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Entre projeto e realização

Crítica de Projeto 85 – A dívida em três episódios, espetáculo idealizado pelos grupos [pH2]: estado de teatro,  La Maldita Vanidad, e Lagartijas Tiradas al Sol.

II Bienal de Teatro da USP

Projeto 85 – A dívida em três episódios é o resultado do projeto idealizado pelo grupo [pH2]: estado de teatro, de São Paulo, com a companhia La Maldita Vanidad, da Colômbia, e o Lagartijas Tiradas al Sol, do México. O espetáculo apresentado no Tusp, por ocasião da II Bienal de Teatro da USP, se divide em três partes: um filme e duas peças. O projeto é muito interessante, a apresentação do espetáculo no catálogo da Bienal cria grandes expectativas – para o bem e para o mal. Movidos por uma questão geracional, “o que fazíamos em 1985?”, os grupos deram início a esse projeto que também pretende colocar em jogo o ponto de vista de jovens criadores da América Latina, aproximando os três países com grupos cujos integrantes nasceram nos anos 1980.

Por um lado, sabemos que há um desejo por parte dos artistas de realizar um trabalho significativo, comprometido, que demanda pesquisa, reflexão e esforço de realização. Por outro lado, ficamos esperando que o trabalho resultante dê conta das expectativas que suscita, o que só acontece em parte. É preciso um tempo de adequação dessas expectativas ao que efetivamente se dá cena.

O primeiro episódio é um filme, O rosto da mulher endividada, cuja ficha técnica apresenta apenas nomes do grupo paulista. Tendo visto outro trabalho do grupo no dia anterior à apresentação de Projeto 85, identifiquei no filme o gosto pela opacidade que aparece emStereo Franz. Partindo da abertura do processo democrático no Brasil, o filme começa com imagens jornalísticas do povo nas ruas na eleição de Tancredo Neves, em resolução de VHS, o que dá o tom da visualidade das imagens que se seguem, como dos rostos das mães dos artistas do grupo em fotos de documento, cópias de passaporte, bem como dos vídeos gravados.

O segundo episódio, Endividamento privado, criação do grupo brasileiro com o grupo La Maldita Vanidad, é uma peça em que reconhecemos elementos do drama, com a apresentação de uma narrativa com diálogos e personagens. Enquanto a erupção de um vulcão ameaça a vida de todos, três irmãos discutem exaustivamente o destino da casa do pai, sem conseguir aceitar que o legado deixado para eles é feito apenas de dívidas – financeiras e emocionais. A narrativa começa de um modo mais ou menos realista, com os atores do grupo colombiano, mas logo se parte, quando os atores do [pH2] entram fazendo duplos daqueles personagens e as cenas começam a se repetir numa estrutura darmatúrgica espiralada. A relação com o espectador muda quando entra Fernando Arroyave, que faz o papel de um bombeiro que tenta fazer com que a família deixe a casa para salvar suas vidas. Suas falas também são endereçadas a nós, espectadores, embora não haja expectativa de reação concreta da nossa parte. A quebra, feita com delicadeza, sem alarde, anuncia a crescente desconstrução. Em alguns momentos, as atrizes que fazem a filha/enfermeira também olham na direção da plateia, mas isso acontece apenas como uma marcação de movimento, sem estabelecer um contato visual.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Tendo visto outras peças do grupo de Bogotá este ano na MITsp e, como disse antes, a do [pH2] na programação da Bienal, é possível perceber que houve uma tentativa de somar as caracteríticas de ambos. A companhia La Maldita Vanidad entra construindo uma narrativa, conferindo identidade aos personagens, e o [ph2] entra para desconstruir o aparente realismo. As soluções dramatúrgicas são interessantes e o elenco colombiano consegue estruturar as atuações da construção à problematização. Mas o acontecimento fica prejudicado pelas atuações dos integrantes do grupo paulista, que parece não se encaixar bem naquele contexto. As imagens de arquivo da erupção do vulcão em Armero em novembro em 1985, que encerram o episódio através da TV que faz parte do cenário, implodem o impasse familiar com uma catástrofe natural inexorável. A dramaturgia, ponto forte da cena, fica um pouco ofuscada pela falta de uma mão firme da direção com relação ao trabalho dos atores. É possivel identificar o projeto da encenação, a proposta artística por trás da cena, mas a cena em si ainda precisa de trabalho para acontecer com a potência que promete.

