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Formas para as diferenças | Festival de Curitiba 2017 – parte 3

“Eu era a carne/ Agora sou a própria navalha”

“Negro Drama”, Racionais MC’s

Por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

“Farinha com Açúcar”. Foto de Leonardo Lima.

Mais, ainda

Retorno ainda outra vez ao Festival de Curitiba deste ano para rememorar outros espetáculos marcantes da programação desenhada pelos curadores Marcio Abreu e Guilherme Weber.  Nas partes 1 e 2 deste panorama, tratei especialmente de trabalhos artísticos nos quais as questões de gênero se faziam centrais. Nesta terceira parte, são as formas como a exclusão racial rompe a invisibilidade que me levam a refletir sobre os diferentes caminhos estéticos para o posicionamento ético e político de artistas brasileiros hoje – e da crítica.

Se há não mais que cinco anos um olhar interseccional para o teatro ainda era algo raro, uma vez que as questões de gênero e raça permaneciam marginalizadas nas discussões sociais e artísticas (o que não significa que não existissem e resistissem), hoje, a partir das transformações catalisadas por movimentos de rua e virtuais, tais abordagens se apresentam frequentemente inscritas dentro dos círculos de pensamento e prática artística comprometidos com um projeto de sociedade menos excludente. O que testemunhamos é o despertar de setores sociais silenciados historicamente, e se a atenção às suas vivências emerge à visibilidade da superfície dos discursos e dos corpos em cena, de modo que já chegam a parecer inescapáveis os recortes de raça, gênero e sexualidade em contextos como o do teatro de pesquisa belo-horizontino, podemos considerar que não se trata somente de uma tomada de consciência por parte de quem olha da plateia (crítico, pesquisador ou espectador), mas, até mais substancialmente, do quanto tais discussões têm sido assumidas pelos artistas como estruturantes de suas criações cênicas nos níveis dos discursos e das formas.

Essa proliferação reativa uma discussão complexa sobre as implicações entre ética e estética, que já muito (mas não suficientemente) ocupou o espaço mental de filósofos ao longo da história, e aqui invoco numa abordagem colada ao próprio exercício crítico que nós, profissionais da crítica ou apenas seres críticos que somos todos, praticamos diante desses espetáculos. A questão emergente seria: como, ou em que medida, diante de um trabalho que se sustenta na defesa de questões éticas e políticas urgentes sobre direitos humanos (a exemplo do combate ao racismo, à misoginia, à transfobia e à homofobia), não desconsiderar a dimensão estética em si?

A nódoa parece estar no temor de que o questionamento estético produza o efeito colateral de enfraquecer uma luta da qual reconhecemos a importância e a necessidade. Afinal, sabemos o quanto ainda são frágeis essas posições identitárias dentro da nossa organização social e como não faltam empreendimentos para desqualificá-las. Em contraponto, ao não reconhecer o valor próprio da estética, menosprezaríamos o que é próprio do ato artístico, o modo singular como proporciona experiências, como organiza afetos, sensações e significados, e como as formas criadas supõem visões de mundo. Nesse sentido, privar a arte engajada na defesa dos direitos humanos de uma apreciação de ordem estética significaria ignorar justamente como suas formas reconfiguram o mundo.

Isso não nos isenta de questionar o fundo ideológico dos nossos parâmetros estéticos e o quanto estão moldados por uma tradição que se perpetuou dentro daquele mesmo sistema de exclusões em que as manifestações negras, LGBT e de mulheres tantas vezes foram desqualificadas ou invisibilizadas. É atribuída à Virginia Woolf o aforismo “Ao longo da maior parte da História, anônimo foi uma mulher”. De modo análogo, embora singular, o desinteresse e o desconhecimento sobre as tradições das artes negras e suas expressões contemporâneas periféricas determinam os sistemas de valoração correntes nos palcos, na crítica e na academia.

