade política que, não por acaso, também nos revela muito sobre outros contextos latino-americanos. A essa trajetória, vez ou outra permeada por acontecimentos íntimos que ultrapassam o dito campo político, são combinados importantes capítulos e personagens da história mexicana, criando eficientes contrapontos que humanizam experiências vividas somente a distância, e, quase sempre, a partir de mediações, por atores e espectadores.

Faz bastante sentido, então, que vários desses fatos históricos sejam trazidos ao público a partir de cenas nas quais os atores manipulam numerosos brinquedos e miniaturas, projetando suas imagens em tempo real sobre uma tela instalada no fundo do palco. Se tal estratégia, por um lado, reforça a distância entre as histórias ali contadas e a experiência daqueles que as levam à cena, por outro, também remetem a governantes que tratam seus povos e territórios como se, em um permanente exercício de manipulação, apenas praticassem um violento jogo de tabuleiro cujas injustas regras há muito já se conhece.

Tal escolha também se articula à importância que a juventude ganha em El Rumor do Incêndio. Presa pelo Estado mexicano antes de completar 25 anos, Margarita é apenas uma entre os vários jovens que, em diversas partes do mundo, afirmam a possibilidade de mudança ao dedicar parte considerável de suas existências à luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Não é de se estranhar, portanto, que as máscaras utilizadas pelos atores em outros momentos do espetáculo remetam a rostos masculinos e envelhecidos, como aqueles que há anos habitam o Congresso brasileiro. Seja no México ou no Brasil, afinal, a falta de representatividade parece apresentar-se como raiz da falsa democracia que experimentamos, constituindo-se como recorrente empecilho à construção de sistemas políticos nos quais o povo, de fato, tenha o poder nas próprias mãos. “Quem são esses homens que nos governam? Por que deixamos que nos governem?”, pergunta a atriz e diretora Luisa Pardo, em um dos momentos mais contundentes do trabalho.

Enquanto brinquedos, miniaturas e risíveis máscaras de plástico emprestam certo aspecto lúdico à encenação, numerosos documentos e depoimentos que ocupam, em outros instantes, a mesma tela de projeção afirmam o peso da tradição documental dentro da montagem e do próprio trabalho realizado pelo grupo, que somente neste ano trouxe também ao Brasil os espetáculos Monserrat e Derretiré con un Cerillo la Nieve de un Volcán – ambos relacionados ao que se chama de teatro documentário.

Referindo-se a contextos de franca desigualdade política, geralmente marcados pelo monopólio do uso da força pelo Estado, o espetáculo problematiza ainda o papel da violência durante ações revolucionárias. Mesmo que ofereça mais questionamentos do que respostas a esse respeito, El Rumor do Incêndio nos provoca a pensar sobre certo senso comum que aceita e muitas vezes justifica a violência do Estado, ao mesmo tempo em que demoniza qualquer ação “não pacífica” organizada por aqueles que não detêm o poder.

Aparentemente acalmadas ao longo das décadas que marcaram a falaciosa transição entre regimes ditatoriais e democráticos, dada a violência estrutural da qual todos somos vítimas, cúmplices e testemunhas, tais reivindicações têm ganhado, nos últimos anos, um fôlego novo, frequentemente embalado por jovens que já não se acomodam sob estruturas e arranjos sociais cada vez mais arcaicos. Se as histórias de luta dos anos 1960 e 1970 muitas vezes nos conduzem à imagem de uma juventude que falhou por não concluir a revolução almejada e alcançar suas reivindicações, resta-nos saber que histórias serão contadas sobre aqueles que, sobretudo desde 2011, devolveram ao debate público uma luta contínua e multifocal pelo respeito aos direitos humanos e civis reservados a cada um de nós.