Já a terceira parte, Endividamento público, é uma peça com traços épicos e documentais, com recursos de audiovisual, criada pela companhia paulista e pelo Lagartijas Tiradas al Sol. A dramaturgia tece uma relação entre fatos históricos do México e do Brasil, tomando como acontecimentos-chave o terremoto de 1985, as Olimpíadas da Cidade do México em 1968 e a que vai acontecer no Rio de Janeiro em 2016. A combinação de textos e imagens parece mais elaborada no começo da peça. A produção visual dos destroços do terremoto é ótima, mesmo sendo um pouco cansativa. O problema é que depois a peça se esvazia. O final deixa ver certa ingenuidade, que geralmente aparece quando se quer falar do momento político presente em tom de denúncia. A falta de distanciamento crítico e o pathos com que o material é trabalhado acabam boicotando um pouco o rigor de elaboração poética.

O espetáculo fica prejudicado com a falta de uma dedicação sobre as atuações, por conta de limitações técnicas básicas como a atitude do corpo, a elaboração da emissão vocal, a articulação de sentidos na forma da fala de alguns atores e atrizes. As ideias aparecem mais no plano intelectual. As intensidades aparecem do pensamento para a fala – mas é uma fala sem tônus, muitas vezes trabalhada só no volume – com exceções, naturalmente. Gabino Rodriguez e Maria Adelaida Palacio, por exemplo, atuam com o corpo inteiro, integrado ao pensamento e à proposta estética de cada trabalho.

A abordagem da história pela ideia da dívida é bem pertinente à reflexão que essa geração – assim como a minha, dos nascidos nos anos 1970 – faz sobre os acontecimentos políticos e econômicos das últimas décadas na América Latina. Sentimos as perdas em setores muito básicos das nossas vidas, como o acesso à educação e o pensamento mesmo que rege as escolhas políticas feitas de cima para baixo nesse setor. Vem à mente a ideia de dívida no sentido amplo, como da dívida com os mortos – do vulcão na Colômbia, do terremoto no México, ou da construção de Brasília, realizada sobre os cadáveres dos operários mortos em acidentes de trabalho que nunca foram retirados e nomeados, e que não constam na falsa história gloriosa de ordem e progresso sem amor. A dívida com a condição opressora sobre o gênero feminino, com as narrativas dos anônimos, com a necessidade de fazer uma história a contrapelo, aparecem nesse importante projeto artístico.

Teatro historiográfico do presente

Crítica da peça O rumor do incêndio, do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol

A primeira coisa que me chama a atenção em O rumor do incêndio, do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol, que se apresenta neste novembro de 2015 na II Bienal de Teatro da USP, é a ideia de um projeto artístico. Pode parecer uma coisa óbvia, que todo espetáculo teatral é um projeto artístico, mas não é bem assim. E quando falo em projeto artístico nesse caso específico não me refiro a um projeto de investigação formal, de pesquisa de linguagem, das poéticas do teatro, suas especificidades ou as possibilidades de criação interdisciplinar (que não deixa de ser uma especificidade do teatro). Me refiro a uma motivação que não se restringe às formas – embora não as deixe de lado. Não se trata simplesmente de entender o trabalho como uma espécie de teatro político, categoria carregada de diversos preconceitos e formas envelhecidas. Embora o conteúdo seja declaradamente político no sentido mais imediato da palavra (aquele que diz respeito a golpes, partidos, revoluções, guerrilhas, eleições, etc) e as formas do teatro documentário sejam características de um teatro político, me parece que O rumor do incêndio demanda um outro olhar, que ainda não sabemos qual é. O que é o teatro político do nosso tempo?

Movidos pelo pensamento crítico sobre o seu passado histórico, o questionamento, dirigido a si, sobre o presente que parece inerte e acreditando em perspectivas interessantes para o futuro, ou seja, sem idealizações, culpas, nostalgias e, principalmente, sem niilismo, o grupo criou uma peça que narra, com diferentes pontos de vista, um recorte da história do México: os anos 1960 e 1970.

O projeto artístico de que falo é um projeto que inclui o fazer teatral e o estar no mundo – ou melhor, o fazer teatral como um estar no mundo, consciente da sua historicidade. O fato mesmo de que a peça é uma espécie de teatro historiográfico nos faz pensar sobre as formas da história, não apenas sobre as suas narrativas – debate comumente restrito aos historiadores e teóricos da disciplina. Pensando em O rumor do incêndio, bem como em Derretiré con un cerillo la nieve de un volcán, outra peça do mesmo grupo sobre a qual tive oportunidade de escrever em outra ocasião, e espetáculos bem diferentes como Galvarino, do grupo chileno Teatro Kimen, Mi vida después, de Lola Arias, Guerrilheiras, projeto da atriz carioca Gabriela Carneiro da Cunha e Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas, de Joana Craveiro, de Portugal, tenho o palpite de que o teatro documentário contemporâneo está a fim de repensar a escrita da história. E não me parece forçado dizer que há um protagonismo feminino nessas iniciativas. A história oficial, especialmente a história política, a que mais chega ao senso comum, é uma história escrita por homens sobre homens em um mundo dos homens. Até agora.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