Eis exposta apenas uma pequena parte dos problemas que esse cenário complexo nos coloca. No Festival de Curitiba, essa discussão se instaurou a partir da mesa de debate com artistas negros promovida na programação do Interlocuções (com curadoria de Giovana Soar), especialmente pela fala de Jé Oliveira, do Coletivo Negro, de São Paulo. Entre outras colocações, ele questionou justamente a falta de olhares propriamente estéticos sobre a diversidade de linguagens que constitui o “teatro negro”, o que seria um modo de subestimar a potência criativa dessas obras e se sustentaria na ausência (ou insuficiência) de conhecimento (e, antes dele, de interesse) sobre a história da arte para além da Europa e da faceta branca dos Estados Unidos. Ou seja, na falta de letramento racial. Nos palcos do festival, peças como a paulista “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, a curitibana “Macumba” e a portuguesa “Moçambique” mostraram um pouco dessa diversidade. Nos caminhos abertos por essa programação, optei por acompanhar a produção brasileira.

“Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, do Coletivo Negro. Foto de Leonardo Lima.

Masculinidade negra urbana

“Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, do Coletivo Negro, já esteve em Belo Horizonte, no contexto do Fan – Festival de Arte Negra. Fora de um recorte especificamente racial, lado a lado com outras peças de temáticas e linguagens diversas que compõem a programação da mostra oficial do Festival de Curitiba, o espetáculo reafirma que se são raras as criações de artistas negros em grande parte das curadorias brasileiras não é (reconheço o contexto racista que torna ainda possível ou necessário escrever isso) por faltarem trabalhos da mais alta qualidade poética.

“Farinha com Açúcar” é construída como um tributo ao Racionais MC’s, em reconhecimento à atuação do grupo de rap paulista no empoderamento de uma população negra e periférica que não se via nem se ouvia representada. Esse reconhecimento é de um verdadeiro letramento promovido pela música – afinal, para esses sujeitos, “música é livro também”, conforme repete Jé Oliveira. Tal como Malcolm X, o ativista negro norte-americano evocado na dramaturgia (“li Malcolm X como quem come com fome”), os Racionais aparecem como responsáveis por alimentar não só a consciência crítica contra o etnocídio negro mas a própria autoestima necessária à resistência e à luta.

Pela compreensão da importância dos discursos disseminados nas letras de rap e do quanto a forma de circulação desses discursos é determinante para furar os ciclos de exclusão, o Coletivo Negro busca na obra dos Racionais os elementos estruturantes para a criação teatral. A linguagem musical torna-se o esqueleto e a pele da dramaturgia. O teatro musical faz-se fora das convenções associadas à união dessas duas artes. O microfone, a postura, a atitude, a métrica, o engajamento do rap, além de seus modos de radiodifusão, são o veículo para a expressão das “experiências de ser preto na urbanidade”, colhidas e reescritas a partir de 12 entrevistas de homens negros de diversas idades e ocupações.

Fala-se sobre a negritude com a poesia da variante linguística da periferia, direcionada aos sujeitos negros infrequentemente posicionados como os interlocutores primários em arte. Desse modo, cabe aos espectadores brancos a posição de outros dessa experiência compartilhada – um deslocamento imprescindível.

Se no princípio era o som, e a luz, luzes e música criam o espaço cênico, dando densidade e tonalidades ao palco, ocupado ao centro por Jé Oliveira e, ao fundo, por uma banda – na apresentação em Curitiba, o DJ KL Jay (do Racionais) foi substituído pelo DJ Tano. “Imagine que isso aqui é uma favela”, sugere o ator, frente à composição visual com lâmpadas espaçadas que remete a um aglomerado de barracos. O que se vê em cena não se confunde com um tratamento cosmético para a pobreza, nem com uma estética da precariedade. Ao contrário: é a potência de cada vivência, com sua capacidade de produzir beleza e saber, que se mostra aos nossos olhos como afirmação do valor de todas as vidas. “Apesar de ficção, não teremos ilusão”, avisa Jé.

Nos jogos de luz à maneira dos shows musicais e nas variações de intensidade; nas rimas e aliterações do texto e no uso de gírias; na dramaturgia mixada seguindo a lógica própria de um DJ, misturando samples e sobrepondo textos, refrões e batidas, percebe-se a elaboração formal na construção de um espetáculo mobilizador pelo engajamento crítico e pela sensorialidade, capaz de envolver o espectador (seja este frequente ou arredio ao teatro) e arrebatá-lo. Essa forma como o Coletivo Negro conjuga teatralidade, musicalidade e oralidade (ou letra, corpo e som) se sustenta numa concepção de não separação entre as artes, que condiz com as tradições das manifestações artísticas negras e encontra com a cena expandida da arte contemporânea. Desfaz, assim, rupturas excludentes entre linguagens, tempos e matrizes culturais.

