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Um autêntico documento ficcional

Crítica da peça Instrucciones para abrazar el aire, do grupo Malayerba, do Equador

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Um dia antes de assistir à peça Instrucciones para abrazar el aire, participei como mediadora de um encontro entre artistas da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, no qual estava o grupo Malayerba, do Equador, com os criadores Arístides Vargas, Charo Francés e Gerson Guerra. No debate, tive a oportunidade de ouvir o grupo falar, com muita clareza e propriedade, sobre o próprio trabalho e sobre a peça que está na programação da mostra. Aqueles que estavam presentes puderam conhecer antes de assistir ao espetáculo os fatos que motivaram a criação. Charo e Arístides nos contaram a história de uma casa em La Plata, que funcionava como imprensa clandestina. Como fachada, ativistas assumiam o papel de cozinheiros que faziam conservas de coelho a escabeche e as conservas eram embaladas com os papéis do jornal que produziam, e que só assim circulava. Em 1976 a casa foi alvejada por fora. Todos os que estavam lá dentro morreram, com exceção de uma criança, ali sequestrada e até hoje não encontrada. A história foi contada para eles por Chicha Mariani, a avó dessa menina desaparecida cujos pais foram assassinados no ataque à casa.

Não por saber previamente da história – que qualquer espectador pode saber procurando informações sobre a peça na Internet, lendo sinopses e críticas do espetáculo – mas por ouvir uma apresentação feita pelos criadores em uma conversa, minha percepção da peça já contava com uma sensação de vínculo, de empatia pelo trabalho. Faço essa observação preliminar porque, como crítica, artista e espectadora, sou defensora das mediações. Vejo a importância da mediação como forma de aproximação entre artistas e público, algo que deveria ser sempre uma prioridade nas iniciativas de teatro – especialmente quando estamos em contato com culturas de teatro que não são aquelas com as quais lidamos no cotidiano de um determinado território cultural.

A história é apresentada por três casas, com três casais: os avós que procuram a neta, os ativistas cozinheiros de coelhos e os vizinhos que observam a casa clandestina. Em cada casa, uma ideia de teatro diferente onde a dupla trabalha com linguagens diversas. A alternância de gêneros é uma premissa da dramaturgia. Passamos rapidamente de cenas cômicas com chistes descompromissados para cenas em que é impossível rir do que está sendo dito e para outras em que o lirismo nos faz ver a beleza apesar do horror. O espetáculo se constrói com diferentes registros de interpretação, que se intercalam e se alimentam uns dos outros. Cada casal assume um tom, uma temperatura, um tempo diferente. Escutamos as histórias por diferentes pontos de vista, que nos demandam que estejamos prontos para mudar de expectativa a cada cena. E parece que a atividade constante de mudança na recepção vai aos poucos derrubando os muros, abrindo brechas para chegar na sensibilidade do espectador. É como acompanhar um festival: a cada espetáculo, as premissas são diferentes, cada um tem as suas regras, temos que adaptar as nossas expectativas, abandonar saberes e adquirir outros a cada vez que começa um novo espetáculo. Nossas noções de teatro são abaladas (felizmente) e aprendemos a ver cada peça de acordo com as suas questões, não só com as nossas.

Foto: Jenniffer Glass.
Foto: Jenniffer Glass.

Mas, no que diz repeito a verdades e realidades, me parece interessante e perfeitamente adequada a ideia de documento ficcional, um aparente paradoxo, com o qual a peça é apresentada. Quantos documentos produzidos durante os períodos ditatoriais na América Latina não são de certo modo “ficcionais”, ou melhor, mentirosos? Quantas confissões proferidas ou assinadas por coerção da tortura não são uma “ficção” construída pelo medo? E o que dizer dos documentos dos filhos e filhas, netos e netas, cuja identidade foi roubada e alterada nos inúmeros casos de sequestros? A questão é que entre mentira e ficção a diferença é grande. A mentira é a antítese da verdade, mas a relação da verdade com a ficção é mais complexa. Os procedimentos de criação ficcional estão presentes em todas as formas de escrita historiográfica, a elaboração das narrativas que são comprometidas com a verdade conta necessariamente com a imaginação, com a ficcionalização, como método para criar coerência. Daí que toda historiografia é criativa e, em alguma medida, ficcional.

O aparente paradoxo da ideia de documento ficcional é que a primeira palavra afirma uma verdade e a segunda a desmente, mas não anula sua proposição. O documento ficcional aqui não deixa de ser um documento, mas sua verdade é de outra natureza. A ficção é um meio para orbitar em torno da verdade, essa abstração que nunca poderemos conhecer de fato. Com a confecção deste documento ficcional, o Malayerba está encenando historiografia, colocando verdades em jogo a partir de elaborações poéticas, narrando fatos para que possamos escutar essas narrativas de outra maneira – porque não podemos esquecê-las mas também não conseguimos simplesmente repeti-las.

