Crítica da peça Isso te interessa? da companhia brasileira de teatro
Cena Contemporânea 2015
“Cada homem traz consigo a forma inteira da humana condição.”
Michel de Montaigne
A montagem de Isso te interessa? é parte da proposta da companhia brasileira de teatro de traduzir e encenar peças de autores e autoras determinantes da dramaturgia contemporânea que são inéditos e até mesmo desconhecidos no cenário teatral brasileiro. Até hoje, o grupo realizou montagens de autores como Philippe Minyana, Jean-Luc Lagarce, Ivan Viripaev, Joël Pommerat e, o mais recente, Hanoch Levin – embora seja preciso fazer a observação de que o espetáculo mais contundente do grupo é fruto de uma dramaturgia original, assinada por Marcio Abreu: Vida.
O título da peça em francês, Bon, Saint Cloud, faz menção a um balneário francês para o qual um dos personagens deseja viajar. Não apenas pelo fato de que o público brasileiro não tem Saint Cloud como referência, a opção por dar um novo título à peça de Noëlle Renaude enfatiza a dimensão de leitura da encenação e do projeto mesmo de realização da montagem. A encenação é um depoimento sobre a peça, uma leitura da peça, um gesto que dá forma e voz a um texto prévio escrito em outra língua, em outro contexto cultural. A ideia mesma de tradução ganha ênfase nessa passagem de um título a outro, colocando em jogo a dimensão autoral e de pensamento da tradução, assinada por Giovana Soar e pelo diretor, Marcio Abreu.
A saga familiar apresentada na trama da peça remete à narrativa romanesca, ou seja, ao romance enquanto gênero literário, mas se apresenta de modo bastante teatral na opção da dramaturgia por colocar as rubricas na fala dos atores, unindo o que seriam as indicações de movimentação à fala dos personagens. O endereçamento direto, lúdico e bem-humorado ao público presente colabora para criar vínculo entre atores e espectadores, enfatiza o convívio, a ideia (obvia mas nem sempre evidente) de que os artistas estão querendo falar com os espectadores – o que o título em português já anuncia com clareza.
O cenário em perspectiva, de Fernando Marés, parece fazer um comentário sobre o olhar como um olhar para a arte, uma forma de ver que é característica da arte, uma vez que a perspectiva é uma elaboração formal, uma técnica de representação do espaço em um quadro. A iluminação escura de Nadja Naira, sua aposta firme na penumbra como tom geral da visualidade da cena, cria – em sintonia fina com a trilha sonora de Moa Leal e Marcio Abreu – uma atmosfera melancólica em contraste com o anseio por uma vida solar em um lugar amplo e arejado como a idílica ideia de Saint-Cloud.
O trabalho dos atores Giovana Soar, Nadja Naira, Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini faz uma decupagem das camadas de enunciação da atuação no teatro. A transição sem quebras entre personagem e narrador constrói um registro que contém em si todas as possibilidades: a demanda da peça é por um ator em estado de prontidão, livre de psicologismos e de construções corporais que buscam mimetizar corpos fictícios. As atuações colocam em jogo o banal da vida cotidiana nos diálogos e situações das personagens em oposição às intensidades e variações de temperatura no tratamento dado às falas dos atores, que muitas vezes revelam mais “as intenções” dos personagens nas falas narrativas que nas falas dialógicas.
Todo esse conjunto de escolhas formais e preparo técnico viabilizam uma convivência entre observação crítica e identificação emocional por parte do espectador. Ao mesmo tempo que a artificialidade da encenação nos oferece algo a se pensar sobre, a opção radical pela nudez sem rodeios dos atores nos convida a uma identificação com a humanidade dos personagens.
A nudez pode ser vista como um traço da via pictórica da encenação, afinal o nu é objeto de estudo da beleza e do humano na pintura e na escultura desde a Antiguidade Clássica e que, no teatro brasileiro, costuma ter um tratamento completamente diverso daquele que vemos em Isso te interessa? A beleza e a solidão da nudez, a complexidade e a singularidade desse organismo que é o corpo humano, fazem dessa escolha improvável um artifício de precisão cirúrgica para dar a ver e escutar uma narrativa que mostra nossa tendência a repetir comportamentos e hábitos como um coletivo animal. Por um lado, nos parecemos enquanto corpus social e cultural, mas por outro, somos absolutamente únicos e solitários em nossos corpos biológicos perecíveis. A nudez nos iguala e nos resume enquanto espécie na mesma medida que nos individualiza.
A nudez em Isso te interessa? nos olha e nos agarra, fisgando-nos pela consciência da partilha da nossa bela e comovente humana condição.