No coração da dramaturgia estão as violências repetidamente impostas à população negra. “Primeiro ato: morrendo”, anuncia Jé Oliveira. As histórias trazidas na voz do ator, em depoimento em off ou nas letras das músicas, testemunham um cotidiano em que a violência sofrida gera a violência infligida. Essa retroalimentação inclui uma série de fatores que se encadeiam em efeito dominó. A peça comum é a frustração diante da desigualdade econômica e do genocídio sentenciado pela cor da pele sem direito de defesa nem julgamento. “Isso te dá ódio, tira a poesia”, diz Jé. “Se é pra ser o pior, vou ser o pior mesmo”, resume a cadeia de brutalidade.

A fome, a humilhação e as carências agravadas pelo preconceito se revelam em dimensões que o conforto rotineiro da classe média geralmente não permite alcançar. Prova disso é o relato de um espectador curitibano na conversa pós-espetáculo: pela primeira vez, percebeu que um rapaz de periferia que rouba um par de tênis, diferentemente dele, nunca pôde ter o que desejava. A quem essa constatação não é novidade, talvez sentir o gosto de farinha com açúcar como única comida disponível em casa para matar a fome quebre algumas das fantasias que permanecem a sustentar nosso modo de viver, recobrindo com véu da ilusão ou do esquecimento a hierarquia social e racial vigente.

Outro fundamento da dramaturgia é a masculinidade, exercida como potência de virilidade em cena, e questionada na medida em que seu reforço, sob a lógica do “apanhou tem que bater”, obedece ao aprendizado da violência para a sobrevivência.

Nesse sentido, não coube no espetáculo uma visão intersecional que abrisse espaço para se pensar o que é esse homem em relação ao outro, à feminilidade. Não deixa de ser curioso como a proposta de refletir sobre essa masculinidade não tangencia outras expressões de gênero e de sexualidade na cultura negra e periférica (a exemplo do que faz a cena curta “Não Conte Comigo para Proliferar Mentiras”). As mulheres negras já deflagraram outro espetáculo do coletivo (“Ida”), mas seria interessante desenvolver um tensionamento entre esses recortes futuramente, sobretudo porque a violência no universo masculino também decorre de certa concepção de masculinidade, e as implicações entre as opressões são indissociáveis.

Com o vigor de uma revolta retesada há muito tempo e o rigor para transformá-la em experiência estética, “Farinha com Açúcar” nos confronta com nossa permissividade com o racismo. A notícia de jornal se repete: “111, 111, 111, 111 tiros”, “só porque é preto”, “só porque é preto”, “só porque é preto”, “será que mereciam?”, “5 tiros na cabeça”, “só porque é preto”, “o piolho era ladrão/ ainda assim/ será que merecia?”, “só porque é preto”? Reproduzir aqui essas frases, em refrão, está longe de reavivar a potência que ganham como música, tal qual rajada de metralhadora com munição poética ritmada na cadência do disparo, direto na razão e na emoção, para operar sobre ambas alguma transformação. A repetição, aliás, extrapola o domínio formal. Assim como em um dos trechos mais belos e contundentes de “Eras” (segundo espetáculo das Negras Autoras, de BH), a repetição é o signo daquilo que não para de acontecer. O risco no disco, o ponto onde travamos.

“Macumba – Uma gira sobre poder”, da Transitória. Foto de Lina Sumizono.

Negritude ao Sul

É de outro lugar que falo sobre “Macumba – Uma gira sobre poder”, espetáculo da companhia curitibana Transitória, apresentado também na Mostra Oficial. O que destaco, neste caso, é primeiramente o empreendimento de uma criação artística motivada pela afirmação de aspectos da cultura negra em uma cidade como Curitiba, onde até poucos anos atrás não só era raro alguma obra teatral com tal abordagem, como constituía 0 senso comum (e ainda o constitui, segundo relatos ouvidos nos Encontros com a Crítica) a ideia de que não há população negra significativa na cidade em decorrência da colonização predominantemente italiana, alemã, polonesa, ucraniana e japonesa. Contudo, já o Censo 2010 contabilizava 20% dos cidadãos como autodeclarados negros e pardos – ou seja, um a cada cinco habitantes. Certamente, um número ainda reduzido diante da realidade, por consequência do processo de “branqueamento” cultural desse sul “europeu”. É, portanto, significativo que o movimento de afirmação das identidades negras se manifeste no teatro curitibano, ainda tão branco – à exceção de artistas como a atriz e cantora Simone Magalhães, também participante do Interlocuções.

