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Corpos de intervalo

Foto: Fernanda Pessoa
Foto: Fernanda Pessoa

Crítica do espetáculo Carnes Tolendas: Retrato Escénico de un Travesti, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

6 de agosto de 2014

Ao explorar cenicamente uma condição de intervalo entre ser homem e mulher, a atriz Camila Sosa Villada, potencializa a poética do seu espetáculo confessional Carnes Tolendas: Retrato Escénico de un Travesti com trechos da vida e obra de Federico Garcia Lorca. No início da encenação, uma figura toca um tango. Uma outra se multiplica em várias identidades, mãe, pai, facetas da sociedade e o filho travesti. A tocadora de acordeon, que também é a diretora María Palacios, sai. A atriz Camila Sosa Villada se debulha física e emocionalmente e se mistura aos personagens lorquianos.

A atriz trouxe das experiências do passado o material para a construção desse documentário cênico. Mas esses fatos reais recebem camadas de ficção na cena. Seja pela inclusão do universo do poeta e dramaturgo espanhol; ou pelo distanciamento temporal dos episódios, que faz um “ajuste” nessa memória.

É uma narrativa fragmentada em várias vozes. Mas tendo como posto de enunciação a protagonista. Camila transita entre personagens com o seu gestual e o registro vocal, que delimita cada um. São cenas fortes e palavras duras, repressões e ofensas da sociedade. “Eu sangrei em beijos”; “Sois a essência da merda em pó”; “Nesta casa eu não quero travestis”; “Lubrificador transsexual sujo”.

A família rejeita a personagem, e a atriz expõe esses confrontos com as frases ditas como navalhas, para ferir. É uma performance dinâmica e com poucos gestos a intérprete se transforma no pai violento, na mãe submissa, nos exploradores sexuais.

Seu cavalo é bem treinado e exibe excelente técnica teatral. E vai se transformando. Se distanciado daquele ambiente caseiro, para um mundo nada acolhedor.

A atriz leva ao palco roupas do menino que foi: “Faz muito tempo eu estive dentro destas roupas”, constata num melancólico suspiro sobre a impossibilidade de ter filhos e numa alusão também a Yerma, de Lorca.

O figurino e o cenário são minimalistas. O que dá ainda mais destaque às palavras, aos gestos, à atuação.

O Grupo Banquete, de Córdoba, faz uma procissão dos deuses destronados. A carnavalização da cena para sobreviver ao insulamento, aos amores clandestinos, ao autoritarismo. Na concepção de Bakhtin, a carnavalização possibilita a inversão, com os marginalizados se apoderando do centro simbólico.

Essa subversão em Carnes Tolendas vem em torrentes de ironia, apontada para uma sociedade que nega, renega, despreza, diminui, desqualifica. Ao se maquiar, se travestir, ela fala: “Eu tenho nojo dos gordos. Eu tenho nojo dos judeus. Eu tenho nojo das pessoas que limpam os vidros e os sinais. Eu tenho nojo da empregada que limpa a minha casa. Eu tenho nojo dos meninos com síndrome de Down. Eu tenho nojo das prostitutas. Eu tenho nojo dos drogados. Eu tenho nojo dos ladrões”, e conclui dizendo que tem nojo de todos e de cada um da plateia. O público aplaude.

Carnes Tolendas é um espetáculo com dramaturgias textual e cênica fortes, que articula questões importantes da contemporaneidade, com uma poética que destaca as sutilezas humanas e suas frágeis condições. Para fechar sua atuação esmerada, a atriz se expõe em nu artístico num flash, numa imagem fugidia.

Transfiguração da carne

Crítica da peça Carnes tolendas, do Grupo Banquete Escénico, de Córdoba

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Destas Carnes tolendas, poderíamos fazer diversos cortes. O trabalho do grupo de Córdoba oferece, como anuncia seu nome, um banquete de possibilidades para a cena. Como numa refeição completa, a peça oferece entrada, salada, diferentes pratos, com temperos variados, sobremesa e aperitivo(s). A dramaturgia – assinada pela diretora María Palacios e pela atriz Camila Sosa Villada – é heteropoética, ou seja, as regras mudam a cada cena, que é ora depoimento, ora citação, ora comentário, deslizando do mimético ao performativo numa dinâmica que de tempos em tempos vai renovando o pacto com o espectador.

Foto: Juan Manuel Alonso.
Foto: Juan Manuel Alonso.

A imagem da atriz, seu corpo, sua voz e sua presença nos convidam a entender o seu organismo complexo, que supera a oposição entre homem e mulher e constrói um lugar de beleza da convivência entre masculino e feminino. A dimensão confessional do trabalho aparece tanto no corpo de Camila quanto na construção do texto e na encenação. Dos poucos objetos utilizados na cena, alguns fazem o papel de ponte com o real, são vestígios da história pessoal da atriz. E o desenho do seu corpo na visualidade da cena remete às mudanças que ela propôs a si mesma no processo de travestimento: ela se contorce, se provoca o desequilíbrio, se revira como se procurasse a identidade do lado do avesso.

Mas o recorte específico que proponho aqui, rapidamente, é a relação criada com os textos de Federico García Lorca. Alguns trechos de peças do poeta e dramaturgo espanhol são citados no espetáculo. As mulheres de Lorca são colocadas em situação de espelhamento com a condição complexa do corpo de Camila. A maternidade, tomada pela sociedade em que vivemos como o alfa e o ômega da realização de ser mulher, é uma impossibilidade para personagens com Yerma e D.Rosita, assim como para Camila. E esse “assim como” é um certo nó.

O discurso de Yerma sobre seu ventre seco ganha contornos angulosos na voz de Camila. A ideia de esterilidade é aqui subvertida, transfigurada. Por transfiguração entendo uma alteração de estatuto, uma passagem incomum – lembrando que o termo é usado tanto no contexto religioso (a Transfiguração de Cristo) quanto na teoria da história da arte moderna e contemporânea (a transfiguração do lugar comum no pensamento de Arthur Danto). O corpo travesti (e em uma medida mais profunda, transexual) faz uma revolução sobre si, explode um novo gênero na própria carne e dá à luz uma mulher feita. Uma transfiguração.

E todo esse processo traz em si uma teatralidade particular. Carnes tolendas me parece falar dessa teatralidade de ser homem, de ser mulher e de estar em um mundo que insiste em dar as regras de uma dramaturgia clássica. O travestimento tem uma teatralidade na vida. Colocá-lo em cena, como questão e como condição, dobra a teatralidade do corpo e desdobra nosso entendimento do mundo.