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Quase nada é muita coisa

Crítica da peça Muito barulho por quase nada, do Grupo Clowns de Shakespeare

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Abrindo os trabalhos da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, realizada pela Cooperativa Paulista de Teatro, a peça Muito barulho por quase nada, com o Grupo Clowns de Shakespeare, foi apresentada no Centro Cultural São Paulo. Com direção de Fernando Yamamoto e Eduardo Moreira e elenco formado por Camille Carvalho, Dudu Galvão, João Ricardo Aguiar, Joel Monteiro, Marco França, Paula Queiroz e Renata Kaiser, o grupo coloca em cena sua leitura da peça de Shakespeare, um trabalho de tradução no sentido amplo.

Fiel à narrativa e ao tom, a adaptação proposta se beneficia de cortes de trechos falados, bem como de alguns personagens e situações, para oferecer uma versão própria do extenso material dramatúrgico original. Tradução, adaptação, versão, leitura, encenação: do que se trata? Poderíamos estabelecer definições diferenciadas para cada uma dessas situações, do ponto de vista técnico, mas o que me parece interessante nesse trabalho do Clowns, no que diz respeito a uma análise crítica, é o trabalho de apropriação de um conteúdo canônico com uma consequente criação original.

Foto: Rafael Telles.
Foto: Rafael Telles.

De modo geral, é possível dizer que toda peça que se constitui pela montagem de um texto pré-existente tem a sua medida de tradução. O trabalho de encenação pode ser pensado como um trabalho de tradução – de linguagens, não necessariamente de línguas. E textos canônicos de teatro demandam novas encenações na mesma medida em que textos canônicos de literatura demandam novas traduções. Mas nem toda encenação – assim como nem toda tradução – dá o pulo do gato: apropriar-se ao ponto de ser um outro original. A proposta desse texto é tentar ver a montagem em questão nesse caminho.

O “quase” inserido no título conhecido em português (Muito barulho por nada) dá a dica de que há algum desvio. E esse algum desvio pode sinalizar o lugar de descolamento do cânone – que é justamente o salto de infidelidade que faz a volta, que faz a tradução/adaptação/encenação ser fiel justamente por sua relação de independência. E esse salto só é viável porque há um respaldo de pesquisa e de conhecimento prático, de familiaridade com o legado shakespeareano que, não à toa, nomeia o grupo. No que diz respeito à originalidade, é visível que o grupo tem uma linguagem própria na qual pode inscrever a sua dramaturgia: o chão a partir do qual é possível levantar voo.

O que vemos e ouvimos neste Muito barulho por quase nada é um Shakespeare popular, com espaço para as idiossincrasias dos artistas criadores e referências sutis ao momento da apresentação, uma encenação que finca suas bases na comunicabilidade imediata entre ator e espectador, contando com o lirismo e a descontração dos números musicais. Eles estão à vontade, como se Shakespeare não fosse um autor canônico, mas um lugar que eles frequentam, ou a cidade onde nasceram. São os clowns – ou clóvnis – que moram em Shakespeare, ou que vieram de lá.

Ah! que dia mais feliz… com Clowns de Shakespeare

Foto: Ivana Moura
Foto: Ivana Moura

Crítica do espetáculo Muito Barulho Por Quase Nada, do grupo Clowns de Shakespeare, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

2 de agosto de 2014

A IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo (da Cooperativa Paulista de Teatro), começou festiva, com doses de fina ironia sobre as fraquezas humanas (que são muitas e risíveis) e a busca constante pela experiência do amor. Com duas sessões no Teatro Jardel Filho (Centro Cultural São Paulo) o grupo Clowns de Shakespeare apresentou o espetáculo Muito Barulho Por Quase Nada, adaptação da obra do bardo inglês, com temperos potiguar e mineiro, dos diretores Fernando Yamamoto (integrante dos Clowns), e Eduardo Moreira, um dos fundadores do Grupo Galpão, de Belo Horizonte.