Outro ponto notável é que o espetáculo tenha nascido da companhia Transitória, a qual conheci quando ainda se dedicava a uma estética pop cheia de referências metateatrais, em registros completamente distintos, como “Elizaveta Bam” ou “Para Poe”. Com nova formação, e o intercâmbio com a Cia de Teatro Nata, da Bahia, o grupo curitibano assume a luta do empoderamento negro, pela valorização da herança cultural afro-brasileira. O empreendimento ressoa a pesquisa cênica da fundadora do Nata, a diretora Fernanda Júlia, sobre a ativação do movimento com base nos estudos da ancestralidade, especialmente dos elementos do candomblé transformados em matriz cênica.

A abordagem considera os aspectos antropológicos e performáticos do candomblé para construir um arcabouço de procedimentos para os atores, de modo que os vestígios do rito religioso deem forma ao rito teatral. Essa é a maior riqueza de “Macumba”, a capacidade de instaurar na relação teatral algo da energia contagiante do terreiro, sua corporeidade intensificada, a musicalidade vibrante, e, com isso, proporcionar ao espectador uma experiência que é própria dessa matriz afro-brasileira, mas que permanece distante das vivências centradas na tradição europeia.

Contribui para essa efetivação o fato de que as apresentações ocorreram na Sociedade 13 de Maio, reduto de resistência da cultura negra em Curitiba – cidade onde, apesar do referido branqueamento, a umbanda é uma religião com significativa inserção (no longínquo Censo 2010, Curitiba era a oitava capital com mais praticantes de umbanda e candomblé, à frente do Recife, por exemplo, e Porto Alegre era a primeira). Ao integrar esse espaço do cultivo da tradição negra ao roteiro de teatros da mostra oficial, o Festival de Curitiba cria uma interseção entre manifestações culturais que se mantêm, a maior parte do tempo, apartadas. Seria este, talvez, o lugar da encruzilhada, do qual trata o crítico e pesquisador Marcos Alexandre retomando um conceito cunhado por Leda Martins (2002): “Como espaço de trânsito e deslocamento, na encruzilhada, deparamos com um ponto de interseção, um lugar em que os corpos se cruzam e são cruzados, tocados. Nesse encontro com o outro – princípio da Alteridade –, algo de um se impregna no outro e vice-versa” (ALEXANDRE, 2014).

Nesse território de trocas simbólicas e afetivas, o poder se torna objeto de investigação cênica. É a raiz do neologismo “empoderamento”, derivado do termo inglês “empowerment”, que se transformou em conceito central dos movimentos negro e feminista contemporâneos, como ato e efeito de promover a tomada de consciência de um grupo oprimido sobre sua própria força de ação, por meio da educação (o letramento), do resgate histórico e da autoestima, e pela valoração positiva de seus atributos e tradições. Em “Macumba”, o poder dos orixás é evocado como manifestação da força da população negra. Quando essa presentificação se efetiva, sobretudo pela música, o espetáculo alcança seus momentos mais arrebatadores. Na via oposta, a dicção dos atores nem sempre permite que suas falas sejam compreendidas pelo público.

Na interseção da matriz religiosa afro-brasileira com a cultura do consumo que sustenta o sistema econômico capitalista vigente, homens e mulheres negros poderosos são também nomeados como exemplos afirmativos do que podem os negros mesmo numa sociedade em que a concentração de renda tem entre seus principais fatores de exclusão a raça ou a cor. Razão pela qual a dramaturgia comunica com veemência incontestável a necessidade de se “empretecer os espaços midiáticos”. Trata-se, afinal, da representatividade como propulsora de empoderamento, ou, em negativo, da falta da representação da negritude em espaços sociais cruciais como desencadeadora da retirada do poder dessa população.

