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A dor e a delícia de ser o que é

Foto: Júnior Aragão
Foto: Júnior Aragão

Crítica da peça A geladeira, da Companhia AntiKatártiKa Teatral (AKK), por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

Cena Contemporânea 2015

26 de agosto de 2015

Nelson Baskerville diretor de A geladeira argumentou em uma entrevista que qualquer obra que se posicione a favor dos “direitos LGBT é de extrema importância, pois o preconceito é um erro e não apenas uma piada. Ele mata”. Copi, pseudônimo do franco-argentino Raúl Natalio Roque Damonte Botana, (1939-1987) impregnou seu trabalho de um caráter transgressor e advogou pela plena liberdade de se ser o que é. Esse dado contra o preconceito aufere relevância no Brasil em que grupos fundamentalistas ganham espaços de poder e carregam atrás de si fiéis que acreditam nas asneiras preconceituosas, inclusive na “cura gay”.

A crítica ao preconceito é uma linha de uma rede dessa montagem da companhia AntiKatártiKa Teatral (AKK), com o ator Fernando Fecchio. Mas não é a única. A geladeira envereda por questões caras da nossa modernidade líquida, de identidades estilhaçadas e de solidão que beira ao absoluto.

“O texto traz a marca da caricatura, do desenho cômico, que busca marcar o gestual, ‘fixar’ expressões ou situações, como se o tempo congelasse neste quadro, mas se seguisse o gesto pela sua retomada no quadro imediatamente seguinte. Certo ‘exagero’, típico da caricatura, é artifício para se vislumbrar a realidade aumentada, potencializada em todas as possibilidades.” Atesta a poeta e pesquisadora pernambucana Renata Pimentel sobre a obra do escritor, dramaturgo, cartunista e ator travesti, em seu livro Copi – Transgressão e Escrita Transformista (Editora: Confraria do Vento, 2011).

A produção de Copi é difícil por estar revestida de grossas camadas culturais. Baskerville aponta para alguns fundos falsos na peça. O primeiro plano de A Geladeira explora o lado engraçado e cheio de clichês da situação vivida pela protagonista. Ao atingir uma certa profundidade, outra cava é desvendada pra provocar outras reflexões. A cena mostra complexidades, em meio a tiradas irônicas, sarcásticas, mordazes.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman nos indica que a “‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto” na modernidade líquida. E que “as identidades ganharam livre curso, e agora cabe a cada indivíduo capturá-las em pleno voo”.

Essas questões de Bauman são projetadas no espetáculo. O ator Fernando Fecchio se desdobra em vários personagens da peça. Um ser andrógino, L. se apresenta como homossexual em estado de esgotamento ao completar 50 anos e ser presenteado com uma geladeira; sua psicóloga – A pastora/psiquiatra; a criada Goliasta, a sua própria Mãe, vozes do telefone – como o amigo Hugh, da Autrália; e do relógio da sala, ou o fantasma de si mesmo.  No texto L., mostra-se um ser andrógino

Baskerville dispõe na beirada do palco com cubos de formar palavras, a frase “Todo mundo é gay”. Isso norteia o eixo do personagem homossexual, que se desdobra em outros. De ex-modelo histérico, que busca escrever sua autobiografia, que é estuprada pelo seu chofer, que é chantageado por sua mãe.

A figura se desconstrói e se transforma em ações non senses, que ressignificam o mundo contemporâneo. Desses tempos marcados pela fragmentação do indivíduo. O ator transita com propriedade pelos personagens, dança, modula vozes, desnorteia o espectador.

Fernando Fecchio opera o jogo, a sobreposição, a aglutinação e o confronto em uma cena frenética, em que muda de papéis com um ou outro adereço cênico, ou manipulação de uma boneca de tamanho humano.

O ritmo é acelerado, num jogo de diálogos aparentemente ilógicos. Carregados de estranhamento, com toques grotesco, imagens de distorções, elementos kitsch, exageros. O intérprete se estica com potência nesse jogo entre personagens, em que essas figuras da cena buscam esconder o fator precário, as vezes dolorido da existência, típico da criatura contemporânea.

É interessante que o título e o elemento propulsor seja um refrigerador, objeto de consumo comum a todos e que remete para o paradigma do gasto da pós-modernidade em batimento com a ideia de produção da modernidade. Esse sujeito plural, heterogêneo está fraturado por carências, falhas, urgências.

O fotógrafo David LaChapelle – com sua leitura escrachada “de contrastes assustadores e nuances surrealistas”, que para suas imagens capta o clima da excitada sociedade de consumo é uma referência na concepção visual do espetáculo. As cores vibrantes do cenário e a tentativa desesperada de glamour para o personagem da peça traz esse toque de beleza e bizarro. Em algumas fotos de LaChapelle, o mundo desmorona e um elemento na imagem tenta manter o charme.

Mas se o diálogo com o fotógrafo puxa para o universo pop o século 21, a geladeira vermelha instalada no meio da cena é vintage, e sobrevive entre outros adereços que parecem sucatas e que conferem um clima de decadência.

A trilha sonora reforça o ambiente entre os anos 1970 e 1980, com clássicos de artistas como Barry Manilow, Queen e Love Unlimited Orchestra e números típicos das boates gays.

Os apontadores setecentistas e oitentistas também colocam um pé no freio no vigor do texto de Copi com suas bizarrarices e contradições, de traços extravagantes. É como se a audácia e o universo avassalador de Copi se perdesse um pouco pelo caminho em planos estilísticos já repetidos à exaustão.