Muito barulho por quase nada é uma encenação do repertório do grupo, erguida em 2003, quando o coletivo completou 10 anos de atividades. Os Clowns tiraram a encenação da cartola, na passagem dos 20 anos. E o que é melhor, com toda a vivência de anos de palco, resultado do confronto e cumplicidade com públicos diversos; com a lapidação do trabalho de corpo e voz do conjunto rumo a uma comédia popular. Isso dá mais graça e leveza ao jogo.

O elenco se entrega a essa brincadeira com alegria e domínio cênico. O time de atores lança mão de muitas sutilezas dos personagens para arrancar o riso dorminhoco de dentro de cada um. Como nos espetáculos populares do Nordeste do Brasil, a montagem está repleta de riqueza nas minúcias, mas com simplicidade. Essa aproximação de Shakespeare clássico da cultura popular se estabelece e o grupo já dá a dica no próprio título, com a inclusão da palavra “quase”. Das três versões da obra de William Shakespeare que assisti dos Clowns – Sua Incelença Ricardo III, HamletMuito barulho por quase nada parece a melhor resolvida na graça popular, nas subversões, na incorporação de um material (gestual e sonoro) urbano e contemporâneo

É um espetáculo luminoso, em que o elenco dança, faz pantomima, canta, toca vários instrumentos. E alguns atores interpretam mais de um personagem.

Na peça, o patriarca viúvo Leonato anseia por casar sua sobrinha Beatriz e sua filha Hero. A paixão romântica e idealizada se instala na relação de Hero e Claudio. Mas os caminhos do amor são mais tortuosos entre Benedicto e Beatriz, que preparam o terreno amoroso a partir de um duelo de palavras nada lisonjeiras. O anfitrião Sr. Leonato, o Príncipe Dom Pedro e outros personagens buscam unir essas duas criaturas ágeis no pensamento e que desdenham dos sentimentos nessas comemorações de retorno vitorioso da guerra.

Mas não faltam os golpes baixos. Por inveja das conquistas de Claudio, Don John (o irmão bastardo do Príncipe) forja uma situação para incriminar de deslealdade a doce Hero.

O grupo Clowns de Shakespeare desenvolve há anos uma pesquisa sobre a presença cênica do ator, a música na cena, e teatro popular de comédias. Além disso, a equipe investiga as técnicas do clown em amplo diálogo estético com o imaginário nordestino e seus heróis que subvertem as lógicas.

Com um elenco afinado, os atores mostram domínio de suas funções. Marco França interpreta Benedicto e Corniso, e explora o jogo com maestria das técnicas do clown e as variações da comédia (do melodrama ao musical).

A personagem Beatriz, da atriz Renata Kaiser, é cheia de atitudes nessa peleja amorosa. Há uma graça selvagem na aparente dureza da donzela. Paula Queiroz explora facetas opostas como a suave Hero e como o cafajeste interesseiro, Borracho, quando usa máscara e tem um gestual mais caricatural. Joel Monteiro faz um Mensageiro nas dobras do clichê e de grande apelo popular e trabalha os detalhes para diferenciar a personalidade dos irmãos Dom Pedro, e Dom John. João Ricardo Aguiar faz o divertido Leonato e o bocó Vinagrão. Camille Carvalho explora as idiossincrasias de Margarete.

Por alguns momentos os atores deixam transparecer a própria arte interpretativa, embaralhando personagens, como um delicioso flash de metateatro.

Os cenários, os figurinos e os adereços de João Marcelino são coloridos e levam para a cena a beleza do Nordeste em alusão à riqueza cultural da região, como nas sandálias dos cangaceiros de Lampião, nas casacas dos vaqueiros e nos bordados e rendas nordestinas e mineiras.

A música ocupa um lugar especial na montagem e tem direção de Marco França. São músicas singelas. Uma delas, com Marco França ao violão, é um acróstico com o nome Beatriz. “Ah, mais que dia feliz! Ah, como estou tão feliz! Quem me ama? Quem me ama? Be-a-triz!”. A iluminação de Rogério Ferraz simples e eficiente.

A graça está no corpo dos atores, se espalha pelo palco e contagia o público, que aplaudiu fervorosamente às sessões do espetáculo da sexta-feira, dedicadas ao crítico Sebastião Milaré, homenageado da Mostra.