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Um encontro de teatro

Crônica da apresentação de Os idiotas, com o ator e diretor Sidiki Bakaba

Cena Contemporânea 2015

 

Antes de falarmos propriamente de Os idiotas, faço uma breve observação. Na programação do festival, a peça está apresentada como performance, o que pode causar mal-entendidos. Em francês, inglês e espanhol, performance pode querer dizer simplesmente espetáculo ou peça de teatro. Mas em português, quando falamos que vamos assistir a uma performance, estamos nos referindo a algum trabalho de performance art. O que Sidiki Bakaba nos oferece é uma peça de teatro, que não tem relação com a performance art.

Em ocasiões anteriores, tive oportunidade de conhecer um pouco (muito pouco, na verdade) do teatro de países africanos de língua portuguesa, que me pareceu bastante influenciado pelo Teatro do Oprimido de Augusto Boal, um teatro socialmente engajado que se entende como arma pedagógica. Nesta peça da Costa do Marfim, país africano de língua francesa, o compromisso com as questões sociais aparece como inspiração temática e o tratamento dado é mais literário do que dramático. Vemos ali um teatro reflexivo, que não é explicitamente político. O texto de Os idiotas é quase exclusivamente narrativo.

Foto: Rômulo Juracy.
Foto: Rômulo Juracy.

Os idiotas é um solo do ator e diretor marfinês de longa e bem-sucedida carreira no teatro e no cinema, Sidiki Bakaba, importante figura pública da Costa do Marfim. Trata-se de um espetáculo de dezessete anos atrás, que foi trazido de volta à cena especialmente para essa passagem de Sidiki por Brasília, para participar das atividades formativas do Cena Contemporânea com uma oficina para atores. Além de atuar, ele divide a direção com Khoffi Kwahulé.

A dramaturgia é estranha para a nossa cultura de texto dramatúrgico. Há um texto inicial que funciona como um prólogo, no qual um personagem (que vamos conhecer) é apresentado. Em seguida, entra o personagem, que vai contar histórias para um interlocutor invisível ao longo do espetáculo. Esse recurso do personagem invisível fragiliza a ação da peça, até porque não há uma preocupação da encenação em legitimar o código. Na verdade, não há um trabalho de encenação como o conhecemos, mas uma economia de recursos, que concentra toda a responsabilidade na presença do ator. Além disso, o registro de atuação de Sidiki também não é familiar. Para nós, espectadores de um festival, interessados no teatro contemporâneo internacional, com suas poéticas singulares, vemos em Os idiotas um teatro que parece não apenas de um lugar cultural distante, mas de outro tempo histórico.

Diante dessas constatações, logo de início é possível perceber que, para estabelecer um diálogo com o trabalho que se apresenta diante de nós, precisamos nos desfazer dos parâmetros que costumam nos acompanhar no teatro. Mas isso não é nada fácil. Assim, nos encontramos em uma situação de enfrentamento com o fenômeno teatral: precisamos lidar com o outro – outra linguagem, outra noção de teatro, outro contexto cultural.

Não à toa, a peça não está na programação de espetáculos e sim nos Encontros do Cena. Se o festival nos convida ao intercâmbio com artistas de diferentes países, precisamos entender que tipo de troca podemos fazer em cada caso. Mesmo assim, caberia uma melhor mediação, que pudesse contextualizar o teatro marfinense, a situação política do país e sua produção cultural.

Diante de Os idiotas, não sabemos a princípio em que território estamos nem se vamos conseguir nos deslocar para algum lugar de onde possamos co-habitar aquela ideia de teatro. Minha impressão particular é de que não consegui fazer esse deslocamento, não tive uma experiência estética, artística, mas tive uma experiência cultural: conheci um artista, um espetáculo, compreendi algumas questões relevantes para o seu meio cultural.

Houve uma série de problemas técnicos com as legendas. Isso provocou um atraso, o que fez com que alguns espectadores precisassem sair antes do fim. Mas as legendas também falharam muitas vezes durante a peça, especialmente na segunda metade, impedindo que os que não entendem francês acompanhassem a narrativa. E isso também fez com que muitos desistissem e fossem embora. Essa falha provocou a perda do valor literário do texto, perda significativa diante da poética narrativa da peça – motivo pelo qual chamo esse texto de crônica, não de crítica. Mas um grupo de espectadores ficou até o fim, mesmo não entendendo as palavras, e o ator, diligente, continuou o seu trabalho. E o que aconteceu ali no auditório do Museu Nacional de Brasília foi realmente um encontro.

Não se vai embora do teatro. Nunca se sabe o que nos reserva o final. Após os sinceros e dedicados aplausos, Sidiki nos apresentou uma breve fala sobre como ele vê o Brasil, seu desejo de se apresentar no país e a importância da sua passagem por aqui. Assim, depois de conhecer seu teatro e sua técnica, conhecemos também a ética de homem de teatro presente no seu discurso e no seu cansaço – e a ética do teatro nos circunscreve em um mesmo universo, viabilizando a transposição das fronteiras estéticas.