A questão que coloco ao grupo, como provocação, é a escolha pelo discurso da riqueza como campo de legitimação social quando enumera os negros mais ricos do mundo. Não há dúvida de que somente 10 dos 2.043 bilionários serem negros é um dado quantitativo impactante capaz de capturar a atenção e demonstrar os extremos da exclusão racial na distribuição de renda. É quando o discurso se direciona ao desejo de enriquecer (haver mais negros e negras entre os bilionários e milionários do mundo) que a lógica capitalista suplanta a crítica ao sistema, preservando a partilha desigual dos recursos de modo que não se combata a estratificação financeira pela qual 1% da população global detém a mesma riqueza dos 99% restantes. Se compreendemos por “racismo estrutural” que a exclusão de parte da população, pelo critério de raça, é alicerce desse modelo econômico, o que se está propondo não atingiria a estrutura de exclusão. Eis uma relação de forças complexa, considerando que a população negra é 1% desse 1% mais rico. A contradição está posta.

Todas essas discussões colocam o crítico (de arte ou da sociedade) em uma contenda. No caso do teatro, penso ser possível inscrever a questão em um contexto mais abrangente, que é o das formas de “irrupção do real” em cena, ou seja, dos procedimentos que convocam elementos (corpos, depoimentos, testemunhos, notícias) da realidade para a construção do espetáculo, dando a eles o tratamento de índices do “real” como uma forma de legitimação. Não pretendo aqui mais do que apontar um problema que emerge desse cenário (e que começamos a debater internamente entre os integrantes do Horizonte da Cena recentemente): Como exercer uma crítica que não se petrifique diante da legitimidade dessas vivências quando elas se tornam um argumento de autoridade embasado num suposto critério de “verdade” – mas sem destituí-las? Em outras palavras, como reconectar o saber originado da vivência às demais formas de produção de conhecimento, sem adotar uma atitude hierarquizadora entre elas, mas de modo a considerar a complexidade da experiência?

"Protocolo Elefante"; Foto de Lina Sumizoto

“O Que Podemos Dizer do Pierre”, de Vera Mantero, e Protocolo Elefante“, do Cena 11. Fotos de Leonardo Lima e Lina Sumizono.

Pensando as diferenças

Esgotar a apreciação de um festival em um texto panorâmico é impossível. Mesmo dividido em três partes, relativamente longas, resta a consciência do quanto falta ser dito, do quanto clama por atenção – por mais críticos, mais olhares, mais tempo. Na edição 2017 do Festival de Curitiba, haveria ainda a destacar espetáculos vistos no Fringe, como “Chão de Pequenos”, primeira peça da Cia Negra, de Belo Horizonte, que propõe uma linguagem na qual dança e teatro se encontram, e sobressai pela cumplicidade das atuações de Felipe Soares e Ramon Brant, dirigidos pelo coreógrafo Tiago Gambogi e por Zé Walter Albinati (da Luna Lunera), numa partitura que dá forma e textura aos afetos entre dois personagens órfãos, cujos destinos são atravessados, mais uma vez, ainda, pelo preconceito racial.

Na programação oficial, certamente merecem mais reflexão – e circulação – trabalhos apresentados dentro do Movva, evento dedicado à dança, como os da bailarina e coreógrafa portuguesa Vera Mantero, “Olympia” e “O Que Podemos Dizer do Pierre” (sobre os quais recomendo ler no jornal português “Público“), e o modo como ela sobrepõe formas de pensamento discursivo e dançante, por exemplo, quando no segundo solo realiza uma coreografia desencontrada da projeção em vídeo na qual Gilles Deleuze se refere aos tipos de conhecimento segundo Espinoza.

Também no campo da dança, sobressai “Protocolo Elefante“, espetáculo em que o grupo catarinense Cena 11 experimenta expressões físicas da possibilidade de se desprender das identidades fixas e de deixar coexistirem as singularidades dos corpos, dentro da contradição que é um conjunto de figuras isoladas para poderem se diferenciar. Disso resulta uma cena completamente estranhada e hipnótica, de formas “inadequadas”, atravessadas por uma iluminação maciça, que divide longitudinalmente o espaço do teatro e envolve a plateia numa imersão física, enquanto o sentido de temporalidade se esgarça com o ritmo (e o posterior esvaziamento) dos movimentos.   