Neste encenar historiografia, há um fator determinante, uma camada de produção de sentido que é também produção de presença: os corpos de Charo e Arístides como documentos de uma história recente, em que a autenticação das verdades está carimbada na carne da experiência de suas histórias de vida. São corpos historiadores, expressão que tenho usado para falar do trabalho de atores que são narradores e testemunhas, rastros e evidências de acontecimentos dos quais precisam falar. A condição mesma de migrantes, o conhecimento profundo das narrativas de violências das ditaduras, a solidez da trajetória de mais de 30 anos de teatro, tudo isso inscreve nos seus corpos a habilidade para escrever suas histórias no espaço tridimensional do teatro, com a elaboração poética necessária, através da oralidade, da potência da palavra falada no teatro.

Sabemos que a experiência não é passível de compartilhamento, que não somos capazes de sentir a experiência do outro. Mas também não conseguimos deixar de tentar. No teatro, com a generosidade dos corpos que se dão a falar, parece que a escuta dá um passo adiante nesse sentido, impossível como abraçar o ar.

Três modos de abraçar o ar

Foto: Guillermo Turin.
Foto: Guillermo Turin.

Crítica a partir do espetáculo Instrucciones para abrazar el aire, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

São certamente muitas as faces da Ditadura, e também os ângulos sob os quais se pode experimentá-la. E se o Brasil tem vivido, nos últimos anos, um momento propício a revirar e reconhecer a presença da Ditadura em sua história, movimento semelhante decerto acontece em outros pontos da America Latina, como deixa ver o espetáculo Instrucciones para abrazar el aire, criado em 2012 pelo grupo Malayerba, com sede em Quito, no Equador. Tendo como ponto de partida a história real de uma criança seqüestrada em 1976, durante um ataque realizado por oficiais da Ditadura Argentina, o espetáculo recorre a três pontos de vista bastante distintos para recriar tal narrativa.

Construída, então, a partir de uma composição entre tais pontos de vista, fragmentados em breves cenas sempre interpretadas pelo mesmo casal de atores, a dramaturgia de Aristides Vargas – que também divide a cena com Charo Francés – se equilibra entre diferentes experiências de tempo, espaço e relação com o público, oferecendo ao espectador distintas possibilidades de se identificar e se relacionar com a história ali contada, assim como com a própria Ditadura – seja ela qual for. Atacar, defender e simplesmente surgem, então, como três modos de se relacionar com uma realidade que se mostra impossível de ignorar.

A partir de um registro quase farsesco e claramente cômico, o casal de cozinheiros ataca a Ditadura, produzindo subversivos jornais que servem como embalagem para inusitadas “conservas de coelho”. E, como se tal ação se inevitavelmente desdobrasse em outras de mesma natureza, eles também se atacam o tempo todo, seja fisicamente, com um maço de temperos, ou ainda por meio de discussões corriqueiras que colocam em cheque desde as hierarquias inerentes a qualquer ofício e também a importância de se manter à sombra dos acontecimentos, lembrando que qualquer tipo de destaque sempre traz seus custos.

O casal de vizinhos, por outro lado, apesar dos poucos quilômetros que o separa do conflito anunciado, apenas observa os acontecimentos ao redor, como se nada tivesse a ver com aquilo, ainda que estejamos, claro, todos imersos em um mesmo contexto social e humano. Reproduzindo, em cena, uma atitude tipicamente burguesa, o casal de vizinhos desconfia, analisa e julga, mas faz tudo isso da janela do próprio apartamento, mantendo uma distância aparentemente segura em relação à narrativa que, aos poucos, se desenvolve em cena.

Situados, ali, como vítimas da Ditadura, o casal de avós se defende. Permanentemente abalados pelo sumiço da neta, assim como pela morte dos pais da menina, eles se defendem do permanente risco de esquecer-se daquilo que passaram. Defendem-se da possibilidade de perderem o fio da meada e o sentido da vida, e, por isso, todos os dias, insistentemente, contam a mesma historia um ao outro, uma história que lhes afirma o próprio vinculo e lhes devolve o sentido de permanecer neste mundo.

É a partir das próprias memórias um que eles se protegem de uma tristeza profunda que vez ou outra se aproxima, é com poesia que se protegem das cores que se apagam após a perda de uma criança, assim como do vazio que se revela após a tragédia social e familiar que lhes serve como marca definitiva. Mesmo deslocados em relação, continuam defendendo-se da Ditadura e de suas marcas, ao compartilharem, diariamente, o desejo e a esperança de encontrar a neta perdida, e ao pactuarem, também diariamente, pela preservação desta memória que lhes cabe embalar e abraçar como uma criança.

Cada um a sua maneira, os três casais compartilham com o público seus modos de se envolver em uma mesma realidade, ao mesmo tempo concreta e imaginada. Convertidas em utopias revolucionárias, dramas burgueses ou memórias íntimas, tais realidades poderiam dissolver-se no tempo e no ar, mas mantêm-se vivas ao serem abraçadas pelo teatro, ali tratado como uma arena propícia ao compartilhamento de experiências – sejam passadas ou presentes – que não devem ser naturalizadas nem esquecidas.

 

Publicado no site da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015:

http://www.cooperativadeteatro.com.br/10mostra/blog/