O rumor do incêndio coloca duas narrativas em paralelo. Uma delas é a história dos acontecimentos tidos como mais importantes, como os atos das instâncias de governo, as batalhas da luta armada, os números, as datas e as narrativas que podem ser comprovadas com documentos, matérias em jornais e fotos oficias. Esse tipo de narrativa histórica é sempre tomada como fiel à realidade – mesmo que saibamos que a história oficial dos países da América Latina é feita de mentiras, ocultamentos, adulterações. A peça apresenta essas narrativas em diversos momentos a partir de maquetes e soldados de brinquedo, posicionados em uma bancada comprida e filmados ao vivo pelos atores, enquanto as imagens geradas são projetadas em um telão. As imagens de guerra que conhecemos são imagens cinematográficas, extremamente espetacularizadas, ou televisivas, com os enquadramentos dados pelas regras do jornalismo midiático, que seleciona o que podemos e o que não podemos ver e como as imagens devem ser vistas. A peça faz um paralelo entre esses mecanismos e uma ideia comum de historiografia, linear, plana e sem lacunas como a bancada usada como suporte para as encenações com as maquetes.

A outra é da ordem da micro-história e de natureza biográfica: a história de Margarita Urías Hermosillo, guerrilheira que passou alguns anos na prisão e, depois disso, dedicou-se a outros fazeres: a antropologia, os amores, os filhos. As imagens que comprovam a sua existência não são apenas seus documentos, mas fotos cotidianas, além de relatos de quem a conheceu e conviveu com ela. O modo de apresentação da sua história não é como aquela narrativa filmada na bancada linear. Sua história é dramatizada. Os atores Francisco Barreiro e Gabino Rodríguez e a atriz Luisa Pardo encenam momentos da sua vida. Luisa também faz a personagem Margarita falando na primeira pessoa. Vemos então a dimensão de liberdade criativa possível para narrar a vida de uma pessoa real, que não é um personagem histórico, no sentido da história política oficial. Margarita seria uma anônima da história do México. O elemento cenográfico mais usado nessa dramatização da vida de Margarita é uma mesa, que dá a dimensão de uma história vivida em casa. Soma-se a isso o recurso de fazer a personagem falar na primeira pessoa, o que dá uma dimensão humana e ressalta o quanto o processo de ficcionalização é intrínseco à escrita da história, mesmo quando não é evidente.

A cenografia é bem determinante. Todo os elementos usados na cena estão dispostos no cenário. Tudo é, por assim dizer, útil. Mas há também uma artificialidade declarada, evidente no piso de grama sintética e nas plantas artificiais penduradas ao fundo do palco. É como se a cenografia quisesse evidenciar a artificialidade mesma de falar da luta armada no campo de décadas atrás, desde um ponto de vista urbano contemporâneo.

De modo geral, costumamos pensar o drama como forma de discutir os problemas do núcleo familiar, de ordem ética e moral, e o teatro épico como meio de propor questões coletivas, de ordem política. A peça do Lagartijas nos apresenta um épico que também é familiar, bem como uma história familiar que também é política, o que fica ainda mais claro para o espectador nos últimos minutos do espetáculo. A ideia de conferir humanidade à narrativa histórica pode ser um meio de torná-la mais próxima, para podermos olhar para o passado como algo que realmente faz parte do presente – o que todos sabemos, mas às vezes nos esquecemos.

A pergunta central do projeto como um todo é anterior às questões da cena e as ultrapassa, mas é o que finca o espetáculo no chão do presente. Se as gerações que nos sucedem quiserem falar de nós, do que fizemos quando jovens, elas falariam de quê? A pergunta nos interpela, nos chama para a conversa e nos coloca em cheque, mas o faz sem aquela empáfia de teatro político velho em que os artistas acham que têm que despertar os espectadores do seu sono de alienação. Em O rumor do incêndio, estamos todos no mesmo lugar, em uma conversa entre iguais. Nenhum de nós sabe o que deve fazer pelo futuro, nem o que deveria estar fazendo no presente. Mas a peça nos convida a abordar o problema por outros ângulos, fazendo do teatro épico, político, documental e historiográfico um lugar de pensamento com afeto.