Neste percurso pela mostra oficial do Festival de Curitiba, fica evidente a eleição de projetos artísticos ocupados em expandir a experiência humana a partir da afirmação das singularidades, em oposição ao cenário nacional e internacional que forças políticas e econômicas vêm se alinhando no esforço de dizimar as diferenças. Nesse sentido, cabe ainda ressaltar a presença de “Nós”, espetáculo do Grupo Galpão, com direção de Marcio Abreu, que nos coloca diante justamente da questão do convívio, a partir da experiência de 35 anos de um coletivo teatral, transformada ficcionalmente na situação cênica do preparo de uma sopa, durante o qual se revelam a intimidade, as divergências, o envelhecimento, a estagnação e a resistência daqueles sujeitos, refletindo também problemas políticos contemporâneos (sobre o espetáculo, já tratei mais detidamente neste artigo).

“Nós”, do Galpão. Foto de Annelize Tozzetto.

Adiante

Diante de um panorama tão estimulante de proposições teatrais e de discussões possíveis, o Festival de Curitiba mostra que terá muito a crescer em qualidade se a coordenação investir na continuidade da valorização artística e reflexiva. Para tanto, as conquistas precisam ser mantidas nas próximas edições – mesmo quando se encerrarem os três anos previstos de curadoria de Weber e Abreu – e estendidas às áreas ainda resistentes da programação. Cito duas velhas conhecidas de quem vem refletindo sobre o festival ao longo das décadas: a necessidade de atrair público por intermédio de celebridades televisivas e o modelo de gestão do Fringe. São questões que, de tão repisadas e gastas, já parecia não haver esperança de modificação, mas a capacidade de se reinventar que o festival vem demonstrando faz com que valha a pena, mais uma vez, voltar a elas como possibilidade de encontrar encaminhamentos que contemplem uma ideia de democratização da arte menos submetida aos ditames do consumo – afinal, já vimos no cenário político brasileiro recente como a democratização e a inserção social somente pelo consumo não se sustentam.

Refiro-me à opção por espetáculos que tragam rostos conhecidos do grande público sem descuidar da dimensão artística, como são os próprios trabalhos de Marcio Abreu com Renata Sorrah e os de Guilherme Weber, e contribuam para a construção e ampliação do público de teatro, que encontra suas referências nesta arte e não na televisão (menos por uma questão de ser melhor ou pior, mas para que ambas possam continuar a existir com suas singularidades). Se o gosto desenvolvido for por teatro e não só pelo fetiche de estar diante do artista da TV, há de gerar interesse por outras peças da mostra oficial e do Fringe, favorecendo um modelo menos episódico de relação da cidade com o teatro.

E o Fringe é a outra questão, evidentemente. No fim da década passada e início desta, as mostras especiais como a Novos Repertórios e a mineira renovaram em parte o fôlego do festival, na medida em que concentravam trabalhos com interesse na pesquisa de linguagem continuada. Mas o que se vê agora é o enfraquecimento dessas mostras e o retorno à diluição do Fringe, como um imenso agrupamento de peças dentre as quais uma enorme quantidade são produções caça-níqueis (não gosto da expressão, mas não acho outra mais justa diante de títulos como “Eu te levo pro teatro, mas depois vamos pro motel?” – seria piada se não fosse mesmo uma peça).

É notável, também, a presença cada vez menor das principais companhias curitibanas (que voltarão a se encontrar na Mostra Novos Repertórios, agora em edição independente e desvinculada do festival, de julho a agosto deste ano). A Curitiba Mostra, com a proposta de encenar escritos de autores paranaenses, fica sendo um espaço privilegiado para se ver o teatro da cidade, embora ainda não tenha atingido sua potencialidade (a julgar por outros trabalhos dos mesmos artistas), talvez por carecer de maior tempo de maturação da forma cênica a partir do texto literário tomado como deflagrador do processo criativo. Para 2018, será importante repensar como fazer do Festival um espaço interessante para se ver mais do teatro curitibano.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 

ALEXANDRE, Marcos A. “O teatro negro no Brasil: perspectivas críticas”. Revista Araticum Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes v.10, n.2, 2014.